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domingo, 3 de fevereiro de 2019

As Cidades Invisíveis – Italo Calvino – Resenha


Por Eric Silva
03 de fevereiro de 2019

“Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver em liberdade e não a destrói, espera para ser destruído por ela”.
(Maquiavel)

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Fabulosas, oníricas e metafísicas As Cidades Invisíveis de Italo Calvino compõem um livro único e difícil de descrever pela sua singularidade, originalidade e poética.

Sinopse do enredo

Século XIII. Após muitos anos de viagem pelas longínquas terras do oriente, o mercador e explorador veneziano Marco Polo chega ao império de Kublai Khan, o quinto soberano do Império Mongol[1]. Ali Marco Polo viveria por 17 anos como diplomata na corte de Khan e viajaria pelos extensos domínios do imperador dos tártaros, contando depois em seus escritos as aventuras e as belezas que encontrou por aquelas paragens.

Influenciado pelo realismo mágico que ganhava força na literatura sul-americana e inspirado pelas aventuras do aventureiro veneziano, Ítalo Calvino imagina um diálogo fantástico entre Kublai Khan e Marco Polo, no qual este descreve ao imperador mais de cinquenta cidades extraordinárias que mais parecem existir nos sonhos e na imaginação do navegador italiano.

Misturando sonho, fantasia, um pouco de poesia e diálogos filosóficos, Calvino vai narrando nesse pequeno livro cada uma daquelas cidades tão fantásticas quanto impossíveis, mas que são retratos figurativos e alegóricos da própria existência humana.

Resenha

Marco Polo em retrato póstumo feito em cerca de 1600.  
 Imagem: Wikimedia Commons.
Durante meados do século XII até o início do século XIV viveu na Europa e em tantos outros lugares, o mercador, embaixador e explorador veneziano Marco Polo.

Marco começou suas viagens como explorador pelo Oriente quando ainda tinha 17 anos e embarcou em uma viagem para a Ásia com seu pai e tio, Niccolò e Maffeo Polo, só retornando a Veneza, sua cidade natal, em 1295, 24 anos após partir[2]. Durante a longa viagem pelas terras asiáticas o veneziano conheceria o maior império em área contígua da história[3], o Império Mogol.

Posteriormente e já de volta a Europa, Marco relataria suas aventuras e os anos durante os quais serviu como embaixador de Kublai Khan, em seu livro, Il Milione (O milhão) mais conhecido como As viagens de Marco Polo[4]. Inspirado nesse livro de relatos de viagem, o escritor italiano Ítalo Calvino imagina em As Cidades Invisíveis (Le città invisibili) como seriam os diálogos entre Marco e o Khan enquanto este relatava as maravilhas de dezenas de cidades que o explorador conhecera ao longo das suas muitas viagens pelo Oriente.

As Cidades Invisíveis é um livro de beleza muito peculiar e rara. Não é uma obra que chama a atenção por sua trama, porque quase não há história. O que domina a peça são as descrições das dezenas de cidades fabulosas que tão só poderiam existir na mente fértil de um excelente escritor como Ítalo Calvino.

As cidades narradas por Marco Polo ao Khan são singulares, extravagantes e oníricas e por isso parecem invisíveis, pertencendo ao campo dos sonhos e da imaginação. Cada uma recebe o nome de uma mulher e são cidades que desafiam as leis da natureza, da lógica e da razão. Nelas Calvino traz uma atmosfera ilógica, trabalhando a questão do inverossímil, e ao mesmo tempo através delas transfigura alegoricamente muitos dos sentimentos, contradições e desejos humanos.

Ao fazer as descrições das cidades, Marco fala sobre seus aspectos físicos, culturais, comportamentais, metafóricas e também metafísicos, como bem observa Carmem Lúcia, do blog O que Vi do Mundo, mas, ao mesmo tempo, tece nas entre linhas reflexões do mundo em forma de metáforas e alegorias. Algumas das cidades são surrealistas e parecem saídas de uma pintura de Salvador Dalí ou de René Magritte. O resultado são textos preciosos de alto valor descritivo que tornam o livro complexo e ao mesmo tempo belo e intraduzível.

Cada cidade contém sua própria singularidade e magia, mas em alguns momentos ela se parecem, porque são divididas em categorias que se repetem como “as cidades e a memória e as cidades e o desejo”.

Kublai Khan. Retrato feito por Anige do Nepal, astrônomo, 
engenheiro, pintor e confidente de Kublai Khan
Imagem: Wikimedia Commons.
Zora, por exemplo, me parece um palácio mental, uma técnica de memória no qual você associa tarefas e outras coisas que deseja lembrar a objeto dispostos nos cômodos imaginários de uma casa ou de outro espaço. Já Sofrônia me surpreendeu porque é formada de duas metades, uma delas é uma grande cidade (de concreto, fixa), enquanto a outra é descrita como se toda ela fosse um grande parque de diversões (provisória, removível). No entanto, todos os anos uma dessas meias cidades é desmontada e remontada, mas a meia Sofrônia que é desmontada e levada embora não é a meia cidade que parece um parque, mas aquela feita de concreto com sua falsa fixes.

Ainda quero citar as cidades delgadas, que são, por sua vez, as mais improváveis e impossíveis como as pinturas surrealistas de que falei. É o caso de Otávia, cidade construída acima de um desfiladeiro entre duas montanhas sustentadas por fios que as que servem de sustentáculo e passagem.

“Se quiserem acreditar, ótimo. Agora contarei como é feita Otávia, cidade-teia-de-aranha. Existe um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade fica no vazio, ligada aos dois cumes por fios e correntes e passarelas. Caminha-se em trilhos de madeira, atentando para não enfiar o pé nos intervalos, ou agarra-se aos fios de cânhamo. Abaixo não há nada por centenas e centenas de metros: passam algumas nuvens; mais abaixo, entrevê-se o fundo do desfiladeiro.
“Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de corda, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com a forma de navetas, odres de água, bicos de gás, assadeiras, cestos pendurados com barbantes, monta-cargas, chuveiros, trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários, vasos com plantas de folhagem pendente.
“Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que a de outras cidades. Sabem que a rede não resistirá mais que isso”.

Essa foi uma das cidades que mais me chamou a atenção. Como se vê o texto é puramente descritivo, como, porque assim como os escritos originais de Marco Polo As Cidades Invisíveis funciona como um relato de viagem cheia de descrições e com pouco enredo. Só nas últimas cidades Ítalo insere o diálogo, elemento que inexistia na dinâmica inicial dominada pela descrição, e o narrador também passa a se colocar mais no texto. Até então o diálogo só existia nas passagens onde o veneziano e o Khan conversavam.

Por ter um estilo de diário de viagem, As Cidades Invisíveis não segue a lógica e a estrutura da narração que normalmente é composto de problemática, clímax e desfecho, o que compõe o enredo. Ainda assim, é uma obra cuja divisão dos seus capítulos se torna uma característica única do próprio livro.

O livro é dividido em 9 capítulos que funcionam como blocos onde temos – intercalado a história de Marco Polo e Kublai Khan – a descrição das chamadas cidades invisíveis em subcapítulos pequenos e independentes. Esses subcapítulos falam cada um de uma nova cidade e cada título carrega algum aspecto que de alguma forma se relaciona as principais características dessa cidade mais um número de 1 a 5 que representa quantas vezes aquele aspecto já foi referido.

Os diálogos de Marco Polo e Kublai Khan também são sempre cheios de filosofia e aforismos. Impossibilitado de conhecer a vastidão de seus domínios, o imperador ouve Marco Polo com curiosidade e a través de seus relatos Kublai consegue conhecer as várias partes que compõem o caleidoscópio do seu império e “discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins”.

Por diversas vezes o imperador expões seus pensamentos e angústias, e também faz questionamentos sobre a veracidade do que lhe narra o embaixador estrangeiro, mas, ainda assim, se mantém interessado e envolvido pelos relatos fabulosos e oníricos de Marco. Apesar disso, os diálogos se dão por gestos e sem o uso da palavra, uma vez que Marco desconhece a linguagem dos tártaros. Só muito depois Marco Polo passa a verbalizar seus relatos, mas, ainda assim, a linguagem gestual e figurativa continua viva e predominante nos seus diálogos com o Khan.

A escrita de Ítalo é um pouco desafiante para aqueles que leem pouco. Por vezes, metafórica ela é também cheia de palavras singulares e distantes do nosso cotidiano. Poética, é uma escrita cheia de construções imaginativas complexas e até mesmo surrealistas o que me fez alguns momentos ficar um pouco perdido na leitura, mas ainda assim não usa uma linguagem demasiadamente erudita.

O livro não parece ter pontos fracos, porque é extremamente singular e único, mas nem por isso agrada a todos. O que mais gostei foi a escrita poética de Calvino e de sua imaginação surpreendente e liberta, que tornou o livro original, instigante e criativo.

O desfecho do livro, assim como todo ele, é cheio de aforismos e faz uma profunda reflexão sobre a vida. Ele não encerra de fato a narrativa, mas encerra o ciclo de narrações que poderemos acompanhar. Por isso, em vez de um final fechado, Ítalo nos dá uma reflexão encantadora e filosófica como final:

“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.

Enfim, As Cidades Invisíveis é um livro onírico, de sonhos, de construções imaginativas requintadas e delicadas. Uma obra inteligente e singular, única e até certo ponto indefinível e indescritível. Vale a pena ler.

A edição lida é da Editora Companhia das Letras, do ano de 1990 e possui 152 páginas.

Sobre o autor

Ítalo Calvino nasceu em Santiago de Las Vegas, Cuba, em 15 de outubro de 1923, e foi para a Itália logo após o nascimento. Formou-se em Letras e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, tendo atuado muitos anos como militante e membro do Partido Comunista Italiano, até que se desfilou-se em 1957.

Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX e sua primeira obra foi Il sentiero dei nidi di ragno (A trilha dos ninhos de aranha), publicada em 1947. Uma de suas obras mais conhecidas é Le città invisibili (As cidades invisíveis), de 1972.

Morreu em Siena, em 19 de setembro de 1985.






Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


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Cinema









[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Kublai_Khan
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Polo#Primeiros_anos_e_viagem_para_a_%C3%81sia
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Mongol
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/As_Viagens_de_Marco_Polo

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Histórias da Outra Margem – Nagai Kafu – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.
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Tadasu Oe é um escritor nostálgico que encontra em seu relacionamento mal resolvido com uma prostituta a inspiração necessária para seus livros.  Considerada a obra-prima de Nagai Kafu ( 荷風), Histórias da Outra Margem (濹東綺譚, Bokutō Kidan) é o sexto livro da III Campanha Anual de Literatura que homenageia a literatura do Japão. Um romance curto, nostálgico e pintado sob as cores das estações do ano em terras japonesas.

Sinopse

Tóquio, década de 1930. Tadasu Oe é um escritor sexagenário, conhecido e saudosista que ocupa parte de seu tempo em idas e vindas pela capital japonesa em busca de inspiração para seu último livro. É durante um de seus passeios, no fim de uma tarde chuvosa, que Oe conhece Oyuki, uma moça pobre que abandonou sua vida como gueixa para prostituir-se na zona do bairro de Tamanoi. Logo os dois começam um caso prolongado e, enquanto escreve seu livro, Oe tira daquela relação o alento para sua solidão e a inspiração para sua literatura.

Dividido em dez pequenos capítulos, Histórias da Outra Margem é, ao mesmo tempo, o breve relato das incursões de Oe ao bairro que ficava ao leste do rio Sumida, durante o seu romance mal resolvido com Oyuki, e também a descrição do processo de composição e escrita de um romance.

Resenha

Foto: Eric Silva, 2018.
Publicado em 1937, Histórias da Outra Margem é um clássico contemporâneo japonês curto e que se caracteriza pela pouca variação nas ações de seus personagens. Ele é antes de mais nada uma longa conversa do narrador com o leitor.

Nessa longa conversa que compõe, contraditoriamente, um breve romance (quase uma novela), Tadasu Oe nos fala sobre diversos temas desde cineteatros à moda e literatura da época. Mas os assuntos preferidos do narrador são, no entanto outros: as mudanças na cidade de Tóquio, reconstruída após o terremoto de 1923; seu livro até certo ponto estagnado; o nem sempre tranquilo ofício de escritor e sua relação mal resolvida com Oyuki. A destruição e reconstrução da capital, porém tem dentro na narrativa um peso maior como se fossem símbolos da transformação e profunda ocidentalização do Japão nas primeiras décadas do século XX.

O livro é o retrato da vida boêmia toquiota na década de 30, sobretudo a vida das meretrizes das zonas semiperiféricas de bairros como a Tamanoi da época. Por conta desse fato, para quem não conhece Tóquio, a meu exemplo, e muito pior a Tóquio de 1930, esse livro é uma excursão por lugares totalmente desconhecidos, mas extremamente familiares para seu narrador. Muitos desses lugares já estão há muito perdidos, engolidos pelo tempo, e, no final, exigem do leitor um maior esforço de imaginação.

Mas algo muito curioso nesse livro é a sua intertextualidade acentuada. Uma intertextualidade que se constrói sobretudo com a obra do autor e com sua vida pessoal. Nele são citados livros anteriores de Nagai Kafu, amigos seus de infância como Aa Inoue e Soyo Kojiro, dos quais fala com saudade. O romance fictício desenvolvido pelo personagem e intitulado O Desaparecimento também possui citações transcrita no texto principal de Histórias da Outra Margem e até um capítulo inteiro é transcrito. Além disso, fragmentos de textos de outros escritores e poetas como Gakkai Yoda e Matsuo Bashô são citados, completando a intertextualidade do livro.

Pelos elementos pessoais presentes na obra e outros, marcantes nos hábitos e na personalidade boemia de Tadasu Oe, muitos especialistas em literatura japonesa consideram o personagem principal desse livro o alter ego de seu escritor. Assim como Oe, Kafu era assíduo frequentador de bordéis e casas de prazer, assim como a descrita na sua narrativa. Ademais, Histórias da Outra Margem, como descrito na orelha do livro, parece uma mistura de diário, ficção, poesia, crônica e memórias.

A narração é linear e não explora o uso de flashbacks, ainda que o narrador pareça nostálgico em relação ao passado.

Apesar de cronológico, o tempo decorrido durante a narrativa não é preciso e nem definido. Ao que me pareceu apenas a passagem das estações do ano permitem precisar o tempo em que as ações ocorrem e por isso as mudanças no tempo são essenciais na narrativa.

Já observei, na maioria dos livros japoneses que já li, que as estações do ano é um elemento muito explorado pelos escritores nipônicos. Em Naufrágios de Akira Yoshimura esse destaque para as estações e seu uso como demarcador do tempo é icônico e entorno delas é construída toda a trama. Mesmo em animes e mangás essa é uma característica japonesa proeminente e curiosa, como se o “calendário natural” convivesse harmoniosamente ou até mesmo subordinasse o calendário convencional.

No livro de Kafu, a passagem das estações é também elemento importante e que se concilia com o aparecimento dos mosquitos que infestavam Tamanoi no verão escaldante de Tóquio. Datas são pouco usadas com exceção de alguns anos que demarcam acontecimentos anteriores à trama. Também no final do livro, que é encerrado com a provável data de fechamento de sua escrita: “Tóquio, 30 de outubro de 1936, ano do cavalo”.

Um elenco pequeno: narrador e personagem

Com um profundo tom intimista e olhos centrado na vida cotidiana e literária de seu narrador, Histórias da Outra Margem é um livro que parece alheio ao momento histórico de totalitarismo político, ultranacionalismo e imperialismo militar que dominou o cenário político japonês e que culminou na invasão japonesa da China em 1937, ano de publicação do livro. Contudo, não é uma obra que se encontra alheia as mudanças provocadas pelo tempo que muda não só as pessoas como os lugares, marcando na retina daqueles que viveram bastante a saudade de coisas que se perderam no passado. Essa nostalgia é a principal marca da narrativa desse livro, o que fica nítido sobretudo no saudosismo de Oe que descortina as mudanças profundas e pouco sutis sofridas pela cidade de Tóquio após o grande sismo de Kantō, terremoto ocorrido no ano de 1923, cujos efeitos – somados a um tsunami subsequente e inúmeros incêndios – foi responsável pela morte de 110 mil japoneses.
Em muitas passagens o narrador é irônico e opina sobre a polícia metropolitana, o trabalho dos cafetões e as transformações ocorridas na cidade que muito lhe desagradam:

“Eu queria mostrar como a beleza da Tóquio antiga, de seus bairros famosos, se perdeu depois da reconstrução que se seguiu ao Terremoto de 1923. Por isso, queria que a história de Taneda e passassem em um desses lugares da capital, cujo charme de outrora se fora para sempre: Honjo, Fukagawa, os arredores de Asakusa; [...]”.

Ao longo de toda a narrativa, Oe recorda os lugares que já não existem na “nova” Tóquio, as mudanças provocadas não só pela destruição do terremoto (principal marco temporal usado pelo narrador para separar a nova da antiga capital), como também aquelas provocadas pelo crescimento da cidade em direção aos seus subúrbios; o surgimento de novas áreas periféricas e a transformação de bairros boêmios ou antigas zonas de prostituição forçadas a se deslocarem em decorrência do avanço da cidade.

Por conta disso, o tom principal desta narrativa é marcado pela nostalgia de um personagem que viveu uma outra Tóquio, diferente, e que viu ruir e transmutar após as chamas e destruições provocadas pelo sismo. Mas mais do que uma Tóquio que foi consumida pelo fogo ele sente saudades de uma era que deixou de existir após a restauração da era Meiji e que foi responsável pela modernização do país.

Podemos dizer inclusive que é a forma ainda muito tradicional com a qual Oyuki se veste um dos principais atrativos que atraem o protagonista de Kafu. A monotonia da casa onde ela atendia complementaria o interesse do escritor que foge do barulho dos rádios e megafones das casas vizinhas a sua.

Porém, a nostalgia não é a único traço do desenho psicológico do narrador e personagem principal. Ele é um homem de hábitos simples, mas possui uma seriedade difícil de enquadrar, porque não é grave como a de alguns homens moralistas e inflexíveis (o que ele não é nem um pouco) e nem se dilui em risos ou brincadeiras.

Ele é também tranquilo, contemplativo e perspicaz, mas deixa transparece uma personalidade um pouco relapsa. Alguns críticos e resenhistas o classificam com um outsider, alguém “apreciador de uma outra época[1]. Sua forma de se expressar e conviver, porém demonstra não apenas toda a natureza tranquila e até fria típica de alguns estereótipos orientais mais comuns, mas também a distinção de alguém muito instruído, o que de certa forma contrasta com os ambientes degradados e moralmente indecorosos frequentados por eles.

Oe, além de escritor reconhecido e que inclusive viveu parte de sua vida no exterior, é um assíduo frequentador das casas de prazer toquiotas e profundo conhecedor do mundo dos bordéis, cafetões e prostitutas. Por conta disso não é de se surpreender que esse seja um dos principais temas de seus diálogos com o leitor. Contudo, a forma de falar de Oe se mantém polida durante a maior parte do texto. Só notamos alguma diferença quando Oyuki, confundindo-o com um marchand[2] de desenhos “secretos” (pornográficos), passa a falar com ele de uma forma mais coloquial e faz menos “cerimônia” em sua presença.

Não obstante, o narrador tem consciência de que os ambientes frequentados por ele lhe renderiam má fama em seu meio e, por isso, tomava cuidado para não ser visto por nenhum jornalista. Também para evitar ser visto de uma forma diferente naquele mundo, omite sua condição e profissão, inclusive de Oyuki.

Por sua vez, Oyuki é uma mulher de comportamento muito típico para a sua profissão, o que, em parte, alimenta estereótipos. Ela não é excessivamente vulgar, mas não deixa de ser. Trata-se de uma moça pobre, de origem camponesa, ainda um pouco ingênua e, até certo ponto, afável e jovial. Todavia, em muitos momentos Oyuki revela a tristeza profunda e o cansaço de quem vive uma vida difícil e sem recompensas. É um personagem profundo, mas que não consegui captar completamente, por isso, não tenho muito o que falar de Oyuki, ainda mais que tudo sobre ela é filtrado pelo olhar do narrador que a olha com curiosidade e certa compunção[3].

O elenco do livro é composto por muito poucos personagens, a maioria deles tem participação muito secundária e que se resume a um único capítulo ou apenas parte dele. Também não há uma preocupação excessiva com descrever os personagens, apenas a Oyuki, mas isso é feito de forma espaçada no ritmo de desenvolvimento da trama. Porém, a descrição de Oyuki, em contraponto com os demais personagens, é justificável, uma vez que ela é a “musa” do narrador e sua inspiração.

Apreciação crítica

Foto: Eric Silva, 2018.
Apesar de puxar mais para a descrição e divagações do narrador, Kafu buscou nesse livro um equilíbrio entre narração e diálogo. A escrita é bem estruturada, mas a narrativa não é instigante. Não há sobressaltos nem grandes acontecimentos, apenas uma monotonia de dias quentes cheios de mosquitos, ou tardes bonitas que terminam em chuvas repentinas. O livro como um todo é um monólito de granito formado por muitos grãos (poesias, narrativa, intertextualidade, cartas, memórias), mas sem a beleza de uma trama complexa ou dinâmica.

Histórias da Outra Margem é, em suma, bastante cotidiano, semelhante ao livro Beleza e Tristeza de Yasunari Kawabata que é igualmente monótono, o que faz de ambas as obras impopulares entre as gerações mais atuais. Ainda assim, é uma leitura fluída e não travei em nenhum momento ou abandonei a leitura se não fosse por um motivo apropriado.

A obra é antiga já tendo completado mais de 80 anos de publicado, o que contrasta bastante com a idade da edição lida por mim que tem apenas oito anos de publicação, uma diferença de mais de sete décadas. Isso demonstra o quanto o mercado editorial brasileiro continua fechado às obras estrangeiras que não pertencem a literatura euro-estadunidense.

A literatura japonesa ainda chega até nós com maior frequência, a exemplo das obras de Haruki Murakami e Yasunari Kawabata, mas quando se trata de outros países asiáticos e principalmente africanos e da Oceania há uma vasta lacuna de milhares de livros que nunca foram traduzidos e que provavelmente não serão, com exceção, é claro, dos antigos e futuros ganhadores do Nobel de Literatura. Por isso, o trabalho da editora Estação Liberdade é importantíssimo para que essa leitura oriental chegue ao público brasileiro.

Mas, a despeito da longevidade da obra, a tradução impecável de Andrei Cunha facilita a leitura que não possui uma linguagem demasiadamente erudita. Além disso, as notas de rodapé escritas pelo tradutor foram imprescindíveis para o entendimento da obra que faz muitas referências aos costumes, à cultura e à moda japonesa da época. Cunha também traduziu, para a mesma casa editorial, o livro Guerra das Gueixas, outra obra icônica de Kafu.

A diagramação é também caprichada e o livro foi feito com papel de excelente qualidade, se não bastasse, os desenhos de Shohachi Kimura, que marcam a divisão dos capítulos, foram retirados da edição original e tornam ainda mais atraente a edição brasileira.

Em conclusão, o desfecho de Histórias da Outra Margem não surpreende, porque o narrador vai dando diversas pistas ao longo dos últimos capítulos. Contudo, é um final original, porque, apropriando-me das palavras do próprio Oe, não se preocupa em ser “satisfatório”. Oe, ao contrário, nos convida a pensarmos uma outra forma de concluir o seu romance.
Breve, sutil e um pouco monótono, mas de uma qualidade literária indiscutível. Este é Histórias da Outra Margem de Nagai Kafu.

A edição lida é da Editora Estação Liberdade, do ano de 2013 e possui 128 páginas.

Sobre o autor

Nagai Kafu (永井 荷風) é o pseudônimo de Nagai Sokichi. Kafu nasceu em Tóquio no ano de 1879 e é autor de romances, contos e peças de teatro.

Desde a adolescência interessou-se por literatura e cultura tradicional japonesa e chinesa.

Aos 19 anos escreveu seus primeiros contos, publicados a partir de 1900. Rebelde quando jovem, Kafu não conseguiu terminar seus estudos universitários. Na primeira década do século XX viveu no exterior, primeiramente em Nova York, onde trabalhou em um banco japonês. Em 1906, muda-se para Lyon, na França, onde teve um contato mais intenso com a cena literária, especialmente com a escola do simbolismo. Esse período inspirou o livro Amerika Monogatari [Histórias americanas], de 1908.

Ao retornar ao Japão, em 1908, já era um homem de letras maduro e cosmopolita e torna-se estudante e tradutor de literatura francesa. Por alguns anos após seu retorno, Kafū foi professor na Universidade de Keiō, em Tóquio, e líder do mundo literário.

Manteve intensa produção até sua morte, em 1959.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

No link abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Issuu.

Preview do Issuu








[1]Marilia Kubota. Nagai Kafu Retoma O Mundo Flutuante. Disponível em: https://revistamemai.wordpress.com/2013/02/26/19-literatura-nagai-kafu-retoma-o-mundo-flutuante-em-historias-de-outra-margem/.
[2] Palavra francesa (em português, "mercador" ou "comerciante") que, em alguns países não francófonos, designa o profissional que negocia obras de arte.
[3] Sentimento de pesar, de arrependimento por haver cometido má ação.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Quarto de Despejo: Diário de uma favelada – Carolina Maria de Jesus - Resenha

Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.
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Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

(O Bicho, poema de Manuel Bandeira)


Nono livro da campanha do #AnoDoBrasil, Quarto de Despejo, marcou na década de 1960 a estreia da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus. Nessa obra forte e bastante peculiar Carolina transcreve através de seus diários o cotidiano sofrido e a miséria a que esteve submetida durante os anos em que vivera com seus três filhos na extinta favela do Canindé, em São Paulo. Com a crueza de quem viveu uma realidade de fome e desamparo, a autora descreve as relações conflituosas empreendidas pelos moradores da favela, os desafios para sustentar seus filhos com o trabalho de catadora de material reciclável e as mazelas vividas pelos mais pobres na capital paulista, deixando para as gerações posteriores um testemunho sobre o sofrimento submetidos aos muitos brasileiros que vivem na pobreza em decorrência da profunda desigualdade social instalada no nosso país.

Confira a resenha do nono livro da campanha anual de literatura e que nesse ano homenageia a literatura do Brasil.

Sinopse

Compilação dos diários de Carolina Maria de Jesus, uma catadora de materiais descartáveis, Quarto de Despejo relata o duro cotidiano da favela do Canindé nos finais da década de 1950. Ambiente marcado pela extrema pobreza, o Canindé crescia às margens do Tietê com a chegada de nordestinos, sem-tetos, e toda a sorte de pessoas que aumentavam o número de barrocões e as fileiras de desvalidos vivendo em condições subumanas na capital paulista. Entre eles vivia a mineira Carolina com seus três filhos pequenos.

Negra, mãe solteira e desempregada, Carolina sobrevivia enfrentando a fome com o parco dinheiro que conseguia catando papel e “ferros” para vender. Nessa vida sofrida que muito a amargurava, seu único consolo eram as palavras que imprimia no papel relatando sua agonia e refletindo a injustiça da vida e dos homens. Seria também através das palavras que obteria a sua liberdade, ainda que momentânea.  Dos cadernos catados no lixo nasceria o diário que projetaria Carolina como uma das mais importantes escritora negras da literatura brasileira, injustiçada até o fim, mas que passaria a ser conhecida em todo o mundo através de seu testemunho e exemplo.

Resenha

A autora
Falar desse livro sem antes explicar que tipo de mulher foi Carolina é impossível e, até certa medida, incoerente, pois, sendo a obra o "Diário de uma Favelada", ela é a escritora e a protagonista. Mas mais do que esse duplo papel na narrativa, Carolina foi na vida a figura icônica que representa o despossuído, o faminto, a mulher negra, a mãe chefe de família e o indivíduo que vive à margem da sociedade, ou seja no "Quarto de Despejo".

Carolina Maria de Jesus nasceu no município mineiro de Sacramento em 14 de março de 1914. Estudou apenas as séries iniciais por pouco mais de dois anos nos quais aprendeu a ler e escrever.
Em 1947, com pouco mais de trinta anos de idade, mudou-se para São Paulo, onde, por força da necessidade, tornou-se moradora da extinta favela do Canindé, localizada na zona norte da cidade às margens do rio Tietê.

Para sobreviver e alimentar seus três filhos, João José, José Carlos e Vera Eunice, Carolina trabalhava como catadora de papel, metais e outros materiais que vendia em depósitos de produtos recicláveis da cidade. Por vezes comia restos de alimentos descartados no lixo das casas e também dos dejetos retirava os cadernos onde registrava, sob a forma de diário, não só o cotidiano da comunidade em que vivia, como também poemas e canções que compunha.

No Canindé era odiada e temida pelas pessoas da favela pois em suas discussões com os vizinhos sempre ameaçava de colocá-los no livro que escrevia. Após uma destas discussão conheceu Audálio Dantas, um jornalista que em 1958 visitava a comunidade para escrever uma reportagem, mas que se interessando pelos escritos de Carolina ajudou-a a levar à público seu livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, publicado em 1960 pela Editora Francisco Alves.

Carolina Maria de Jesus e Audálio Dantas na Favela do Canindé.
São Paulo, 1961
Quarto de Despejo vendeu 100 mil exemplares e foi traduzido para 13 idiomas em mais de 40 países, tornando Carolina em uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil[1]. Com o dinheiro obtido com a vendo dos direitos de seu primeiro livro, comprou uma casa de alvenaria e saiu da favela, contudo suas obras posteriores não alcançaram o sucesso de seu livro de estreia e Carolina voltou a pobreza, falecendo em 13 de fevereiro de 1977, com 62 anos.

Na visão do jornalista que a descobriu a escritora foi transformada “em artigo de consumo e, em certo sentido, num bicho estranho que se exibia como uma excitante curiosidade". Segundo texto biográfico da Fundação Palmares[2]Carolina sempre foi muito combativa, por isso era mal vista pelos políticos de esquerda e direita quando começou a participar de eventos em função do sucesso de seu livro. Por não agradar a elite financeira e política da época com seu discurso, acabou caindo no ostracismo e viveu de forma bem humilde até os momentos finais de sua vida”.

Ainda segundo a Fundação Palmares, mesmo hoje, grande parte da obra da escritora continua inédita e é composta não apenas pelos diários como por romances, textos curtos, poemas, peças de teatro e letras para marchas de carnaval.

Carolina também chegou a produzir um disco com o mesmo título de sua primeira obra onde interpretou canções de sua autoria. No final dessa postagem você pode conferir um vídeo com a reprodução de uma das canções da autora, O Pobre e o Rico.

O livro

Quarto de Despejo é a compilação dos diários de 1955, 1958 e 1959 quase sem nenhuma alteração do texto original. Por isso esse é um livro carregado pela oralidade de Carolina, com erros ortográficos e de concordância que preservaram a forma estética original do seu discurso. Contudo, pela extensão muito grande de seus diários – quase mil páginas – e seu detalhamento, Audálio, então responsável pela organização dos escritos de Carolina, levou meses para selecionar os trechos e diários mais significativos para compor o livro final. O resultado é um conjunto de enxertos que seguem uma linha cronológica e dão conta de apresentar as idas e vindas na vida de Carolina e de seus filhos.

Na escrita de seus diários, Carolina vai desfiando o cotidiano da favela do Canindé, as brigas frequentes e enfrentamentos entre os vizinhos, como as crianças cresciam em um espaço cheio de devassidão e violência. Por isso, o espaço central da narrativa de Carolina é sem dúvida a favela, cuja imagem a autora pinta como um lugar onde impera o pior dos cenários: a precariedade, a carência, a depravação, a violência e as intrigas. Uma terra sem lei e onde falta tudo.

Entre uma visão crítica, dura e até mesmo impregnada de aversão e amargura em relação a realidade que vivia no Canindé, Carolina vai narrando as relações e intrigas entre os sujeitos com quem convivia e o seu sofrimento e desgosto por ser da e estar na favela. Assim, criticamente, e sob a ótica de alguém que queria, através das suas ações e do seu modo de pensar, diferenciar-se dos demais, ela vai contando sobre as brigas, as tentativas de homicídio, os casos de infidelidade, pedofilia e incesto que aconteciam na favela. Descreve como ela se envolvia nas brigas de seus vizinhos na tentativa de corrigir as injustiças que presenciava, como enfrentava aqueles que agiam com desafeto para com ela e seus filhos e como com o pouco que tinha ainda ajudava outros que com ela buscavam ter uma relação de camaradagem.

O livro conta também como pelo seu jeito de ser e agir era hostilizada pelas mulheres que ela criticava, fala sobre as implicâncias e perseguições sofridas por seus filhos que muitas vezes eram vítimas de maus-tratos por parte dos moradores e até mesmo de como um de seus meninos chegou a ser acusado de assediar uma garota menor do que ele.

Carolina Maria de Jesus, Audálio Dantas e Ruth de Souza na Favela do Canindé.
Quarto de Despejo é um livro que impressiona pela descrição de um ambiente devasso e inculto, mas que não foi capaz de corromper ou abalar os princípios da autora. Ao contrário, Carolina busca manter uma retidão de caráter e tinha nos livros e nas palavras o seu refúgio preferido. É uma história real que comprova a falsidade da tese (que contraditoriamente a autora em muitas passagens defende) de que o meio determina o homem.

Na minha opinião, e o livro me dá substrato para crê-lo, o homem é influência do meio somente quando este não teve em sua formação, o que a sociologia chama de socialização, referências que o reconduzissem seu caráter e moral para um caminho adverso ao do entorno. Carolina teve da sua mãe e dos livros que lia a formação de um caráter crítico, independente, honesto e sensato, mesmo tendo ido viver em um ambiente que ela descreve como marcado pela discórdia, embriaguez, violência e promiscuidade. Enfim, ela não se permite igualar-se.

Por outro lado o livro também nos permite ver situações completamente opostas e que parecem confirmar a tese, e nessa dubiedade nos mostra como é assustadora a fome e a pobreza extrema que por vezes desumaniza as pessoas. Tem-se, aí, o palco e o cenário para a inveja de alguém que foi favorecido com algo (um simples pedaço de pão, alguns cobres), para o desespero por qualquer esmola, para a desunião dentro do lar, para a trapaça, o desafeto, o alcoolismo, a violência e a marginalidade.

No entanto, a narrativa do diário não se restringe a favela e descreve igualmente as dificuldades de Carolina para alimentar sua família como mãe solteira e da sua convicção em não depender de homem algum. É particularmente comovente o seu desespero e amargura quando os filhos reclamavam da fome e ela muito pouco tinha a oferecer para saciá-los, o que levou-a a pensar por diversas vezes em entregar seus filhos à assistência social.

Mas a abordagem da autora é bastante globalizada e oscilante indo da sua realidade cotidiana ao o que acontecia no Brasil e no Mundo. Assim, com seu olhar singelo e pouco instruído, mas sempre muito sagaz e atento ela vai desfiando de forma crítica os jogos políticos da época, as desventuras do trabalho como catadora e os horrores que presenciava, a exemplo da morte de um rapaz que tendo comido restos do lixo amanheceu morto no dia seguinte (falarei mais sobre esse caso na próxima secção).

Fala de como o preço dos alimentos se mantinham altíssimos e de como era imenso o número de desvalidos nas filas de distribuição de comida quando algum político, no período eleitoral, resolvia distribuir algo aos necessitados, além de citar acontecimentos internacionais de grande monta e também do cenário político brasileiro o que, por sua vez, exigiu diversas intervenções do editor através de notas de rodapé que contextualizavam as referências da escritora. O resultado é a denúncia e um panorama da desigualdade e segregação social no Brasil do final dos anos 50, do cenário político da época, e também de fatos que se desenrolavam no exterior, o que demonstra o quanto bem informada era Carolina, uma simples catadora de papel que vagava pelas ruas de São Paulo em busca do seu sustento.

Ante aquela realidade, a visão de mundo da autora não é romantizada e muito pouco esperançosa, apesar de ainda ali existir uma fé tímida na mudança, nutrido mais pelo desejo inabalável de mudar do que pela crença infundada na transformação de sua vida. De todo a todo, uma mulher realista, inteligente, politizada, destemida e determinada, ainda que fossem poucas as suas ferramentas para lutar.

Por isso, a narrativa do diário é algo que atravessar as mais diferentes dimensões da vida humana: a luta pela sobrevivência, a criticidade, a poesia, o amor, a intriga, a injustiça, a maternidade, a traição, a bondade e a caridade, a desilusão. Todos esses sentimentos e características humanos têm lugar no diário de Carolina eles surgem e se mesclam na vida da autora e das pessoas que a cercam.

Quarto de Despejo: a metáfora que dá título ao livro

Em Quarto de Despejo foi preservado muito da linguagem e escrita original da autora com quase todas imprecisões gramaticais cometidas pela autora. Desse modo este é um livro que só por sua linguagem já nos diz muito sobre a autora e sua origem social. Contudo essa mesma linguagem marcada pela oralidade e o coloquialismo também traz uma gama de palavras, expressões e observações que ainda revelam uma leitora assídua e muito bem informada, ainda que nem sempre precisa.

Mesmo se tratando da compilação dos diários da autora, mais do que um texto pessoal e descritivo ele é também, por vezes, bastante metafórico, sendo que a principal, mais frequente e inquietante de suas metáforas é aquela que dá título ao livro: a metáfora do quarto de despejo.

Nesta metáfora Carolina compara as diferentes regiões de São Paulo com as partes de uma casa. A parte nobre seria a sala de visita, bonita e arrumada – comparação que ela estende a prefeitura municipal –, enquanto a favela seria o quarto de despejo­, aquele quartinho no fundo da casa, algumas vezes em um ponto afastado do quintal, desarrumado e esquecido, onde se coloca tudo o que é velho, quebrado ou sem utilidade, e que por deixar feio o ambiente (a sala principal) é tirado do campo de visão de quem é de fora (as visitas):

“As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos: que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.

“... Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”.

“Abri a janela e vi as mulheres que passam rápidas com seus agasalhos descorados e gastos pelo tempo. Daqui a uns tempos estes palitol que elas ganharam de outras e que de há muito devia estar num museu, vão ser substituidos por outros. E os politicos que há de nos dar. Devo incluir-me, porque eu tambem sou faveada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo”.

Logo, o que se entende dessa singela mas inteligente analogia entre a favela, os bairros com infraestrutura adequada e as partes da casa, é que são as pessoas extremamente pobres e sem instrução os trastes velhos e feios, o “rebotalho” que deve ser descartado, escondido, jogado a margem, para que se higienize a sala de estar ou de visitas. Só se vai lá quando se tem um interesse – é o caso dos políticos – e se o que está lá já não possui serventia, “queima-se ou joga-se no lixo”, ou seja remove-se.

Quarto de Despejo ilustra muito bem a realidade que fez Carolina denominar a favela com esse termo ao demonstrar na narração do cotidiano a atitude dos políticos em relação a comunidade, a opinião dos moradores dos bairros mais próximos da favela que consideravam os favelados como indesejados, e, sobretudo, na precariedade da vida daquelas pessoas. Assim o livro está povoado de imagens tristes e até revoltantes, mas o que mais me chamou a atenção foi a morte de um rapaz que comia no lixo e que me fez lembrar do O Bicho de Manuel Bandeira, o poema da epígrafe dessa resenha. Veja o que aconteceu:

No dia 29 de maio de 1958, Carolina relembra um “pretinho bonitinho” que como ela vendia objetos de ferro catados no lixo. Ela conta que um dia encontrou o “pretinho” em um lixão, onde era comum jogarem carne no lixo. Naquele dia rapaz escolhia alguns pedaços espalhados pelo lixo e que ele pretendia comer, chegou a dar alguns a ela que aceitou “para não maguá-lo”. Ela tenta convencê-lo a não comer a carne visivelmente deteriorada, mas ele não a escuta e devido a fome muito grande acende um fogo e assa a carne. Incapaz de conter a fome acaba só esquentando e comendo. Para não presenciar aquela cena, Carolina vai embora e só recebe a notícia no dia seguinte da morte do rapaz. O restante é até difícil de escrever:

“No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um qualquer. Ninguem procurou saber seu nome. Marginal não tem nome”.

Em O Bicho, Bandeira relata com indignação o dia em que viu um homem se alimentando dos restos jogados no lixo. No ápice de sua surpresa o poeta confunde com um animal aquele ser humano que “Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade”. De forma muito marcante o relato de Carolina faz reviver “o bicho” na figura do “Pretinho”, meio que lhe dá forma, sem porém lhe dar nome, pois assim como o Bicho, Pretinho não tem nome.

O relato de Carolina de certa forma – mas sem que haja intertextualidade, ressalto porém – transporta a poesia de volta a realidade concreta de onde foi tirada, e mesmo ela que já estava habituada a miséria fica assombrada diante daquela cena. Estarrecimento que, assim como acontece com o poeta, se converte em indignação. Por isso essa passagem do diário me fez recordar Bandeira e seu poema.

A cena da morte do “Pretinho” é com certeza a mais forte de um livro que no todo é impressionante, o que justifica o seu sucesso na época de sua publicação.

Através da descrição da realidade marginal da população brasileira submetida a extrema pobreza, Quarto de despejo faz uma denúncia social acercadas profundas desigualdades sociais que marcam desde muito tempo o cenário econômico e social do nosso país. É um tapa na cara e um retrato fidedigno de um país marcado pela injustiça social. O retrato de um Brasil que ainda existe e de brasileiros que vivem em condições subumanas. Não há como ler este livro e não se sentir despedaçado depois. Não há como sair deste livro sendo o mesmo e quando conhecemos o depois de Carolina, o insucesso de sua carreira, temos a certeza de como o nosso sistema social é injusto.

A edição lida é da Editora Ática, do ano de 2007 e possui 192 páginas.

Vídeo








[1] https://educacao.uol.com.br/biografias/carolina-maria-de-jesus.htm
[2] http://www.palmares.gov.br/?p=40983.

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