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domingo, 19 de janeiro de 2025

Nós – Evgeni Zamiátin – Resenha

 Por Eric Silva

18 de janeiro de 2025, ano do 13º aniversário do Blog

– E que última revolução é essa que você quer? Não há última, as revoluções são infinitas. Último é para as crianças: o infinito as assusta, e é imprescindível que as crianças durmam tranquilamente à noite...

(I-330, Nós, Evgeni Zamiátin).

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas. Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Marco inaugural de um gênero literário, um universo ficcional originalíssimo e fonte de inspiração para a obra de autores famosos como Huxley, mas uma completa decepção para mim. Este é Nós, livro do escritor russo Evgeni Zamiátin.

Sinopse do enredo

Após a Guerra dos Duzentos Anos, o Estado Único saiu vitorioso e edificou uma nova sociedade, rigidamente controlada e matematicamente ordenada. As pessoas deixaram de constituir famílias, e os conceitos de pai e mãe foram completamente abolidos. As identidades e individualidades foram suprimidas, e os cidadãos passaram a ser “nomeados” de forma alfanumérica: uma letra seguida de três algarismos, como se fossem números de série. Na realidade, eles não se identificam mais como “pessoas”, mas como “números”, unidades menores e insignificantes de um “poderoso e único organismo” que vive de forma padronizada, executando suas atividades predefinidas de maneira sincronizada, conforme horários estabelecidos pela autoridade estatal.

Vivendo em uma redoma de vidro fosco chamada Muro Verde, esses números desconhecem o mundo para além de seus limites, pois a “vida nômade” foi completamente extinta. Habitando construções inteiramente feitas de vidro, desconhecem igualmente o conceito de privacidade. A atividade sexual é rigidamente regulamentada através dos chamados talões rosas, nos quais parceiros são pré-definidos e encontros são agendados com tempo limitado. Apenas nesses momentos o uso de cortinas é permitido, já que algum vestígio de pudor foi preservado pela nova ideologia.

O grandioso Estado Único é absoluto, e seu líder, o Grande Benfeitor, é venerado como uma figura divina. Ele é exaltado como um Deus terrível, cuja crueldade é apresentada como um ato de amor, pois lidera com firmeza a sociedade que, supostamente, descobriu a verdadeira felicidade e é sua missão preservá-la. Ordem, controle e padronização são as molas mestras do regime, diligentemente preservadas pelos milhares de olhos e ouvidos dos Guardiões.

O novo grande feito que o Estado Único está prestes a realizar é a conquista do espaço e de suas desconhecidas civilizações, que, segundo sua doutrina, necessitam ser iluminadas pela “felicidade matematicamente infalível” do Estado. Afinal, é dever do Estado Único “obrigá-los a serem felizes.” D-503 é o engenheiro responsável por construir a nave que cumprirá essa missão grandiosa: a Integral.

Entre as tarefas de D-503 está também a de registrar, na forma de um diário, relatos pessoais sobre como é viver na grandiosa sociedade comandada pelo Benfeitor. É através dessas anotações, repletas de exaltações matemáticas, filosóficas e até poéticas, que somos apresentados a todo esse universo. Contudo, é principalmente por meio delas que acompanhamos como D-503 começa a questionar suas convicções ao conhecer I-330, uma mulher estonteante e subversiva, que demonstra desprezo pelas regras do regime e ousa não apenas desafiá-lo, mas também cometer a ousadia de imaginar!

Sem perceber toda a trama que envolve essa mulher misteriosa e cheia de segredos, D-503 é arrastado por uma espiral de mudanças, questionamentos, dúvidas e rupturas que transformarão – talvez para sempre – a sua visão do único mundo que ele conhece e exalta.

Impressionante, não é? Ainda assim, este livro não conseguiu me cativar.

Resenha

Nosso encontro e minha queda: narração enfadonha, confusa e fragmentada

Há bastante tempo que eu queria ler Nós, principal obra do escritor russo Evgeni Zamiátin e grande marco na história de um dos gêneros literários mais queridos pelos leitores de ficção e espectadores de séries e filmes como Silo, O Conto da Aia, Snowpiercer e Admirável Mundo Novo: o gênero distópico. Mas esses não eram os motivos que me levavam a querer ler esta obra da literatura russa que, apesar de sua importância, ainda é pouco conhecida. Eu queria ler Nós porque o design gráfico da edição desenvolvida pela editora Aleph é tão absurdamente enigmático e sombrio em toda a sua simplicidade que aquele livro parecia me chamar para mergulhar nele e em seus mistérios, como um poço profundo e escuro que convida e quase traga quem ousa olhar para suas profundezas. A queda para mim, no entanto, foi fatal.

O que me impedia de ler esse livro era não tê-lo em mãos e nenhum tempo sobrando para manter minhas metas de leitura – a última vez que publiquei uma resenha foi em 2022 e escrever esta vem sendo um desafio enorme. No entanto, no ano passado me deparei com uma edição do PNLD Literário na biblioteca da escola onde trabalho e vi ali a oportunidade de cumprir a missão de ler este livro que tanto me chamava a atenção. Foram 93 dias de leitura entrecortada e, principalmente, enfadonha.

Nós é terrível de se ler! E não é por conta de ser um livro com um século de idade (1924), porque a tradução é bastante acessível em termos linguísticos e vocabulares. Nós é terrível porque sua narração é enfadonha, confusa e fragmentada.

O livro é narrado na forma de um diário, onde o protagonista relata os últimos acontecimentos vividos por ele enquanto dialoga com supostos seres alienígenas a quem destina seus escritos. Construtor da nave espacial Integral, que irá levar a ideologia do Estado Único para além das fronteiras planetárias, D-xxxx também é encarregado de escrever sobre si mesmo e sobre a maravilha que é o mundo matematicamente padronizado criado pelo Estado Único. Contudo, o narrador está completamente imerso na ideologia defendida pelas autoridades controladoras da sociedade em que vive. Ele não possui nenhuma referência do que significa viver sem ter suas atividades cotidianas padronizadas, predeterminadas e cronometradas de forma rígida e inalterável.

Ele não sabe o que é pensar por conta própria, imaginar alternativas à realidade existente ou sequer experimentar experiências banais como ser filho de alguém, ter uma fé religiosa, rebelar-se contra algo, desejar privacidade ou possuir individualidade. Nem mesmo a identidade conferida por um nome ele tem. D-503 é apenas uma sequência alfanumérica — toda a sua identidade como indivíduo. A ideologia do Estado Único é, antes de tudo, uma ideologia de despersonalização e desumanização em prol de um racionalismo exacerbado que vê na previsibilidade e na padronização matemática a única forma verdadeira de felicidade — aquela que reside no controle total dos sujeitos por meio do “privilégio da ignorância”, que nasce da ausência da necessidade de pensar por si mesmo.

Em nome dessa racionalização extremista, o Estado Único força todos os “números” a fazerem tarefas pré-definidas em horários pré-definidos, de forma coletiva, sincronizada, padronizada e mecânica, como engrenagens que sabem seu papel: girar em uma direção previamente definida, de forma sincrônica e harmoniosa, para que o todo funcione. O homem é transformado em máquina por uma ideologia mecanicista. E aqui está uma ironia de Zamiatin: o mecanicismo do século XVIII, que acreditava que o universo funcionava de forma mecânica e pré-definida, surgiu no auge do racionalismo histórico e científico.

Enfim, a despersonalização no universo ficcional de Nós é tão absurdamente profunda que os sujeitos não se veem como únicos, mas como a menor unidade de um coletivo, a tal ponto que se torna irracional utilizar o pronome pessoal “eu”; faz sentido apenas o uso do pronome “nós”, o que dá nome ao livro.

Crítica poderosa e um personagem desumanizado

Nessas questões que descrevi até então, Nós se torna uma obra filosófica poderosa, apresentando uma crítica política contundente e que que dialoga diretamente com os rumos tomados pela revolução na recém-criada URSS, onde o autor vivia e onde se sentia perseguido e censurado por determinados figurões da burocracia estatal. Contudo, as consequências para a narrativa são a morte do entretenimento e dificuldades para compreender o universo ficcional e os eventos que se desenrolam. Isso porque, se você tem um personagem despersonalizado e imerso em uma ideologia tão radicalmente “inatural” para o leitor, o resultado é um ponto de vista narrativo extremamente desafiador de assimilar e interpretar.

Enfim, Nós tem uma escrita muito diferente dos livros de ficção que costumo ler. Sua narração em primeira pessoa é bastante fragmentada, permeada por divagações filosófico-matemáticas e frases cheias de omissões e suspensões nunca havia visto tantas reticências em um único texto.

O narrador, o D-503, não busca ser objetivo na descrição dos fatos. Toda e qualquer situação que foge ao previsível e conhecido por ele recebe contornos tão nublados quanto essas mesmas situações são para ele: novas e até incompreensíveis. O narrador experimenta um turbilhão de sensações e sentimentos inéditos que lhe parecem tão estranhos e absurdos, que torna sua tentativa de pôr em palavras os fatos que vivencia um desafio hercúleo tanto para ele, “que escreve”, quanto para nós, leitores, que temos apenas sua narração como janela para antever o universo que ele descreve.

Por isso, tive dificuldade de engatar a leitura, de enxergar o que se escondia sob as muitas camadas de retórica, de compreender o que era a máquina do Benfeitor, a torre coletora ou mesmo que o governo do Estado Único se circunscrevia em um espaço territorial bastante limitado e hermeticamente fechado por muros de vidro fosco. Tudo em seu interior era igualmente feito de vidro, resistente como aço, porém transparente, garantindo a máxima vigilância sobre as ações e comportamentos de cada número. Câmeras não eram necessárias, pois as paredes de vidro permitiam que todos fossem vigiados e vigias ao mesmo tempo.

Por ser tão despersonalizado, D-503 só começa a se tornar uma pessoa à medida que interage com a rebelde e enigmática I-330, esta sim uma personagem dotada de ironia, humor negro, sensualidade e – como ela mesma diz – de imaginação. I-330 é rebelde por ser um sujeito dotado de personalidade e emoções, contradições e imprevisibilidade. Ela é um número irracional e imaginário, um √-1, infinito e não sequencial, um ser cíclico, nunca linear.

É ao se apaixonar por I-330 e se enredar em seus planos conspiratórios e subversivos que D-503 começa a se pintar de cores, revelando-se naturalmente egoísta, vacilante, possessivo, infantil, inconsequente e pouco confiável. D torna-se gente. E é ao se tornar gente que a narração passa a ser mais fluida, segura, coesa, clara e compreensível. O curioso é que o editor opta por mudar a fonte tipográfica nos capítulos onde essa mudança de fluidez estilística acontece, e retorna à fonte original quando ela é [ALERTA DE SPOILER] prematuramente abortada.

Por isso, meu amigo leitor, Nós só foi se tornar interessante para mim quando já estava acabando, o que explica, em parte, os 93 dias de leitura – o trabalho também me priva do tempo necessário para ler.

Conclusão

Enfim, uma obra importante, que inaugurou o gênero distópico, apresentando um cenário futurístico originalíssimo – depois que você começa a entendê-lo –, trazendo uma crítica política poderosa e marcante, que influenciou gerações de escritores, sendo a principal fonte de inspiração para Aldous Huxley ao escrever seu deslumbrante e icônico AdmirávelMundo Novo Huxley, de fato, incorpora diversas ideias centrais de Nós, adaptando-as para sua própria visão.

Foi, no entanto, para mim, uma trágica decepção. A narrativa desafiadora e a fragmentação estilística tornam a leitura cansativa, exigindo paciência e esforço para apreciar a genialidade que se esconde sob suas camadas densas de simbolismo e crítica. Ainda assim, recomendo veementemente a leitura, especialmente em uma época de crise da originalidade como a que vivemos no início deste novo milênio. E me desculpem a resenha superficial – estou enferrujado.

A edição lida é da Editora Aleph, com tradução de Gabriela Soares, do ano de 2021 e possui 344 páginas. Título original: Мы.

Sobre o autor

Ievguêni Zamiátin (1884–1937) foi um escritor, engenheiro naval e dramaturgo russo, amplamente reconhecido como o autor do romance distópico "Nós" (Мы), que é considerado uma das primeiras obras do gênero distópico moderno e uma influência direta em livros como 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.

Zamiátin morreu em 1937 em Paris, aos 53 anos, devido a problemas cardíacos. Seu exílio e morte em terras estrangeiras simbolizam a repressão enfrentada por muitos artistas e intelectuais que ousaram desafiar regimes autoritários.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Descolorindo Eloáh – Felipe Saraiça – Resenha

 Por Eric Silva

15 de janeiro de 2022, ano de Moçambique

Transexualidade é a sintonia que une feixes de luzes desassociados entre si para ajustar o foco de maneira nítida e real. Não configura uma aberração e nem caracteriza um ser bizarro.

O gênero de uma pessoa é apenas uma condição que não afeta sua alma, seus sentimentos, crenças e tão pouco seu caráter.”

Luiza Gosuen

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Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Abordando um tema cujo debate é tão polêmico quanto necessário, o escritor brasileiro, Felipe Saraiça publica, em 2019, pela Editora Pendragon, um livro cujo título chama a atenção pelo tom poético e até certo ponto melancólico e com uma capa tão bela quanto delicada. Mas mais do que isso, o faz nos primórdios de um momento obscuro da história de nosso país, no qual a intolerância, a ignorância, o fanatismo e o radicalismo vem endurecendo corações de muitos contra a causa LGBTQIA+. Saraiça não podia ter escolhido momento melhor para fazê-lo.

Descolorindo Eloáh apesar de algumas falhas literárias é uma obra importante porque discute a transexualidade por uma dimensão ainda pouco debatida: a relação entre fé e sexualidade. Um debate que precisa ser aprofundado, porque ainda é gestora de aberrações como a terapia de reversão sexual, ou, no popular, “cura gay”, abordada pelo autor em seu livro.

Sinopse do enredo

Quando Eloáh nasceu seu pai, Silas, escolheu seu nome porque significava literalmente Deus, um nome um tanto incomum para um menino, mas que refletia a imagem de religioso e de pastor respeitado da pequena Cidade de Confete que Silas desejava construir. A esposa havia desejado uma menina, mas a chegada de um garoto encheria o pai de felicidade e de orgulho. E por um tempo foi bom.

As coisas, no entanto, começaram a ruir quando a pequena Eloáh, ao saber por sua mãe que todos na família esperavam que nascesse uma menina, questionou inocentemente ao pai se ela poderia ser menina quando crescesse. A aquele foi o último dia que Silas olhou com amor a própria criança e o marco inicial de sua cruzada por eliminar o que para ele era repulsivo, inaceitável e danoso ao seu status social: a identidade transexual de Eloáh. Era necessário “curá-lo”, ainda que isso custasse destruir todos a sua volta, inclusive a filha.

Agora, com 17 anos de idade e flertando rotineiramente com o desejo de suicidar-se, Eloáh enfrenta todos os dias a submissão, o silêncio e a omissão de sua mãe em relação aos excessos violentos de Silas. Uma situação que reforça na cabeça da jovem a certeza que não existe amor para ela naquela casa, apenas o desejo insano de seu pai em preservar as imagens de pastor e de família perfeita e conservadora que com muita falsidade, talento teatral e hipocrisia ele construiu ao longo do tempo.

Sentindo que não há lugar para ela na vida, Eloáh vivencia na pele um circo de horrores cujo espetáculo se repete diariamente, tendo como palco principal a casa onde vive, mas também a escola onde é obrigada a conviver com o bullying e com a impunidade de seus agressores que atuam protegidos por seus sobrenomes e status sociais.

Resenha

Descobri esse livro por acaso, no Twitter, em uma publicação da editora que naquela ocasião fazia uma promoção de alguns dos seus ebooks.

Nunca havia ouvido falar de seu autor e nem de sua obra, mas de imediato Descolorindo Eloáh me chamou a atenção pelo título criativo e sugestivo emoldurado por um delicado desenho que fazia supor uma aquarela. E caso você não saiba, aquarelas perdem parte de suas cores ao secarem e com o tempo podem desbotar (sobretudo as aquarelas líquidas de má qualidade); isso faz das cores de uma aquarela recém pintada uma beleza efêmera e mutável. Sugestivo, não? Por isso, não perdi tempo em adquirir minha cópia deste e de outros livros de Felipe, mas comecei minha excursão por esta que aparentemente é a segunda obra publicada pelo autor, tendo estreado apenas três anos antes com o livro Palavras de rua.

Adianto que gostei e não gostei de Descolorindo Eloáh, o que ironicamente me deixou tão dividido quanto a própria Eloáh. E para que as coisas fiquem mais claras dividirei a resenha em dois tópicos. O primeiro abordando a relevância política desta obra e o segundo apontando minha apreciação crítica da obra em quanto peça literária.

Descolorindo Eloáh como obra com relevância política

Não é nenhuma novidade que a questão LGBTQIA+ é permeada por lutas, tabus, polêmicas e muito desconhecimento. O Brasil é um dos países que mais matam homossexuais e transexuais no mundo, e o conservadorismo religiosos muito presente no país pouco contribui na convivência sobretudo familiar destas pessoas. Tudo isso num contexto no qual a família é o principal porto seguro para o desenvolvimento equilibrado e saudável de uma pessoa LGBT.

Não estou aqui com a pretensão de criticar nenhuma religião, mas é nítido que muitos discursos proferidos pelo país usam os escritos sagrados como escudos para camuflar preconceitos e intolerância, quando a palavra de ordem no cristianismo é o AMOR. E quando falta amor e entendimento numa família que tem uma pessoa LGBT, os problemas de ansiedade e depressão, de uso abusivo de substâncias lícitas e ilícitas e o desejo de cometer suicídio[1] são muito maiores e frequentes, porque estas pessoas não só enfrentam desafios dentro de suas casas, mas sobretudo fora delas onde são alvos corriqueiros de preconceito, discriminação e violência. E quando se fala de Brasil, o que mais há é muito desconhecimento sobre a complexidade da sexualidade humana e de seus gêneros; pouca disposição para um debate saudável e racional da questão, e abundantes quantidades de preconceito, discriminação, homofobia e transfobia impregnadas em muitas das esferas que compõem a sociedade brasileira, sejam elas religiosas ou não.

Falar de homossexualidade, de bissexualidade, de transexualidade ou de transgênero é ainda difícil e, por vezes, perigoso. Isso torna a discussão penosa, bem como torna árduo explicar o quão complexas são a sexualidade e a identidade de gênero do ser humano, sendo elas compostas por muitas matizes e com fronteiras muito tênues.

A tendência é partir para uma simplificação tosca que insiste em enquadrar sexualidades e gêneros em caixinhas rígidas e pré-moldadas que só reconhecem a existência de dois gêneros definidos biologicamente e de duas sexualidades – heterossexualidade e homossexualidade –, sendo a primeira considerada como legítima e natural e a segunda, como marginal, anormal e pecaminosa. Desta concepção cria-se um sistema social discriminativo ao qual se dá o nome de heteronormatividade.

Em muitos países a homossexualidade é criminalizada e a transgeneridade é vista como distúrbio mental. Até recentemente a Organização Mundial de Saúde (OMS) mantinha a transgeneridade na lista de doenças mentais presente no manual de Classificação Internacional de Doenças (CID)[2]. Só em 2018 a Suprema Corte da Índia decidiu revogar uma decisão de 2013 que validava uma lei britânica de mais de 150 anos e que, na prática, criminalizava a homossexualidade no país. O próprio Reino Unido só descriminalizou completamente a homossexualidade em 1982[3], quando a Irlanda do Norte foi seu último "país constituinte" a fazê-lo. Esses são apenas três exemplos dos muitos e variados reflexos da heteronormatividade.

As consequências sociais, psicológicas e familiares para aqueles que não se enquadram nessa normatividade são terríveis, mas nem sempre visíveis. Mas das questões LGBTs pouco conhecidas pelo brasileiro médio, sem dúvida nenhuma, a questão da transgeneridade é uma das mais ignoradas – por vez até mesmo pela comunidade LGBTQIA+.

Em uma explicação grosseira, transgênero é o indivíduo que possui uma identidade de gênero que difere do que é considerado típico ao sexo atribuído ao nascer. Desta forma, o indivíduo transexual o qual ao nascer foi atribuído o sexo masculino, pode identificar-se com a identidade de gênero oposta a este sexo, sendo ela uma mulher trans.

Isso significa dizer que, a medida que se desenvolve, esse indivíduo olha para si no espelho e não vê em seu corpo correspondência com o que ele sente que realmente é e se identifica. Porque os gêneros masculino e feminino são muito mais uma construção histórica e social do que biológica, e se não fosse a pressão sociocultural, as pessoas perceberiam o quão complexo é o gênero. Um exemplo disso é o gênero fluído.  Pessoas que são fluídas de gênero ou não se identificam com um único papel de gênero ou com uma única identidade de gênero, ela acaba flui entre eles. Há ainda o caso daqueles cujo gênero muda de tempos em tempos.

O mesmo se dá com a sexualidade que pode ser mais ou menos flexível e as vezes fluídas.

É neste terreno que Felipe insere sua narrativa, criando para Descolorindo Eloáh uma protagonista transexual – tema ainda pouco representado na literatura LGBT –, e vai longe ao inserir na trama outras duas questões tangenciais, igualmente polêmicas e ainda menos exploradas (agora não só na literatura como socialmente): a relação entre fé, família e pessoas LGBTs e as terapias que prometem a reversão sexual.

Escrito como o diário de uma refém da intolerância, Descolorindo Eloáh narra pela voz de uma garota trans a sua rotina de terror psicológico, de violência física e simbólica perpetrada sobretudo por seu pai e por seus colegas de escola, e alimentado pela omissão da mãe e da escola.

O pai de Eloáh é pastor e profundamente homofóbico e transfóbico. Para ele a filha é uma aberração e seu comportamento, os sintomas de uma doença. Ele não perde uma oportunidade para hostilizar, humilhar e diminuir Eloáh. A situação doméstica é a pior possível: tóxica, violenta, sufocante.

Pelo fato de ser pastor poderíamos simplificar dizendo que ele rejeita a identidade de gênero da filha porque considera isso uma violação dos desígnios divino, concebendo-a como pecaminosa e antinatural. Mas é anda pior, porque é também uma questão de imagem e status social.

Silas é um homem corrupto, hipócrita e misógino que se esconde atrás da fé para criar uma imagem de bom moço e pessoa religiosa, logo, digna de mérito e respeito por ser um homem cristão que construiu uma família temente a Deus. Este homem que é respeitado pela cidade e que em casa se alcooliza, violenta psicologicamente a filha, trai, manipula e agride verbalmente a esposa, é o mesmo que lidera uma comunidade religiosa que – pelos indícios deixados pelo autor – tem a mesma visão distorcida sobre as questões de identidade de gênero e de sexualidade que seu pregador. Para esta comunidade, Silas necessita ser a verdadeira personificação da integridade, retidão e honestidade, e se esta é uma comunidade conservadora, ele também não pode ter como filho uma garota trans. Ela precisa “ser homem” e se comportar como “homem”. Aqui temos uma mistura perigosa e explosiva:  uma pessoa que considera a transegeneralidade (e também a homossexualidade) pecaminosa e antinatural e que necessita manter uma coerência entre o que prega e a imagem de si e da família que exibe à sociedade.

Ainda que tenha aqui corrido o risco de generalização, o autor denuncia uma das três posturas comuns das igrejas cristãs no Brasil em relação às uniões homoafetivas e que são descritas pelas pesquisadoras Daniele Trindade Mesquita e Juliana Perucchi[4]:

***

“De modo geral, as posturas das igrejas cristãs no Brasil em relação às uniões homoafetivas podem ser classificadas em três tipos: a rejeição à homossexualidade, concebendo-a como pecaminosa e antinatural. Assim, há o acolhimento dos/as homossexuais pela igreja, desde que eles/as reconheçam que precisam mudar seu comportamento. Outro tipo de postura encontrada no meio cristão é aquela que aceita a conduta homossexual, embora a considere inferior à heterossexual. Existem ainda os defensores da ideia de que a homossexualidade tem o mesmo nível de dignidade que a heterossexualidade (Jurkewicz, 2005). Dentre os três posicionamentos, o mais presente e disseminado é o primeiro, segundo o qual a homossexualidade estaria em um nível inferior na hierarquia das sexualidades (Rubin, 2003), o que justificaria o uso de dispositivos religiosos regulatórios e corretivos com os/as homossexuais. Esta postura é justificada muitas vezes por trechos da Bíblia, interpretados de forma literal pelos/as religiosos/as, de modo que não são consideradas a época histórica e a cultura em que os textos foram escritos originalmente. Dessa maneira, tanto o Antigo, quanto o Novo Testamento são reiterados para justificar a condenação aos homossexuais pelas igrejas. Trechos dos livros de Gênesis, Levítico e Coríntios são os mais citados, sendo que as narrativas de Sodoma e Gomorra e as cartas paulinas recebem destaque.

***

Eu ainda não havia visto na literatura alguém entrar neste terreno antes, mas pelas sinopses de seus outros livros é nítido que Felipe é atraído pelos temas difíceis e polêmicos, o que acho ótimo, porque é um deleite literário sair dos lugares comuns. Mas aqui, especificamente, a coragem de Felipe é tão digna de nota quanto a relevância que a obra ganha por três motivos iniciais: dar visibilidade a questão trans e pôr na mesa o preconceito religioso contra os LGBTs, bem como muitas vezes a fé é usada como justificativa para a violência psicológica e moral contra estas pessoas.

Mas não para por aí. Silas tenta “corrigir” sua filha, ou melhor, “curá-la” através de um tratamento psicológico duvidoso com uma psicóloga tão amoral e antiética que faz arrepiar os cabelos de qualquer profissional da área. Eloáh é submetida ao que o jargão médico chama de Terapia de Reorientação Sexual (chamada ainda terapia de conversão, terapia reparativa ou terapia de reversão sexual), ou como no popular: cura gay. Uma falsa medicina que parte da ideia de que a homossexualidade e a transgeneridade são patologias, doenças ou desvios que podem ser “curados” com terapia, ou práticas, testemunhos e conversões de fé.

As consequências para a saúde psicológica e emocional das pessoas submetidas a tais tratamentos costumam ser devastadoras, mas a prática é comum em diversas comunidades religiosas, e como denunciam Flávio Conrado, Gabriella Morena e Bob Luiz Botelho[5]:

***

“Centenas de igrejas, ministérios e comunidades "terapêuticas" em todo o país continuam usando a prerrogativa de sua liberdade religiosa para ofertar a possibilidade de mudança da sexualidade. Sem base científica e comprovadamente ineficaz, ela causa danos muitas vezes irreparáveis à saúde mental de pessoas LGBTQIA+ o recorrerem ao apoio de suas lideranças religiosas por imaginarem sua sexualidade ou gênero errado ou desordenado.

Profissionais "reversionistas" defendem que "uma pessoa homossexual infeliz com sua sexualidade tem o direito de procurar ajuda", mas este suposto acolhimento guarda, na verdade, uma perniciosa armadilha: quem procura apoio está assolado por dúvidas sobre si, sobre sua fé e com medo de rompimentos na família e na comunidade religiosa. O discurso de ajuda pode soar esperançoso, mas é extremamente violento. Por que tais profissionais não questionam a estrutura de exclusão a que pessoas LGBTQIA+ estão submetidas, contexto onde emerge sua sensação de inadequação, angústia e pedido de mudança?”.

***

Um ano antes da publicação de Descolorindo Eloáh, a prática de reversão sexual por via psicológica foi liberada no Brasil após decisão do juiz federal Waldemar Claudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal no Distrito Federal, o que contraria a resolução CFP n° 001/99, de 22 de março de 1999 cujo artigo 3, parágrafo único, determina que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”[6]. Contra a decisão do magistrado, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) entrou no Supremo Tribunal Federal com ação que pedia cassação do disposto pelo juiz da 14ª, o que aconteceu em abril de 2019, depois de uma liminar concedida pelo STF.

Essa é a quarta razão pelo qual Descolorindo Eloáh é relevante ao debate.

A quinta e última é a descrição que Felipe faz do transtorno de disforia de gênero[7] vivido por Eloáh e que lhe causa a sensação de incompatibilidade entre seu sexo anatômico (masculino) e sua identidade de gênero (feminina) e que lhe causa angústia e um sentimento de rejeição a própria imagem.

Felipe só comete alguns deslizes aparentes e que foram primeiro percebido pela minha colega skoober Luisa Leão (ou Diva). Até certo ponto concordo com minha colega em alguns pontos. O primeiro deles é a cura um tanto rápida e quase completa da disforia. De fato, foi pouco realista a forma como as coisas foram feitas. Elóah quase que resolveu sozinha um problema que perdurou anos e que é de tratamento longo com acompanhamento terapêutico.

Segundo, se Eloáh é uma mulher trans (e esse foi o entendimento que eu tive tanto pela sua pergunta se poderia ser menina como a forma como o personagem Luis se refere a ela no fim do livro, usando o feminino), ela não se referiria a si mesma usando o masculino como acontece insistentemente ao longo de toda a obra. Ela poderia até usar o masculino para se comunicar com as outras pessoas diante das circunstâncias difíceis que vivia, mas usaria o feminino ao se referir a si mesma na narração dos fatos.

Talvez tenha faltado um pouco mais de cuidado com os detalhes.

Vamos a crítica literária.

Descolorindo Eloáh como peça literária: minha crítica

Em termos literários, Descolorindo Eloáh revela ainda que Felipe estava ainda na época um pouco “verde”. Um escritor ainda em busca de um estilo próprio ou definitivo.

Uma das coisas que me chamaram a atenção na forma como a narrativa foi pensada, foi algumas escolhas feitas pelo autor, detalhes, coisas até certo ponto irrelevantes, mas algumas delas me pareceram bastante estranhas enquanto outras me encantou pelos significados imbuídos.

A primeira destas miudezas eu já abordei de certa forma: o título da narrativa.

Descolorindo Eloáh tem um significado dentro da história que lhe é não só poético como bastante apropriado. Ao longo do livro, a personagem vai sendo vítima constante de bullying dos colegas da escola, negligência e indiferença dos educadores funcionários, do desamor e crueldade dos pais e da falsa ciência da suposta psicóloga contratada por seu pai. Isso vai, pouco a pouco, minando o mundo da garota, sua autoestima, o seu amor e sua identidade, seu desejo de viver, sua confiança na vida e nas pessoas. “Como um quadro de aquarela barata jogado na chuva ela vai perdendo suas cores, sua vivacidade. Nada mais apropriado do que o título que o autor confere a sua obra.

O segundo detalhe que me chama a atenção é o nome da personagem que também fala muito da mesma.

Eloáh não é exatamente um nome comum e por isso se destaca facilmente, chama a atenção. Mas mais do que isso, há dois outros aspectos peculiares neste nome. Em primeiro lugar, o nome Eloáh, no Brasil, é majoritariamente escolhido para meninas, mas aqui nomeia um personagem de sexo masculino. Além disso é um dos muitos nomes que designam a divindade dos cristãos e dos judeus, que - apesar das muitas representações artísticas insistirem em representá-lo como alguém do sexo masculino, na verdade é uma divindade sem gênero definido e que no passado já foi referido em ambos os gêneros[8].

Não sei até onde Felipe pretendia, mas ele faz aqui uma associação bastante peculiar. Eloáh é uma pessoa trans e todos os seus problemas estão ligados a essa não correspondência entre sexo biológico e o gênero que ela reconhece como seu, e seu nome – visto no Brasil como feminino – é um dos nomes de uma entidade sem gênero definido, pois como a igreja católica mesma já afirmara: Deus não é homem ou mulher, é Deus. Seja como for, o nome escolhido sugere antecipadamente essa ambivalência (?) ou transitoriedade (?) entre gêneros e ao mesmo tempo - e isso é certo - dá a ideia de que a definição binária do gênero é algo que não dá conta da diversidade de identidades existentes na complexidade do que é ser humano.

As outras miudezas revelam algumas fraquezas da escrita do livro.

O primeiro é um problema de estilo. Felipe na época ainda estava amadurecendo seu estilo, por isso, há uma insistência – bastante repetitiva – de concluir ideias e sobretudo capítulos com frases de efeito. Esse tipo de recurso é interessante e em alguns momentos elegante, poético ou reflexivo, mas quando usado em demasia torna-se cansativo.

 O segundo problema é uma questão de desenvolvimento. A narrativa se desenvolve segundo um padrão, uma rotina, o que torna enfadonho e previsível o próximo passo que a trama dará, ainda que o autor sempre acrescente um pequeno elemento a mais em cada novo capítulo.

O ciclo quase sempre é: Eloáh está em casa e enfrenta os problemas familiares; sai de casa e vai para a escola e lá assiste às aulas e enfrenta seus problemas escolares (sempre nas aulas da mesma professora – o que não é nenhum pouco realista, sou professor, posso falar); depois retorna para casa e o ciclo recomeça. Um pouco mais a frente quando avança a narrativa essa rotina ganha mais um acréscimo: as visitas ao consultório da psicóloga e o padrão passa a se repetir com mais este elemento, de modo que o leitor já intui o cenário em que se dará o capítulo seguinte.

Tipo isso: se Eloáh está em casa, no capítulo seguinte estará na escola. Se sai da escola, é provável que irá direto para casa ou para o consultório. E em um desses dois movimentos (na ida ou na volta da escola) certamente encontrará Luís, o vizinho idoso por quem Eloáh cultiva – e por Luís é também cultivado – um misto de piedade e de carinho filial. Em quase a totalidade do livro, Eloáh não escapa disso, não faz grandes desvios, não se aventura pela cidade, não tem um refúgio, um lugar secreto, uma casa na árvore que fosse ou um banco de praça de onde gostasse de olhar o tempo. Ela não tem momentos de loucura, de rebeldia, de fulga! E isso, sério, cansa muito!

Toda narrativa que já li e que fala de jovens e seus problemas existenciais tem, ocasionalmente, grandes mudanças de cenários, momentos de viverem a cidade, a vila, o campo. Há sempre pontos de ruptura com a rotina e isso é um descanso para o leitor. Um ponto a mais para mantê-lo interessado.

Vejo bastante esta fórmula nos animes: há sempre um acampamento, uma ida à praia, um encontro – o famoso dēto suru (デートする) ou só dēto (デート), um festival com hanabi (花火 – fogos de artifícios) e coisas do gênero que ajudam – sem abandonar a essência da narrativa – a lhe dar mais dinamismo, novos cenários, momentos mais suaves antes de situações mais pesadas, tensas ou depressivas. Bons exemplos são: Koe no Katachi (聲の形), conhecido no Brasil como A Voz do Silêncio, que é uma animação que trata de temas delicados como suicídio e bullying; e o j-drama (dorama japonês), Fujoshi, Ukkari Gay ni Kokuru (腐女子、うっかりゲイに告る, algo meio intraduzível para mim), que trata de forma delicada e muito melancólica da homossexualidade masculina na adolescência, do fenômeno Boy Love (BL) e a questão do suicídio em um país ainda muito conservador e preconceituoso.

A história contada por Felipe é potente, é dramática e forte. Eloáh vive em carne viva, e sei que a rotina é um elemento que dá maior realismo a trama, além de figurar o quão esvaziado de sentido se encontrava a vida dela. Mas senti que – literariamente e para os padrões de exigência dos leitores atuais – esse fluxo repetitivo da rotina de Elóah se reproduziu demasiadas vezes, acabando por se tornar um vício da trama. Inclusive, trata-se de um vício tão arraigado que em um dos capítulos o livro apresenta uma falha de continuidade por conta do costume de se seguir o já citado roteiro (casa – escola – consultório – casa).

A falha é minúscula mas não me escapou.

No capítulo 44, após chegar da rua Silas questiona o que a filha foi fazer naquele dia, um sábado (e isso foi bastante enfatizado), e depois há um conflito entre os dois. Eloáh se recolhe ao seu quarto e uma tempestade se instala sobre a cidade. Contudo, no capítulo seguinte, quando o dia amanhece (ou seja, no dia seguinte a briga e que deveria ser domingo), Eloáh acorda e, ao ver o noticiário, agradece pela suspensão das aulas em decorrência do temporal ocorrido durante a noite.

Aula no domingo?” Foi meu questionamento na hora que li, e como o texto não é claro se a suspensão era apenas para aquele ou para vários dias, só pude supor uma falha de continuidade na narrativa.

Felipe ainda tem algumas esquisitices meio estranhas. Uma delas é a escolha do nome da cidade que – apesar dos muitos nomes estranhos de municípios brasileiros – para mim não fez o menor sentido (Cidade de Confete). Outra é o fato da psicóloga usar "cubos de açúcar" (isso existe no Brasil?).

Mas críticas a parte, ele me aparenta ser um talento em desenvolvimento. Ademais, é valido recordar que quer outro escritor que hoje é renomado, um dia foi – na aurora de sua carreira – alguém que escrevia de forma ainda crua, com falhas ou imitando o estilo algum autor ou movimento já consagrado. É plenamente compreensível e nem Machado de Assis escapou disso (leiam Helena – livro chatíssimo e piegas da fase romântica de Machado).

Mas chega! Acho que já deu para entender minha dificuldade de me identificar com a escrita do autor, ainda que eu recomende veementemente a leitura da obra.

Conclusão

Para finalizar gostaria apenas de falar do que achei da construção psicológica de Eloáh e, na tangente, dos personagens de um modo mais generalizado.

De um modo mais geral, alguns personagens foram construídos de uma forma um tanto caricatural ou um pouco sem personalidade, a exemplo de Silas (que é demasiadamente perverso para se fazer completamente crível); do aluno e terror de Eloáh, o playboy Nicolas (que nada mais é que um valentãozinho que se apoia no prestígio de sua família e na permissividade interesseira da direção da escola); da psicóloga picareta Elisa (que é um pouco sem personalidade, mas que me fez crer que os órgãos de regulamentação da profissão deveriam ficar mais atentos aos profissionais em exercício); e da mãe dominada – e um tanto marionete – de Eloáh (que encarna o papel clássico de mulher muda e dominada, vítima e cúmplice da violência perpetrada em casa).

Qualquer um deles poderiam ser reais? Acredito que sim, porque personificam realidades de fato: hipocrisias religiosas, violência doméstica, clientelismo, privilégios sociais, picaretagem de falsos médicos e mulheres que “por amor” se silenciam frente a violência contra elas e contra seus filhos. No entanto, não consegui ver muita profundidade e complexidade nestes personagens. Eles são reflexos da realidade, mas não me pareceram de fato reais. Eloáh, no entanto, me convenceu muito mais.

Eloáh é repleta de medos, frustrações, complexos, receios, desejos e dores. Uma miscelânea de sentimentos. E mais do que isso, ela é sensível, e não apenas porque consegue sentir no ar as tensões entre seus pais, a hipocrisia e a transfobia nas ações e falas de seu pai ou porque lê o preconceito estampado nos olhares dos moradores da Cidade de Confete ou na crueldade de seus colegas de turma. Não. Eloáh é sensível sobretudo porque ainda preserva dentro de si a força para ser gentil mesmo com quem negligencia o seu bem-estar (a mãe), ou com aqueles que só necessitam de um pouco de atenção (Luís, o vizinho idoso e viúvo que remói a perda da esposa).

Eloáh não sabe lidar muito bem com o afeto e atenção que Samuel (único amigo de Eloáh, negro, homossexual[?] e que se torna o principal porto seguro da garota), que Lilian (professora nova de língua portuguesa) ou mesmo que Luís lhe ofertam – porque só conheceu a dor e a violência onde deveria haver carinho e proteção. Mas ainda assim, consegue manter parte de si íntegra, amorosa, yasashī (やさしい)[9].

Isso não quer dizer que ela não guarde dentro de si sentimento de revolta, de raiva, mas o que mais transborda por seus poros é uma sensação de cansaço misturado a aflição que lhe faz flertar com o suicídio. Mas em meio a esta névoa, Eloáh é fundamentalmente uma jovem capaz de pequenos e belos atos de gentileza. Tudo isso a torna bem mais complexa do que aparenta e isso me fez me identificar bem mais com ela do que com a maioria dos protagonistas de sua vida.

Enfim, penso que Felipe tem futuro e provavelmente seu livro mais recente, Para onde vão os Suicidas?, deve corrigir parte das limitações que percebi em Descolorindo Eloáh, porque todo autor é um escritor em construção. Gostaria apenas de pontuar que achei o desfecho (epílogo) um pouco exagerado. Havia como dar destino a Silas de outra forma, com resultado semelhante, porém mais crível. E senti falta de um “o que aconteceu depois” mais detalhado no caso da protagonista.

Ademais, independente de minhas críticas, o livro é importante, sua leitura é necessária, principalmente como porta de entrada para conhecer o tema da transgeneridade em sua relação com os conflitos familiares, religiosos, sociais e psicológicos. Importante também porque denuncia a falsidade dos tratamentos que prometem a “cura” de algo que não é doença, não é pecaminoso e muito menos anormal.

A edição lida é da Editora Pendragon, do ano de 2019, digital, e sua versão física possui 242 páginas.

Sobre o autor

Felipe Saraiça é vencedor do prêmio Pérolas da literatura e escreve desde 2016. É autor de Palavras de rua — que foi adaptado para o cinema —, Para onde vão os suicidas, Descolorindo Eloáh e o livro de poemas O amor é um plágio. Já quis ser jogador de futebol, cantor, mas acabou se encontrando verdadeiramente na literatura, um sonho que surgiu de forma repentina, mas se tornou parte essencial da sua vida. Aborda assuntos delicados em suas narrativas e acredita que os livros têm o poder de transformar as pessoas. Também ganhou o Festival de Cinema de Caruaru com o longa-metragem baseado em seu primeiro livro, ao qual escreveu o roteiro junto ao produtor Léo Batista.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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[4] MESQUITA, Daniele Trindade; PERUCCHI, Juliana. Não apenas em nome de Deus: discursos religiosos sobre homossexualidade. Psicologia & Sociedade [online]. 2016, v. 28, n., pp. 105-114. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1807-03102015v28n1p105>. Acesso em: 18 jan 2022.

[9] Desculpem-me por recorrer a um termo estrangeiro, mas é que o entendimento japonês do que é ser gentil traduz com mais fidelidade meus sentimentos e impressões em relação ao desenho psicológico do personagem. Sei que pouquíssimos conseguirão compreender-me usando este termo – yasashī – mas para os japoneses ela descreve a pessoa que é dotada de compaixão pelos outros, de sentimentos delicados, de modéstia, de humildade, de bondade, de suavidade ou algo que possui uma natureza refrescante e graciosa.

domingo, 4 de outubro de 2020

[#MeusLivros] Admirável Mundo Novo – Aldous Huxley – Resenha

Por Eric Silva

Dedicado à ex-professora de Inglês

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Edição de bolso que ganhei na aurora dos meus 18 anos de idade
 e que me acompanha até hoje.
Distópico e desolador, Admirável Mundo Novo foi o último livro a marcar minha adolescência deixando impressões que influenciaram meu pensamento político e social ainda no começo da minha vida adulta. Um romance sobre uma sociedade supertecnológica e consumista que aboliu a família, a religião e as relações duradoras em nome de uma felicidade programada e determinada pelo estado. Um livro cuja crítica social se torna cada vez mais atual apesar dos mais de setenta anos de escrito.

Confira a resenha.

Sinopse

Após uma guerra que revolucionaria a história da humanidade, a sociedade é inteiramente reorganizada entorno de um regime totalitário baseado em princípios científicos, com divisão social em castas e que prega a felicidade eterna. Nessa nova organização social de escala planetária, famílias e religiões forma abolidas tornando-se um mundo de pessoas biologicamente programadas em laboratório, e adestradas para cumprir um papel predeterminado na sociedade. Um mundo altamente tecnológico que proibiu a literatura e exalta o avanço da técnica e a uniformidade. Esse é o cenário de Admirável Mundo Novo, obra mais conhecida do escritor inglês Aldous Huxley publicado pela primeira vez em 1932.

Resenha

Eu e Admirável Mundo Novo

Ganhei esse livro de minha professora de Língua Inglesa já no final do último ano do Ensino Médio, como uma lembrança dos últimos três anos em que fui seu aluno. Ela, é claro, acertou em cheio em sua escolha, porque não há presente algum que me faça mais feliz do que ganhar um livro. É um tipo de presente que não me desfaço e que conservo com carinho. A prova disso é que os primeiros livros que ganhei na vida estão comigo há quase 22 anos.

Mas Admirável Mundo Novo significa muito mais do que uma lembrança carinhosa de alguém que admiro como ser humano e profissional docente, ele marcou um período de mudança para mim e se tornou uma importante referência no meu posicionamento crítico e político. Dentro da lista dos livros da Minha infância e adolescência, ele representa o último portal que atravessei antes de me tornar um leitor maduro.

Era dezembro de 2008, eu tinha 18 anos e o fim do ensino médio marcava para mim uma mudança profunda: o fim da vida escolar como eu a conhecia. Era o fim daquela rotina a qual estava acostumado desde os meus três anos de idade, e confesso que só não me sentia assustado com o que estaria por vir, porque sempre tive maturidade o suficiente para me manter equilibrado diante da mudança.

Sabia que o fim do período escolar marcava um momento em que se abriria para mim uma nova perspectiva: a vida adulta (que na verdade se iniciara um ano antes com o adoecimento de minha mãe) e também a vida acadêmica (que eu adiaria até meados do ano de 2010). De fato, um mundo novo de possibilidades e novas experiências me projetariam para além do universo e da rotina que eu conhecia até meus malformados 18 anos. O Eric CDF da escola daria lugar ao acadêmico, a um Eric mais crítico e fortemente ligado à ciência, à crítica social e à literatura como um todo. 

Como o protagonista do livro de Aldous Huxley, eu deixaria o mundo que conhecia para contemplar as maravilhas e os dissabores de outro, desconhecido. Por outro lado, também como ele, esse indivíduo que contemplaria e vivenciaria um mundo novo estaria de toda forma fortemente ligado e alicerçado no seu, no meu caso, o passado escolar, porque sou o que meus professores fizeram de mim, e eles são partes que compõem o meu todo.

Li Admirável Mundo Novo justamente nessa época, fazendo com que fosse o meu último livro desse período. Contudo sua influência vai além. A obra icônica de Huxley carrega em seu enredo uma crítica muito forte e contundente a uma sociedade que vive para o consumo e para a produção em massa. Uma sociedade alienada, baseada em um modo de vida alienante e de forte controle social, que é garantido mediante a inculcação de valores e ideias que reproduzem o status quo ao naturalizar a organização social hierarquizada e injusta, e que também reproduzia o conformismo e a submissão.

Admirável Mundo Novo é uma fabulosa crítica ao sistema capitalista bem como toda forma de autoritarismo seja ele de direita ou de esquerda, e, por isso, esse livro também se tornaria referência para mim em meus estudos acadêmicos.

Por conta destas coisas Admirável Mundo Novo é um livro que tem uma dupla importância para mim.

O Enredo e os Personagens Principais

No ano de 632 depois de Ford (2540 d.C.), muito séculos após A Guerra dos Nove Anos (141 d.F. – 2049 d.C.), o mundo e a sociedade como a conhecemos não existe mais. A sociedade humana alcançou o seu apogeu tornando-se ainda mais industrializada e voltada para o trabalho e o consumo, além de quase desprovida de humanidade.

Não existem mais pais ou filhos, maridos ou esposas, porque as crianças são produzidas, criadas e educadas em Centros de Incubação e Condicionamento como o de Londres Central, onde são também condicionadas e deformadas de acordo com sua posição social predefinida, duplicadas em grupo de dezenas de gêmeos para atender a demanda de mão de obra nas fábricas e condicionadas a não criarem vínculos afetivos duradouros. O amor e a paixão foram abolidos assim como as relações baseadas em compromisso.

Em nome de uma pretensa estabilidade a religião foi extinta, assim como as ciências humanas e a literatura, só os meios de comunicação de massa são permitidos e o acesso ao conhecimento é filtrado e restrito a uns poucos. A sociedade dividida em classes sociais foi substituída por uma comunidade organizada em castas (alfas, betas, gamas…), sem mobilidade social e definidas desde o nascimento. Da mesma forma é definida desde o nascimento a identidade individual e coletiva de cada indivíduo, condicionado a aceitar passivamente e alienadamente o seu lugar na sociedade.

Todos são sempre jovens e livres para ter tudo o que foram condicionados a desejar e, por isso, o isolamento, a castidade e a contemplação, mesmo que da natureza, são vistos como comportamentos estranhos e inadequados, atitudes antissociais e reprimíveis. Toda essa forma de pensar é inculcada e reproduzida constantemente através da repetição de uma ideologia que prega uma mentalidade e uma felicidade quase que infantil, que exalta o novo sobre o velho e a superficialidade das relações. A vida se resume a trabalhar e ser produtivo, consumir e descartar e, enfim, entregar-se aos prazeres proporcionado pelo sexo livre e sem compromisso, pelas drogas e pelas atividades de lazer em grupo, mas que envolvam algum tipo de consumo. E para àqueles que por algum erro no processo de “fabricação” ou de condicionamento não conseguem se encaixar nesse modelo de sociedade resta o exílio em alguma ilha isolada em algum lugar do globo.

Em resumo, essa é a sociedade distópica a que somos apresentados por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo. Uma sociedade criada e organizada por um Estado Mundial que tem como lema: COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE. Estabilidade essa que é forjada a partir de um controle social rígido, legitimado e inescapável e do consumo regular do soma, uma droga psicodélica capaz de afastar os anseios e sentimentos negativos através de uma fuga da realidade.

Ao longo dos três capítulos que iniciam a obra somos apresentados a forma como esse novo mundo se apresenta e é organizado. Acompanhando uma visita técnica de estudantes alfas – a casta superior na hierarquia social, formada basicamente por cientistas e dirigentes ao Centros de Incubação e Condicionamento de Londres Central, o narrador de Aldous vai descortinando a tessitura[1] social sustentado pelo Estado Mundial bem como história que levou a sociedade humana desprezar toda a sua cultura e natureza biológica para criar outra sociedade, uma que fosse “feliz”.

Porém sob a capa da pretensa felicidade, comunhão e estabilidade entre os povos mundiais existem aqueles que não conseguem se encaixar completamente dentro da sociedade e se sentem sempre deslocados e incompletos. O enredo de Admirável Mundo Novo gira entorno principalmente de três destes deslocados: Bernard, Helmholtz e Jhon.

Psicólogo da casta dos alfas, Bernard é um dos poucos em Londres que tem consciência da futilidade e promiscuidade das relações, além disso ele se sente diferente dos demais de sua casta porque possui um físico acanhado e muito parecido com o comum entre os indivíduos das castas inferiores, o que o irrita e diminui seu sucesso com as mulheres. Por conta destas inadequações, o psicólogo evita bastante a interação social com seus colegas de trabalho e nutre uma certa paixão por Lenina, uma das funcionárias do Centro de Incubação. Por outro lado, as atitudes “antissociais” de Bernard fazem com que gradativamente ele vá sendo evitado, desprezado e considerado como estranho por seus pares.

Por sua vez, Helmholtz é o justo contrário de seu amigo Bernard. Porém, mesmo sendo socialmente muito requisitado e um competente e promissor “Engenheiro em Emoção”, Helmholtz se sentia tolhido em uma sociedade tão carregada de superficialidade e tão desprovida de conteúdo. Decepcionava-o a falta de significado em tudo o que fazia como engenheiro (escrever para rádios, compor cenários para filmes sensíveis e criar slogans e versinhos hipnopédicos) e ansiava por algo que não sabia descrever ao certo o que era.

Por fim, temos John, ou o Selvagem, como seria chamado posteriormente. John é o principal personagem da trama de Aldous – apesar de só aparecer a partir do capítulo 7 – e o mais deslocado dos três, por ser o único que não havia nascido e sido criado dentro da sociedade controlada pelo Estado mundial.

John era filho de Linda, uma beta que acidentalmente se perdeu em uma reserva indígena durante uma viagem de turismo. Lá ela deu à luz a uma criança do último homem com quem se relacionara antes de se perder, e, por conta da vergonha de ter se tornado mãe, é forçada a viver entre os índios. Contudo as reservas indígenas eram os únicos recantos do mundo onde ainda se era permitido viver como séculos atrás, e impedidos de se adequar as gritantes diferenças culturais entre Linda e os indígenas, mãe e filho foram durante muitos anos desprezados e excluídos socialmente pela tribo até que são resgatados por Bernard e Lenina e levados de volta para Londres.

Em Londres John passa a conhecer aquele mundo novo que só conhecia das histórias contadas pela mãe, e começa a sentir o forte choque cultural que essa aproximação lhe impõe, sobretudo quando se descobre apaixonado pela fútil e sedutora Lenina. Ele era muito ligado às tradições e aos costumes da reserva, e com a forte influência dos livros de Shakespeare, ele era incapaz de compreender a futilidade, a licenciosidade e a superficialidade daquele modo de viver. Era incapaz de entender que seu sentimento por Lenina jamais seria correspondido da mesma maneira, porque o amor sublime, por vezes platônico e capaz de sacrifícios inimagináveis, simplesmente não existia na realidade em que ela vivia, e da qual fazia parte. Ela não conhecia essas coisas e era incapaz de compreendê-lo, e ele, a ela.

Quando pesamos o quanto John e sua mãe eram considerados indesejáveis na Reserva e toda a sua relutância em aderir ao modo de viver e de pensar do Outro Lado, concluímos que ele não pertencia a nenhum dos dois mundos, nem ao da reserva, nem a da sociedade condicionada a qual pertencia Lenina, e por isso estava ainda mais deslocado e irremediavelmente perdido.

Outros personagens importantes na trama são: a própria Lenina Crowne, que como todas as moças de seu tempo era uma mulher superficial e pouco inclinada a compreender as excentricidades de Bernard e John; o rígido Diretor do Centro de Incubação de Londres, Thomas “Tomakin”, e o Administrador Mundial, Mustafá Mond, principal dirigente da sociedade londrina e inglesa e notadamente o homem mais culto da trama.

Controle total: totalitarismo como tema principal

Admirável mundo Novo é um livro de ficção científica, mas é também uma distopia moderna. O principal tema deste livro é o totalitarismo, um totalitarismo que passa a controlar não apenas a ideologia e o comportamento das pessoas, como também, através do condicionamento e do soma, o seu nascimento, suas preferências e seu lugar no mundo. Um controle total e quase inescapável, tanto onipresente (uma vez que todos dentro da sociedade se tornam vigilantes em relação aos comportamentos uns dos outros) como onipotente (já que o sistema direciona todos os aspectos da vida dos indivíduos). 

É muito claro na narrativa que o principal objetivo de Aldous é, ao mesmo tempo que critica o autoritarismo, demonstrar o destino para o qual a sociedade humana está caminhando: uma sociedade de supercontrole, consumista, superficial e da fugacidade.

Objetivando alcançar uma felicidade absoluta e incontestável a sociedade de Admirável Mundo Novo caminha para uma ditadura totalitária e de controle total. Para a filósofa política alemã Hannah Arendt, o totalitarismo tem de específico “a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida[2], ou seja, exatamente o que é feito pela sociedade imaginada por Huxley.

As “medidas biopolíticas de administração da vida[3] existem e são aplicadas pelo Governo Mundial visando garantir o controle total sobre os indivíduos e seus corpos. A manipulação genética é utilizada para selecionar e agrupar os indivíduos, separando-os pelas potencialidades e cerceando por completo a liberdade de escolha; a propaganda ideológica serve à disseminação da obediência e da visão ideológica do sistema, naturalizando-as; a hipnopedia é empregada nas crianças para incutir a aceitação e o conformismo, ampliando as possibilidades de dominação absoluta na fase adulta – a mais complicada das fases; o soma existe como droga capaz de entorpecer os desejos e inconformismo, alienador químico, possibilidade de fuga controlada; a proibição da literatura para que ideias contrárias ao sistema e seus valores não sejam propagadas, bem como impedir o desenvolvimento da criticidade dos sujeitos para que eles não enxerguem como prisioneiros do sistema; e, por fim, o monitoramento constante dos comportamentos que desestimula a solidão e a exclusividade para que os próprios indivíduos se tornem vigilantes e vigiados, uma vigilância eterna, ininterrupta e sem rosto definido. Uma vigilância sem necessidade de câmeras.

Enfim, o que se vê em Admirável Mundo Novo é uma sociedade de controle total da vida, no qual cada aspecto do indivíduo (profissional, emocional, comportamental, amoroso, religioso e intelectual) é moldado a pensar e agir conforme a programação do regime.

Mas além de totalitária a sociedade de Admirável Mundo Novo é também utilitarista, forjada para o consumo e para uma vida emocionalmente fácil.

Tudo e cada coisa é medida e dado valor pela utilidade no tocante a torná-los felizes. Mesmo o corpo e o sexo deve ter essa utilidade, deixando de ser espaço individual e privado. Por outro lado, para sustentar o próprio sistema o consumo se torna essencial para que a economia esteja sempre em movimento. Consumista, a sociedade de Huxley se torna também do descarte, porque o que não é novo, o que não é tendência deve ser descartado eliminado, trocado, alimentando o consumismo irresponsável, despreocupado.

Se não bastasse, não há por que se preocupar com os laços por que eles não existem. Nesta sociedade vínculos familiares, de amizade e de amor inexistem. O primeiro é considerado uma aberração, um ato vergonhoso e quase criminoso. Os dois últimos são desestimulados para que se evite os excessos, os sentimentos de posse e de ciúmes. A felicidade pensada para essa sociedade é uma felicidade encontrada no descompromisso, caminho que, se pensarmos, já vem sendo seguido, sobretudo pelos mais jovens que buscam relações cada vez mais líquidas e descompromissadas. Contudo, a sociedade do livro de Huxley elimina completamente essas relações e as cercam de tabus.

Fico imaginando se não deveria ser solitário e vazio não se ter uma origem, não se ter pais ou família, viver com a certeza que será sempre só você e as pessoas que, transitoriamente, passarão por sua vida sem, no entanto, deixarem impressões profundas, sem que haja permanência e continuidade nessas relações tão somente marcadas pela realização dos desejos mais urgentes e efêmeros. Admirável Mundo Novo é, parafraseando Saramago, um ensaio sobre a efemeridade e a superficialidade. Ali tudo é efêmero ou superficial: a vida, os sentimentos, as relações, a utilidade das coisas. Acho que por isso mesmo houve a necessidade por aquela sociedade de adotar o consumo em massa de uma droga que fosse capaz de preencher as lacunas deixadas por essas coisas, por essas ausências, efemeridades e superficialidades que em nada combina com a natureza intensa e complexa do ser humano.

Contraditoriamente, a sociedade imaginada para o livro exalta a “comunidade”, o “fazer junto”, o “nunca estar só ou isolado” e o “compartilhar-se” literalmente. Todavia o resultado que essa exigência de comunidade produz no leitor é um sentimento de solidão inexpugnável, porque na verdade todos ali estão e sempre foram sós. Tudo no mundo daqueles personagens é vazio de conteúdo e profundidade, mas eles não são capazes de percebê-lo. O regime não o permitem ver.

Sátira da sociedade capitalista, consumista e utilitarista, em Admirável Mundo Novo Huxley faz sua crítica a sociedade capitalista moderna cada vez mais vazia de sentido em si. Tão acríticos quanto os personagens de sua trama, nós, a sociedade do consumismo e da liquidez, não vemos o vazio de nossas existências regidas pelo consumo do supérfluo e pelo desejo do que é inútil, vazio, entorpecente e alienante. A organização mundial da economia e a indústria cultural nos oferece o seu soma e como ovelhas lobotomizadas os seguimos sem refletir a essência das coisas. Nada é coletivo, mas é de massa. Os que por acaso se desviam deste caminho predefinido – semelhante ao que acontece no livro de Huxley – são acusados de desajustamento e sofrem preconceito, hostilidade ou são alvos de piadas.

Cheio de referências

Um dos livros mais importantes de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo (Brave New World) foi escrito em 1931, mas só foi publicado no ano seguinte pela Chatto & Windus. O título é inspirado em uma passagem do livro A Tempestade (Ato V), de William Shakespeare, mas funciona dentro da trama como um jogo de palavras, uma vez que para John o mundo moderno e ultratecnológico de Admirável Mundo Novo é uma realidade nova e desconhecida. Contudo, o livro é ainda cheio de outras referências à obra de Shakespeare, bem como de várias personalidades importantes que influenciaram profundamente a ciência e a história recente da humanidade. As principais dessas referências são a Henry Ford, Sigmund Freud e Thomas Malthus.

Em uma sociedade extremamente industrializada em que até a fecundação e o nascimento dos indivíduos se dá como em uma linha de produção fabril, Henry Ford, mundialmente conhecido pela criação da Linha de Montagem, acaba por se tornar uma figura messiânica[4] dentro do mundo controlado pelo Estado Mundial. Ele é mencionado e exaltado a todo momento pelos personagens da trama. Não apenas seu nome como também algumas de suas ideias são mencionadas e configurando-se quase como um Deus, a referência a Ford substitui na trama até a tão conhecida expressão inglesa “my God” por “our Ford”, e a cruz, símbolo máximo do cristianismo, pelo “T”, nome do primeiro modelo de carro confeccionado pela empresa de Ford.

No caso de Freud o destaque é bem menor e por vezes citado no lugar de Henry Ford. Por sua vez, quanto a Thomas Malthus, economista britânico que via o crescimento da população como a causa da pobreza no mundo, a referência é bem mais sutil e relacionada aos métodos contraceptivos adotados pelas mulheres que podem reproduzir. Por fim, Shakespeare é outra grande referência na obra que cita através das falas de John – um dos poucos a ter tido contato com alguma obra de literatura – grandes passagens de obras como Macbeth, A Tempestade, Romeu e Julieta, Hamlet, Rei Lear, Sonho de uma Noite de Verão, Medida por Medida e Otelo.

Sobre a estética literária

Admirável Mundo Novo é dividido em 18 capítulos sem títulos e sem que haja grandes ganchos entre eles. Não há suspense ou grandes reviravoltas em grande parte de sua narrativa, mas Huxley garante a atenção do seu leitor pelo deslumbramento causado por um mundo absurdo, onde certamente não conseguiríamos nos encaixar facilmente. E é por ser absurdo um mundo sem pais, filhos, amor ou religião que o livro de Huxley causa em seus leitores mais sensíveis um sentimento de desolação e desesperança.

Apesar de escrito há quase 89 anos atrás a escrita de Huxley nesse livro é muito fluida e de fácil compreensão o que e aliado a tradução de Lino Vallandro ajudou bastante para o entendimento de todo o universo distópico e muito singular imaginado pelo autor.

O narrador deste livro é onisciente[5] e bastante complexo, ora mostrando distanciamento da narrativa ora “deixando marcas das suas impressões” como atesta Nelson Samuel Porto Veratti. Na sua narração, muitas vezes crítica, irônica e até desdenhosa, como a caracteriza o autor supracitado, o narrador permite que os pensamentos dos personagens se misturem à sua fala indo no íntimo das convicções e dos pensamentos alheios, sem, no entanto, acatá-los, por isso, Veratti o classifica como um “entre aqueles que não se deixam iludir pelas aparências” daquele mundo novo.

O que mais gosto nessa narrativa é sua crítica social ao totalitarismo, à sociedade do consumo, à superficialidade e à banalidade das relações do mundo dito pós-moderno. É quase uma aula de Zygmunt Bauman. Porém, o livro tem também seus pontos fracos e o principal deles é a lentidão do seu desenvolvimento. Contudo, esse foi um mal necessário sem o qual não conheceríamos e compreenderíamos a fundo nem o mundo criado para o livro nem as pretensões do autor ao escrevê-lo.

Notas finais: a atualidade de um livro complexo e fascinante

Admirável Mundo Novo foi escrito numa época na qual grande parte de seus avanços tecnológicos ainda se encontravam no campo do vir a ser, do pode vir a ser. O capitalismo financeiro e industrial se encontrava instalado e passava primeira de suas mais profundas crises, a grande depressão. O tom da obra transmite o pessimismo daqueles dias sombrios, nos quais as nações capitalistas viviam anos de profunda recessão econômica e desemprego crescente, regimes totalitários emergiam na Europa e as circunstâncias preparavam o terreno para uma segunda guerra mundial que eclodiria em set de 1939.

O profundo pessimismo de Huxley que não oferece saída a seus personagens reflete a própria atmosfera de um período no qual o futuro era incerto e as circunstâncias adversas, por isso esse tom carregado de desalento domina o livro. Mas em grande parte, para a sociedade da década de 30, Admirável Mundo Novo não fez tanto sentido quanto ele faz nos dias atuais de um capitalismo globalizado, de grandes avanços científicos e tecnológicos de uma sociedade liquida e consumista e com uma população mundial de 7,5 bilhões de pessoas (na década de 30 éramos pouco mais de 2 bilhões).

Parecemo-nos muito mais com a sociedade de Admirável Mundo Novo do que há 89 anos, quando instituições como a família e religião eram sólidas e as relações, duradoras. O consumo se encontrava limitado pelas circunstâncias dos anos difíceis, mas em anos anteriores, sobretudo nos EUA, havia ocorrido um crescimento exponencial do consumo por conta da busca incessante dos estadunidenses por manter o American way of life[6] (o estilo americano de vida) e concretizar o tão sonhado American Dream[7] (o sonho americano).

Por se parecer tanto com nossa sociedade é que Admirável Mundo Novo pode ser considerado visionário e fazer mais sentido hoje do que na época em que foi escrito. Com uma clareza impressionante o pesquisador Nelson Samuel Porto Veratti expõe a atualidade do livro de Huxley quando afirma que:

 “A passividade e a cooptação que caracterizam as personagens huxleyanas também estão presentes na massa acrítica do mundo atual, muitas vezes sedada por tranquilizantes (Soma), distraída por superficialidades sensoriais (cinema sensível e música sintética), conduzida pelo aboio ideológico capitalista (consumismo desenfreado), seduzida pela busca da felicidade a qualquer preço (hedonismo e ecstasy), privada das instâncias libertadoras (escasso incentivo à leitura e à reflexão) e infantilizada pela intolerância à frustração (liberdade sem responsabilidade), entre outras coisas

Enfim, a ideia do livro de Huxley não é só criativa como avançadíssima para a época em que a obra fora escrita. O autor antevê avanços como a inseminação artificial e a clonagem que só se tornariam possíveis muitas décadas depois. Além disso, o consumismo retratado na narrativa é um tema cada vez mais atual e próximo da forma como se dá na trama: ilimitado, superestimulado e inconsciente. Em muitos aspectos, como expõem Veratti, nos encontramos perigosamente próximos de um mundo admiravelmente novo.

O desfecho é inusitado, bastante realista e pessimista, mas bastante condizente com o caráter desapaixonado de seu narrador e de toda a narrativa, bem como com a insanidade daquele mundo. [ALERTA DE SPOILER SOBRE O DESFECHO]. Não havia ali possibilidade de um final romântico ou ingênuo, mas só da realidade crua e bruta de quando somos incapazes de nos encaixar e possibilidades de solução nos faltam. Aos personagens que conseguem vislumbrar algo para além do que o controle social lhe permite resta apenas duas opções:  ou aceitar o que é posto e aderir a ele, ou ir para o extremo contrário e abandonar tudo, pois não é a eles permitido transformar a realidade ao sabor dos próprios desejos ou convicções. Uma realidade inescapável tão não só pela morte.

Enfim, um livro crítico, atual, possível e desapaixonadamente marcante.

A edição lida é da Editora Globo, do ano de 2003 e possui 318 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro em outra edição que se encontra disponível no Google Books.

Sobre o autor

Escritor inglês, Aldous Leonard Huxley nasceu em Godalming, no dia 26 de julho de 1894. Estudou no Balliol College, em Oxford e graduou-se em inglês em 1916.

Huxley é mundialmente conhecido pelos seus romances e ensaios.

Seus primeiros poemas foram publicados em 1916. Quatro anos depois lançou mais duas obras. Só em 1921 chegou a publicar seu primeiro livro de crítica social, "Crome Yellow", ainda sem tradução no Brasil.

Atuou como crítico literário e teatral e escreveu artigos para várias revistas. Foi editor da revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias, literatura de viagem e roteiros de filmes.

A partir da década de 50, tornou-se um entusiasta do uso responsável do LSD, fazendo ele mesmo uso do alucinógeno. Em 1960, Huxley foi diagnosticado com câncer de laringe e faleceu em Los Angeles no dia 22 de novembro de 1963.

Prévia do Google Books



[1]Modo como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura

[2]ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

[3]Nelson Samuel Porto Veratti.

[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Admirável_Mundo_Novo

[5]Segundo Ana Paula de Araújo é quando o narrador “sabe de tudo. Há vários tipos de narrador onisciente, mas podemos dizer que são chamados assim porque conhecem todos os aspectos da história e de seus personagens. Pode por exemplo descrever sentimentos e pensamentos das personagens, assim como pode descrever coisas que acontecem em dois locais ao mesmo tempo”. (Infoescola).

[6]O Sonho Americano (em inglês: American Dream) é um ethos nacional dos Estados Unidos, uma variedade de ideais de liberdade inclui a chance para o sucesso e prosperidade, maior mobilidade social para as famílias e crianças, alcançada através de trabalho duro em uma sociedade sem obstáculos. (Wikipédia).

[7]O American way (em português, '‘jeito ou estilo americano’') ou American way of life ('estilo americano de vida’') é a expressão aplicada a um estilo de vida que funcionaria como referência de autoimagem para a maioria dos habitantes dos Estados Unidos da América. Seria uma modalidade comportamento dominante e expressão do ethos nacionalista desenvolvido a partir do século XVIII, cuja base é a crença nos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade, como direitos inalienáveis de todos americanos, nos termos da Declaração de Independência. Pode-se relacionar o American way com o American Dream. (Wikipédia).


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