Por Eric Silva, dedico a meu pai e aos soteropolitanos.
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Quinto livro da campanha do #AnoDoBrasil, Tenda dos
Milagres é uma obra densa e fantástica pela sua qualidade crítica
e engajamento político, bem como por sua importância que supera a monotonia de
alguns de seus capítulos.
Já li alguns livros de Amado, entre eles Capitães da
Areia, e pude atestar o quanto é politizada e crítica a sua obra, talvez isso
seja uma das coisas que mais admiro no autor baiano. Contudo, tenho para mim
que Tenda dos Milagres tenha sido,
dos romances do autor que já li, aquele que revela este caráter crítico de
forma mais contundente.
O livro abriga em si uma denúncia extensiva do racismo e
da perseguição contra as religiões de matriz africana na Bahia do início do
século XX. Aborda com humor, as vezes com asco e bastante realismo, como até
mesmo a ciência era usada e descaradamente manipulada para justificar e
comprovar cientificamente a inferioridade de negros e mulatos, justificando
deste modo o ódio dispensado a estes grupos e a marginalização a eles imposta.
Politicamente engajado, mulato, pobre e frequentador do terreiro de mãe Majé
Bassan, Pedro Archanjo, personagem principal da trama, é em si a personificação
de tudo que a elite soteropolitana mais desprezava, reunindo os elementos de
ambas as discussões engendradas pelo livro, no entanto, mais do que isso, Pedro
é um personagem que veio para quebrar estereótipos e tabus e o faz
magnificamente bem.
Sinopse
A vinda ao Brasil do
professor da Universidade de Columbia e detentor do Prêmio Nobel, James D.
Levenson, causa um verdadeiro alvoroço no país, mas é quando este aporta na
Bahia para conhecer “onde viveu e trabalhou” o “homem notável, de ideias
profundas e generosas”, Pedro Archanjo, que uma verdadeira corrida por parte da
mídia é iniciada.
Aparentemente ninguém no país
sabia a quem se referia o etnólogo norte-americano e por isso jornalistas e
pesquisadores partem em uma busca frenética por desvendar o passado de Pedro
Archanjo, Ojuobá, um mulato pobre da ladeira do Tabuão, autodidata, estudioso
da herança africana na Bahia, entusiasta da miscigenação, bedel da Faculdade
Baiana de Medicina e um mulherengo incorrigível, que a despeito e contra todo o
preconceito de cor existente na Bahia do início do século XX, sobretudo nos
meios acadêmicos, defendeu a miscigenação e a liberdade religiosa e produziu
uma obra que não só abalou a ortodoxia acadêmica de seu tempo como escandalizou
a elite branca soteropolitana da época.
Narrado em dois tempos, Tenda dos Milagres conta a história,
aventuras e amores de Pedro Archanjo e de como, com ajuda de seu amigo
tipógrafo e riscador de milagres, Lídio Corró, publicara com sacrifícios seus
quatro únicos livros. Entremeado a narrativa da vida de Archanjo, o livro
resgata também os fatos que no tempo presente (década de 60) levaram sua obra –
por tanto tempo ignorada – a ser enaltecida por seus conterrâneos logo após o
reconhecimento internacional de seu trabalho.
A Ciência elitista e as teorias
racistas: os personagens Pedro Archanjo e Nilo Argolo
O autor |
O racismo é o primeiro e principal tema desenvolvido em Tenda dos Milagres. Ele é apresentado tanto na sua forma mais comum –
quando o “afilhado” de Pedro Archanjo é desprezado pela família da moça por
quem se apaixona, por serem eles brancos e o rapaz mulato – como também, e
principalmente, no embate intelectual que é travado pelos corredores da
Faculdade de Medicina entre o bedel Pedro Archanjo e o professor Nilo Argolo,
apresentando aos leitores o pouco discutido racismo científico.
Pedro Archanjo era morador de
uma região pobre da cidade alta. Órfão, não conhecera seu pai, morto na Guerra
do Paraguai. Foi criado pela mãe, mas também esta morreu de bexiga logo cedo,
dez anos depois de seu nascimento. Ainda assim se tornou um rapaz obstinado e
inteligente, curioso e amante de muitas mulheres. Pela força de sua
determinação e apoio dos amigos tornou-se autodidata e bedel[1]
da Faculdade de Medicina. Aprendeu o francês, o inglês, o espanhol e o italiano
e com sacrifício estudou muito para produzir seus livros que falavam das raízes
africanas da Bahia e da miscigenação de seu povo, o que Pedro defendia com
afinco.
Nilo Argolo, por sua vez, era
professor na Faculdade de Medicina nascido em uma das famílias mais ricas e
tradicionais da Bahia. Admirador da falsa ideia de superioridade da raça
ariana, desenvolvia e apoiava teorias de cunho racistas. Se orgulhava da
suposta “pureza” de sua família e por isso nutria um ódio particular pelo bedel,
desprezando-o não só pela sua posição baixa na hierarquia da universidade, mas
principalmente pela sua cor e pela defesa que o outro fazia à miscigenação que
tanto abominava o catedrático.
Através destes dois
personagens Jorge Amado traz a discussão o tema da ciência elitista e suas
teorias racistas do final do século XIX e início do século XX e que foram base
entre outras coisas para determinar o perfil de potenciais criminosos a partir
de características físicas como fisionomia do rosto e cor. Trata-se de um tema
difícil de se encontrar na literatura, o que me surpreendeu bastante e que
pretendo discutir mais profundamente em outra postagem.
Com Pedro Archanjo, Jorge
Amado aponta como independente da origem ou da raça todos tem a possibilidade
de ascender intelectualmente, dependo muito mais do interesse e do desejo de
fazê-lo e das oportunidades que lhe é dada, do que propriamente de outros
fatores. Archanjo é um pesquisador, um
intelectual nascido das classes mais pobres e um autodidata, politizado e
inteligente, cientista honoris causa
e ativista consciente, ao mesmo tempo que homem do povo e de comportamento
simples. Entretanto seus talentos são tardiamente reconhecidos e não por si
mesmo, mas por pressão estrangeira.
Com este personagem, Amado
desmente a teoria de seu outro personagem que vê nos negros e nos mulatos uma
raça inferior e inábil, aproveitável apenas para o trabalho braçal, e que se
isso não bastasse, ainda abomina a miscigenação por acreditar que isso diluiria
tudo aquilo que tornava a raça branca superior e mais capaz.
O racismo e a perseguição religiosa do
delegado Pedrito Gordo
Quem já leu Jorge Amado sabe
que em muitos de seus romances é forte a presença das crenças míticas do
candomblé, por isso elementos como terreiros, pais e filhos de santos e a
crença nos orixás é bastante comum em suas histórias e personagens. Porém em Tenda dos Milagres o tema toma um corpo
mais profundo e se mescla ao tema do racismo com um tom de denúncia contra o
poder político, sobretudo na Bahia da década de 1920, que criminalizava o
candomblé sob a acusação de “prática de feitiçaria e falsa medicina”[2].
Para dar relevo ao tema,
Amado cria Pedrito Gordo, o inescrupuloso delegado que com seus policiais tocam
o terror na cidade destruindo terreiros, agredindo e até matando inocentes em
nome de uma guerra que considerava santa. Mas o que se observa era que nada
mais se desejava do que uma higienização religiosa e racial. É evidente que a
perseguição religiosa empreendida por Pedrito e apoiada pela elite da cidade
tem um cunho de aversão a toda prática religiosa não católica, mas a base que
dá lastro ao ódio às religiões de matriz africana continua sendo o racismo. É o ódio irracional entre raças que se estende
também às manifestações culturais e religiosas vistas como animalescas e
macabras. Trata-se pois de um misto abominável de preconceito religioso com
racismo, em que se torna impossível separar uma coisa da outra.
Uma crítica a visão dos brasileiros em
relação ao estrangeiro
Contudo as censuras ao
racismo e à perseguição religiosa ao candomblé não são as únicas discussões de
Amado em Tenda dos Milagres. É igualmente forte a sua crítica ao
comportamento do brasileiro de supervalorizar o que é estrangeiro em detrimento
do nacional.
Jorge Amado faz um crítica
divertida ao mostrar como foi necessária a palavra e o reconhecimento de um
estrangeiro, um PHD ganhador do prêmio Nobel, para que, no Brasil, se passasse
a valorizar o trabalho de Archanjo, a tanto tempo relegado ao esquecimento. Foi
necessário que um estadunidense, vindo “do mundo desenvolvido” reconhecesse a
magnitude da contribuição teórica de Pedro para que se buscasse pela primeira
vez ouvir aqueles teóricos brasileiros que já discutiam e falavam de Archanjo,
de seu trabalho e creditavam a obra do baiano morto anos antes.
Este é um comportamento
típico na maioria da população, um aspecto da síndrome do colonizado que
valoriza demasiadamente a opinião, os modelos e de tudo quanto é estrangeiro –
do “mundo desenvolvido” – em detrimento do que é de seu próprio país.
Porém a sua crítica não para aí e Amado vai também nos
mostrando o quanto a camada empresarial brasileira começa a ver nesse
“renascimento” de Archanjo uma forma de lucrar. Dessa forma o
autor também desfia como o sistema capitalista tem o poder de tornar tudo
mercadoria e em oportunidade de lucro, muitas vezes destorcendo os fatos ou
destacando apenas aquilo que lhe é conveniente.
Bem, acho que posso ter dado alguns spoilers nesta
resenha, mas foi necessário para demostrar a importância de Tenda dos Milagres
como um livro capaz de fazer o seu leitor refletir sobre questões que muitas
vezes são ignoradas pelas pessoas. Alternando poesia, sensualidade, realismo,
misticismo e denúncia, Jorge Amado vai descrevendo a Bahia dos humildes, dos
afoxés, dos babalorixás. Este livro é parte do projeto de Amado de valorização
das classes marginalizadas pelo sistema social, ora esquecidos ora reprimidos
pelo poder político da elite, mas que são a verdadeira face da cidade da Bahia,
a cidade mais negra do país.
A edição lida é antiga, de
luxo e da Editora Record. Foi dada para mim por meu pai e possui ilustrações de
Jenny Augusto, Flávio de Carvalho e Zélia Amado.
Quer saber mais sobre o autor? Confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha do #AnoDoBrasil (link)
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[1]Empregado
de secretaria que, na universidade e em outros estabelecimentos de instrução,
aponta as faltas dos estudantes e dos professores, entre outras tarefas
administrativas. No Brasil também significa o funcionário de uma escola
responsável pela disciplina. Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
[em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/bedel [consultado em
25-09-2016].
[2]https://bahia320102myblog.wordpress.com/perseguicao-aos-terreiros-de-candomble-na-decada-de-1920/
Amei muito ler esse post!
ResponderExcluir-Maciel, Marilléia Freire. 17 anos.
Fico felizão, Maciel. Obrigado e volte sempre!
ExcluirAmei também, ajudou bastante ❤
ResponderExcluirFico muito feliz, Lara. Escrevo sempre pensando em vocês e no quanto o livro me tocam e inspiram. Obrigado pelo comentário.
ExcluirMuito boa sua análise!
ResponderExcluirObrigado! :)
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