Por Eric Silva
Nesse mês de Janeiro iniciamos a nossa campanha do #AnoDoBrasil que ao longo do ano de 2017 fará um passeio pela literatura e pelo cinema brasileiro. O ponto de partida desse nosso itinerário foi O Caçador, livro de estreia da escritora carioca Ana Lúcia Merege, e agora, inspirados pela nova minissérie da Rede Globo, apresentamos o segundo ponto desse percurso: Dois Irmãos, livro do manauense Milton Hatoum. Com este romance publicado pela primeira vez no ano de 2000, somos levados para a exuberante capital amazonense, nas primeiras décadas do século XX, para conhecer os dramas vivido por uma família de ascendência libanesa marcada pelo ódio e pelos atritos entre dois irmãos, conflito que vai deixando um rastro de dores ao desgastar as relações e a convivência entre os membros da família.
Sinopse
Segundo livro de Milton
Hatoum, Dois Irmãos narra a
conflituosa história dos gêmeos Yaqub e Omar. Filhos de dois imigrantes
libaneses que viviam no Amazonas, os irmãos preocupavam constantemente a
família com suas brigas e o ódio que existia entre os dois, tornando impossível
a convivência.
Centrada no drama da família
que pouco a pouco vai se desestruturando, a narrativa é contada pelo olhar de
Nael, o filho da empregada, que narra os acontecimentos 30 anos depois terem
ocorridos e, a partir de suas memórias e das histórias que ouvia de sua mãe,
Domingas, e do pai dos gêmeos, Halim, vai desnudando o cotidiano da família e
da Manaus do início do século XX.
Resenha
Caim e Abel. Esaú e Jacó.
Quantas histórias de irmão que não se entendem e se odeiam nós conhecemos?
Relacionamentos que foram atravessados pela discórdia, pelo ódio, pela inveja e
pelo ciúme. Citei apenas exemplos bíblicos, os mais conhecidos, mas mesmo aí ao
lado, se você procurar bem, pode haver um. Talvez na sua rua, ou no seu bairro,
até na sua própria família, quem sabe. É fácil encontrar casos de irmãos que
não se dão bem. Às vezes, são coisas bobas, implicância mesmo, mas por vezes, coisas
mais sérias de pessoas que deliberadamente se odeiam. Com efeito, esses últimos
são casos que desestruturam a família, preocupam os pais, torna a convivência
insuportável, quando não, impossível.
Coisas semelhantes aconteciam
com os gêmeos Yaqub e Omar do livro Dois Irmãos.
E por ser algo tão comum, escrever um livro sobre o assunto pode parecer, à
primeira vista, mais um clichê. Eu, particularmente, durante muito tempo tive
problemas com a literatura brasileira devido aos temas muito corriqueiros e
repetitivos que tanto aparecem nos livros nacionais, a exemplo dos dramas
amorosos e de famílias desestruturadas. Acho, inclusive, que pelo mesmo motivo
não sou ligado em histórias de amor, ou em livros e filmes do tipo Sessão da
Tarde. Dramas e histórias do tipo têm que apresentar tramas bem inteligentes,
inovadores ou bastante tocantes para chamarem minha atenção.
Não seria de se admirar que
eu achasse Dois Irmãos um livro
chato, corriqueiro, clichê. No entanto,
o encanto e profusão de cenários tão atípicos na minha realidade, que fizeram tudo
parecer ser tão distante quando na verdade é tão próximo, aliado à narração
límpida e envolvente, tão cheia de brasilidade e em muitos momentos atravessada
por poesia, e, por fim, tudo isso arrematado com personagens tão intensos,
algumas vezes incríveis, em outras odiáveis, por vezes tão familiares, me
enredaram na atmosfera morna dos trópicos e li todo o romance quase sem
perceber. No fim, achei-o mais real, mais vivo e, por isso, distante do
idealismo enfadonho de alguns dos antigos clássicos do Romantismo Regionalista
– desculpe gente, mas o trauma das aulas de literatura vai demorar mais um
pouco a passar.
Yaqub e Omar ainda jovens com a mãe Zana em adaptação para a televisão realizada pela Rede Globo de Televisão. |
Halim era um imigrante
libanês que há muito tempo viera com um tio para a cidade de Manaus. Sempre
fora um homem pacato, que depois de muito esforço conseguiu conquistar Zana, a
filha de Galib, outro imigrante do Líbano conhecido na capital amazonense por
seu restaurante, o Biblos. Depois de casados, Zana desejava ter filhos, o que
Halim não queria, preferindo a volúpia de sua vida de casado. Ainda assim, o
casal tivera três filhos, primeiro os gêmeos Yaqub e Omar – ou o caçula, como
era chamado – e depois, Rânia, a única mulher. Com eles, na casa do bairro
portuário, ainda viviam Domingas, uma órfã indígena que desde jovem servia ao
casal como empregada doméstica, e seu filho, Nael, nascido depois que os gêmeos
já eram maiores. Mas sem dúvida, o centro de todas as atenções na casa eram os
dois irmãos. Yaqub com seu temperamento calado e recluso em contraposição ao
gênio competitivo, tempestuoso e inconsequente de Omar.
Numa síntese, eu
caracterizaria Omar como impulsivo, bravejo, farrista, intenso demais em suas
paixões pela boa vida e pelos prazeres que esta lhe proporcionava, um
despreocupado rufião. Por sua vez, Yaqub é contido demais, calculista, frio em
suas ações, só o irmão era capaz de deixá-lo exaltado. Personalidades
conflitantes, extremamente opostas e dificilmente conciliáveis. Mas mais do que incompatibilidade de gênios,
o favoritismo cego e doentio da mãe, pelo “mais novo”, seu zelo extremo e
obsessivo, pesava negativamente na relação entre os irmãos, como uma centelha
que avivou a chama de ódio entre os dois, ou como o movimento de placas que com
sua força extrema e absurda amplia um abismo.
Contudo as brigas dos irmãos
na infância tiveram seu apogeu quando Omar, em uma disputa pela atenção de
Lívia, a sobrinha dos vizinhos, cortou o rosto do mais velho com os cacos de
vidro de uma garrafa, deixando em Yaqub uma marca que jamais o permitiria esquecer
seu ódio pelo irmão. Daquele dia em diante, tudo mudaria para o rapaz que
sofreria não só com as brincadeiras na escola sobre a cicatriz em seu rosto,
como também com a distância imposta pelo pai que o manda para casa de parentes
no Líbano na tentativa de evitar um conflito maior entre irmãos.
“Os pais tiveram de conviver com um filho silencioso.
Temiam a reação de Yaqub, temiam o pior: a violência dentro de casa. Então
Halim decidiu: a viagem, a separação. A distância que promete apagar o ódio, o
ciúme e o ato que os engendrou”.
“Foi o seu último baile. Quer dizer, a última manhã em
que viu o irmão chegar de uma noitada de arromba. Não entendia por que Zana não
ralhava com o Caçula, e não entendeu por que ele, e não o irmão, viajou para o
Líbano dois meses depois”.
Durante o tempo em que Yaqub
ficou no Líbano, Omar foi criado como filho único, com todos os seus desejos
atendidos pela mãe, e com isso, o regresso irmão, cinco anos depois, reavivou o
ódio entre eles.
Narrado a partir das
lembranças de Nael e de tudo que ouvira da mãe e de Halim, Dois irmãos vai contando todos os
conflitos, problemas e obsessões dos membros de uma família que pouco a pouco
vai se destroçando, consumida pelo conflito entre os irmãos e pelas confusões
causadas por Omar. Em paralelo, vamos percorrendo a história e as
transformações sofridas pela capital do Amazonas no começo do século XX e
durante o domínio repressivo da ditadura militar, bem como essas mudanças vão
se refletindo na família de Halim e na sua vizinhança.
Como já mencionei, Dois irmãos é um livro que ultrapassa
os clichês, não obstante é também uma
obra que impulsiona seus leitores mais sensíveis a sentirem os mais intensos e
diversos sentimentos pelos seus personagens. Um livro em que você ou ama os
personagens ou odeia-os.
Eu amei Nael, cuja história,
em minhas horas de meditação pós leitura, encontrei similitudes com meu próprio
passado, mas senti de enfado a ódio por todos os outros. Yaqub pela sua
arrogância e estreiteza de espírito e Omar pela sua falta de caráter e atitudes
baixas e infantis. Odiei Zana pelos seus excessos e incapacidade de ver que ela
era o verdadeiro centro e a força geradora de todos os conflitos e problemas da
família – o livro deveria ser chamado de A Mãe. Também por Domingas e Rânia,
por terem sido, na maior parte do tempo, incapazes de gritarem pela sua
independência. E por fim, também Halim, por ser um homem fraco e omissivo
diante dos inúmeros problemas de sua família. Contudo, em relação a este
último, confesso que alguns de seus poucos rompantes, nos quais demonstrou-se
mais enérgico, valeram a pena.
Só consegui torcer por Nael,
porque me identifiquei profundamente com o personagem. Apesar de suspeitar que
um dos gêmeos era seu pai, Nael nunca foi declarado como neto nem por Halim e
muito menos por Zana, que expressava antipatia pelo garoto e fazia dele o seu
moleque de recados. Trabalhava na casa como outro empregado, e os únicos que
demonstravam realmente alguma empatia por ele era Halim, que sempre o tinha por
perto contando suas histórias, e Yaqub apesar de ser bastante fechado. Mesmo
Rânia, que nunca o tratara mal, sempre o usou o rapaz em atividades braçais e
de rua no comércio da loja da família. Diante de tamanha indiferença e
negligência é natural que Nael nutrisse ressentimento por não ter sido
reconhecido por aquela família e em alguns momentos chega a ser palpável o sentimento
do rapaz.
Contudo, me identifiquei com
Nael, porque, como ele, eu também fui o filho da doméstica explorada, o
elemento a mais que vivia no quartinho dos fundos da casa, assim como ele
entregue aos estudos, uma de minhas poucas distrações. Não estive na posição
dele de filho de um dos patrões, mas conheço bem o que é estar numa casa que
não lhe pertence, na condição de agregado. Por isso, Dois Irmãos me soa tão familiar, tão próximo.
Além disso, a obra de Hatoum
torna-se um livro de memórias, algumas confiáveis, outras nem tanto, que vão
sendo costuradas pelo seu narrador, que é, ao mesmo tempo, testemunha ocular e
ouvinte de informações que vem de outros, tornando Dois Irmãos um mosaico de lembranças.
Mas nesse mosaico algumas
coisas me incomodaram bastante. Uma delas foram os capítulos demasiadamente
longos e densos em acontecimentos, o que dificultava bastante decidir uma
parada da leitura que não prejudicasse depois a retomada da narração. Mas a
principal foi os recuos e retornos no tempo, muitos deles abruptos, em meio a
descrição de um fato, desordenando e depois retornando ao ponto onde se estava.
O Autor |
A escrita de Hatoum me fez
lembra de como é nossa memória, que vai e vem, dançando no tempo, pelos anos,
sem se preocupar com a ordem. Lembranças
que puxam outras, referências que vão sendo lembradas em meio a recordação de
outro fato, mas que na narração dificultavam a leitura e a localização no tempo
da narrativa. Só para se ter uma ideia, não acreditei quando o narrador
passou a sugerir que Halim e Zana já se tornavam idosos e sentiam o peso da
idade, porque o vai e vem no tempo já havia me deixado totalmente confuso.
[SPOILER em itálico] Não posso me esquecer de mencionar que um
tema polêmico tratado no livro é a questão do incesto. Cheio de sutilezas, no
livro, a narrativa não afirma explicitamente, mas sugere um caso incestuoso
entre Rânia e seus irmãos, sobretudo, o “mais velho”, Yaqub. A recusa em se
casar, a devoção em relação ao irmão afastado, as várias horas que ficavam
trancados no quarto a sós. Tudo é tratado de forma sutil, mas vai deixando
pistas para que o leitor tire suas próprias conclusões, e se formos muito
atentos, mesmo na relação entre Zana e Omar vemos algo de sexual, mas nada me
pareceu ficar muito claro em relação a estes dois.
Mas como sempre, livros como
este também me atarem pela Geografia e pela História contidas em suas tramas.
Os igarapés, a cidade flutuante, a vida dos ribeirinhos e dos amazonenses tudo
isso me chamou a atenção. As paisagens e estilo de vida em uma Manaus do começo
do século XX, período em que a cidade passa a conhecer uma época de clara
decadência e, anos depois, a tentativa de modernização através do seu processo
de industrialização.
Ademais, em Dois Irmãos é notável a integração dos
personagens com o meio. É possível notar como as mudanças que a cidade sofre vão
repercutindo em suas personagens, porque são pessoas que ao longo da trama vão
sendo tomadas pela nostalgia de outros tempos. No processo de reconstrução
urbanística de Manaus é quando fica mais perceptível os sentimentos dos
personagens aflorarem. Uma das cenas mais dramáticas é a destruição da Cidade
Flutuante, um enorme conglomerado de casas de madeira construídas sobre toras e
que flutuavam sobre o Rio Negro e os igarapés da cidade formando uma grande
favela flutuante. A demolição do conglomerado mexe profundamente com Halim que
sofre e se enfurece diante da destruição de lugares que lhe eram tão caros. Cenas como essa mostram a integração dos
personagens com o lugar, com os cenários, algo que só havia visto nos livros de
Jorge Amado, onde os personagens não estão apenas na cidade de Salvador, mas vivem
e respiram a Cidade da Bahia, são
parte dela e ela parte deles. Hatoum
consegue efeito parecido.
A Cidade Flutuante de Manaus. Revista O Cruzeiro, 07 de Julho de 1962. Disponível em: http://idd.org.br |
Numa tarde que ele escapara logo depois da sesta eu o
encontrei na beira do rio Negro. Estava ao lado do compadre Pocu, cercado de
pescadores, peixeiros, barqueiros e mascates. Assistiam, atônitos, à demolição
da Cidade Flutuante. Os moradores xingavam os demolidores, não queriam morar
longe do pequeno porto, longe do rio. Halim balançava a cabeça, revoltado,
vendo todas aquelas casinhas serem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns
palavrões, gritava “Por que estão fazendo isso? Não vamos deixar, não vamos”,
mas os policiais impediam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado, e começou a
chorar quando viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do Rio, serem
desmantelados a golpes de machado. Chorou muito enquanto arrancavam os
tabiques, cortavam as amarras dos troncos flutuantes, golpeavam brutalmente os
finos pilares de madeira. Os telhados desabavam, caibros e ripas caíam na água
e se distanciavam da margem do Negro. Tudo se desfez num só dia, o bairro todo
desapareceu. Os troncos ficaram flutuando, até serem engolidos pela noite.
Em conclusão, Dois
Irmãos é um livro interessante que nos faz conhecer a multiplicidade
cultural e étnica que nosso país abriga e abrigou ao longo de sua história. Acho
ainda que o livro de Hatoum serve de mensagem para os muitos brasileiros que
pouco sabem sobre a Região Norte do país, sobre as cidades ribeirinhas da
Amazônia ou de seu estilo de vida, de suas cores e de seus sabores. Eu,
particularmente, aprendi muito sobre um pedacinho do país que conheço pouco. Espero
conhecer mais ainda.
A edição lida é da Editora
Companhia das Letras, do ano de 2007 e possui 266 páginas. Se quiser saber mais sobre o autor confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha (Clique Aqui).
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.
Prévia do Google Books
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