domingo, 13 de setembro de 2020

O Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde – Resenha

Por Eric Silva

19 de abril de 2020

“Não existem fatos morais ou imorais em um livro. Os livros são apenas bem ou mal escritos. Isto é tudo”.

(Oscar Wilde)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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A história fantástica de Dorian Gray, mesmo após de 130 anos, é uma ressalva sobre a corrupção nascida da vaidade e do ego ainda bastante atual, ainda que a intenção do autor não fosse originalmente dar nenhuma lição de moralidade. Complexo, dramático e absurdamente original em sua ideia básica de enredo, O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde causou polêmica em sua época por trazer temas reprováveis pela sociedade da época, e é o tipo do livro que ou você ou vai amar ou odiar (e há muitos motivos para ambos).

Sinopse do enredo

O pintor Basil Hallward encontra um novo ímpeto e inspiração para sua arte depois que conhece o jovem Dorian Gray, um rapaz um tanto puro, ingênuo e imaturo, mas dono de uma beleza juvenil espetacular e que vinha chamando a atenção da aristocrática sociedade londrina. Movido por essa adoração quase romântica, Basil comenta com seu amigo, o hedonista e cínico Lorde Henry Wotton, sobre o seu achado. Exalta o caráter e beleza de Dorian e fala sobre o retrato estupendo do rapaz que com tanto afinco e arte ele pintava, ainda que Dorian se sentisse entediado de posar por tanto tempo para seu amigo pintor.

Curioso com a devoção apaixonada de Basil pelo rapaz, Henry insiste em conhecer Dorian, e também se encanta com o rapaz, logo se tornando amigos. Com a convivências com Henry, Dorian pouco a pouco se desvia para uma vida de prazeres imediatos e de superficialidades estéticas que o Lorde cultuava como o único tipo de vida que valia a pena ser vivida e que tratou de incutir na mente do rapaz.

Quando finalmente a pintura de Basil fica pronta, o pintor teme ter impresso na tela todo o seu íntimo e assim ter exposto seus sentimentos mais recônditos pelo rapaz. Então, decide presentear Dorian com o retrato pintado dele. Impressionado com a pintura, o rapaz se dá conta, pela primeira vez, de sua enorme beleza e inveja a pintura, porque ela nunca envelheceria, enquanto ele perderia o frescor da juventude com o transcorrer dos anos.

Depois daquele episódio, a medida com que o tempo passa, a beleza do rapaz aprece imutável e enquanto todos envelhecem ele se mantém jovem. Ao mesmo tempo, uma revolução se dá no caráter do rapaz, e Dorian vai se tornando ele também hedonista, egoísta e narcisista, entregando-se a um estilo de vida que transforma radicalmente a ele e ao retrato.

Resenha

Antes de começar, preciso fazer a seguinte observação: O Retrato de Dorian Gray possui duas versões, a original de 1890, com treze capítulos, e outra, publicada no ano seguinte, com vinte capítulos. Essa segunda versão ampliada e modificada foi exigência dos editores de Oscar Wilde que desejavam que a narrativa original de 1890 fosse suavizada, provavelmente pela recepção do público e as controvérsias entorno do livro.

A edição que eu li, é a versão original, bilíngue, contendo apenas os 13 capítulos originais. Por conta disso, essa edição não pode ser comparada, por exemplo, com o filme homônimo de Oliver Parker (2009), que possui personagens existentes na versão ampliada, mas que inexistem na versão original de 1890.

Como falei no lead desta resenha, O Retrato de Dorian Gray é uma obra complexa, dramática e absurdamente original em sua ideia básica de enredo. Mas preciso, no entanto, esclarecer cada um desses pontos.

Afirmo que o único romance escrito por Oscar Wilde é uma obra complexa por um motivo bastante peculiar. Em geral considero um livro complexo pela natureza de sua narrativa, mas este não é o caso, porque que em geral os acontecimentos narrados em O Retrato de Dorian Gray se dá em espaços fechados como o ateliê de Basil, ou em teatros e óperas, quando não nas salas de estar dos aristocratas Henry e Dorian. Não, em relação a enredo o livro é simples, bem pouco dinâmico e pesado na quantidade de diálogos. O que faz essa narrativa complexa do meu ponto de vista é a complexidade de dois de seus personagens principais. Falemos um pouco então deles: Dorian e Lorde Henry.

Dorian

O rapaz Dorian é de longe o mais complexo dos personagens do livro, porque o protagonista da trama foi pintado por Wilde com muitos matizes de cores e sua personalidade vai se metamorfoseando com o desenvolvimento da trama, tornando-o extremamente narcisista, imoral, insensível e até pérfido.

Segundo dá a entender o narrador, Dorian, antes mesmo de conhecer Basil, era um garoto ingênuo, puro e bom. Sua beleza física, que se encontrava na primavera da vida, se harmonizava com uma candura, talvez, bucólica, campestre. Mas talvez ele não fosse isso tudo, e essa minha sensação seja influência da atuação de Ben Barnes, que interpreta um Dorian bastante tímido e um tantinho interiorano no filme de Oliver Parker (2009). Mas seja como for, foram o culto recebido nos salões ingleses, mas principalmente a devoção apaixonada de Basil, que levaram o rapaz a tomar consciência do quão grande e fascinante era a sua beleza física, despertando nele a primeira semente de sua derrocada: uma vaidade até então adormecida.

Dorian, interpretado por Ben Barnes, ao chegar em Londres

Contudo, Henry, foi o ator e o regente principal da perdição do jovem Dorian, que inocente das maldades e vaidades do mundo, encontra no Lorde um instrutor para uma vida de prazeres supérfluos, devassidão, superficialidade e galanterias.

Henry incute em Dorian uma paixão doentia pelo que a vida e a sua condição podiam lhe dar. Dentro dessa paixão ele acaba deturpando ou afastando qualquer outro sentimento que possa prendê-lo ou afastá-lo de uma realidade que ele criou em sua mente e considera como perfeita. [ALERTA DE SPOILER]. Por isso, ele se mostra capaz distorcer a realidade para que ela caiba no que seu desejo lhe impõe, como convencer a si mesmo que Sibyl Vane, atriz sem sucesso por quem ele pensou estar apaixonado e que depois ele ilude e abandona por um motivo torpe e sem sentido, não cometeu suicídio por sua causa. Ele, literalmente, convence a si mesmo que não tem culpa por aquela morte desesperada, e passa a ver o caso com indiferença e a Sibyl como um sonho de um passado mais longínquo do que recente.

Além disso, essa paixão pela vida leva Dorian a ter uma sede insaciável por conhecer coisas novas, uma fome de conhecimento que poderia ser construtiva, se em outros aspectos de seu caráter o rapaz não fosse danoso a si e a todos os demais (na narrativa quase todo mundo que se relaciona com ele se desvia, entra em declínio ou tem fim trágico).

Contudo, Dorian não é, em nenhum sentido, um personagem plano, ou seja, previsível e constituído de uma única ideia ou qualidade. Em muitos momentos, a mente de Dorian parece enevoada e tentando resistir ao declínio rápido e acentuado de seu caráter. Ele tem momentos breves de sensatez e humanidade, mas que logo depois são espantados pela vaidade e degeneração a que estava submetido. Ainda assim, Dorian vai ser, até o fim da trama, egoísta e egocêntricos. Incapaz de arrepender-se de seus crimes e das consequências de seus atos. Até chega a surgir um lampejo de uma vontade de ser bom novamente, talvez resultado do cansaço promovido pelo peso de sua vida depravada, mas na minha opinião (a mesma de Henry), ele só estava inclinando-se ao desejo de sentir uma nova sensação, novamente agia por vaidade. Porque a imagem que construí de Dorian, é que ele só tinha pena de si mesmo e tudo que fazia era pensando unicamente em si, em sua vaidade e em alimentar sua fome de novidades, prazeres, de sentir novas sensações e de afastar o tédio.

Todo esse egoísmo e depravação de Dorian se tornam evidentes na pintura de Basil que passa a carregar em si o peso dos pecados e da consciência que o próprio rapaz parecia perder.  Tanto que seu instinto de esconder o quadro não era apenas para ocultar dos outros o seu segredo, era também ocultar de si a verdade de que ele se transformava em um monstro desalmado, porque a pintura, como um espelho, era o reflexo de sua alma corrupta. Por desejar nunca envelhecer e perder sua beleza, colocando a beleza e a estética na frente de tudo, de todos e de todas as coisas que ele teria “uma carga terrível de carregar”. Essa seria a frase que melhor ilustra o futuro de Dorian na trama.

 

Lorde Henry

Considero Lorde Henry Wotton como um hedonista desprezível. Henry é uma pessoa inescrupulosa, imoral e sob sua influência Dorian vai se tornando sórdido e desprezível. Um dos personagens mais repulsivos que já tive o desprazer de conhecer na literatura. A avó sadista dos Dollanganger de O Jardim dos Esquecidos, não conseguiu provocar em mim tanta repulsa quanto o personagem do aristocrata de O Retrato de Dorian Gray.

Lorde Henry, interpretado por Colin Firth

Ele é o que na época era chamado de dândi, um homem que se vestia de forma refinada, com excelente senso estético, conhecedor da arte, que defendia que a vida deveria ser vivida de forma intensa e que dava um enorme valor ao esteticismo e à beleza presente em detalhes miúdos e por vezes até insignificantes[1]. No popular um boa-vida muito bem trajado e cheio de tempo ocioso para pensar, tecer e falar sobre coisas pouco imediatas enquanto se entretém com jogos e lazer. Contudo, Henry era um dândi em decadência, além disso, um homem arrogante e sem nenhum moralismo.

Era profundo defensor da filosofia hedonista[2], mas um completo hipócrita, uma vez que ele mesmo não pusesse em prática as suas ideias. Em lugar disso, usava como experiências aqueles que, ao seu redor, fossem impressionáveis o bastante para se envolver em suas preleções pomposas, aparentemente muito profundas e reveladoras. Uma vez que os mergulhava em suas ideias Henry se entretinha em observá-los, estudá-los e distorcer pensamentos e sentimentos.

Dorian foi ingênuo e impressionável o bastante para se tornar um experimento de Henry, e, enquanto Basil criou sua obra-prima a partir da imagem de Dorian, impresso na tela, o aristocrata hedonista buscou tornar Dorian, literalmente, em seu magnum opus[3]. Talvez, acredito eu, que ele só o tenha conseguido porque faltou a Dorian orientação familiar. O rapaz havia tido como única família um tio que o desprezava, maltratava e o trancava, isolando-o do mundo. Dorian era novo demais e não foi preparado para pensar por si mesmo ou para separar o joio do trigo. Basil, que era profundamente moral, talvez pudesse tê-lo ajudado, se sua devoção, se sua paixão por Dorian não o tivesse tornado fraco e complacente[4] com os erros do rapaz.

Gosto de filosofia, mas o hedonismo e esteticismo apresentado pelo personagem Henry, me enojou bastante, não me convenceu e foi insuportável de ler.

Dramático e absurdamente original

Mesmo tendo falado mais profundamente destes dois personagens, porém, isso não é o suficiente para explicar porque eu acho O Retrato de Dorian Gray dramático, absurdamente original e o tipo do livro que ou você ama ou odeia, havendo muitos motivos para ambos.

Corrupção: o retrato antes e depois.

Histórias de maldições e de pactos com o demônio são comuns, mas eu ainda não vi nada na literatura moderna que se assemelhe a proposta de enredo de O Retrato de Dorian Gray e que não tenha sido inspiração na própria obra de Wilde.

Em primeiro lugar, temos aqui uma maldição muito peculiar: trocar de lugar com um retrato que envelhecerá em seu lugar e representará o âmago de sua alma como se fosse um espelho. Faz lembrar o conto da Branca de Neve, onde o espelho seria o retrato, e a vaidade o motor que move o seu usuário. Contudo, Dorian não é um bruxo. Ao contrário do que ocorre no conto dos Irmãos Grimm, trata-se de uma maldição que dota o personagem de uma personalidade muito singular e maquiavélica, sem, no entanto, dotá-lo de nenhum poder sobrenatural em particular o qual ele possa fazer uso. Mas se fossemos comparar esse texto a algum clássico antecessor, eu o compararia a uma releitura moderna do mito de Narciso.

Na trama, Basil talvez seria a versão masculina da ninfa Eco, que cultua a imagem de Narciso (Dorian), enamora-se e fica preso a uma torrente devocional que causa a desgraça dos dois. No caso, a Eco de Wilde confecciona a pintura que será a destruição dos dois.

No mito, por conta de Eco, que em algumas versões morre apaixonada, Narciso é levado por Nêmesis, deusa da vingança, a olhar para seu reflexo n’água e apaixona-se por sua própria imagem refletida, ficando tão fixado e incapaz de afastar-se da imagem, que morre ali mesmo à margem do regato. Dorian, assim como Narciso, era belo, orgulhosos e arrogante, e ao ver-se representado na tela de Basil, inveja a si mesmo, porque passa a amar a si mesmo mais do que a tudo e a todos. Como Narciso, era incapaz de se apaixonar, e por isso causou dor, não só a Basil, como a muitas outras pessoas que por ele se enamoraram. [ALERTA DE SPOILER] E pela vaidade e egoísmo condena a si e a Basil a um fim trágico.

“A própria agudeza do contraste costumava animar seu sentimento de prazer. Ele se tornava cada vez mais enamorado de sua própria beleza e cada vez mais interessado na corrupção de sua alma”.

Mas voltando a discussão.

Em segundo lugar, o livro de Wilde contém uma maldição nascida de um desejo muito forte, mas quase inconsciente e sem que haja uma promessa, um pacto demoníaco. E por fim, Wilde faz com que tudo isso se torne uma união entre o fantástico sobrenatural, sem perder as raízes na podridão muito real das relações humanas em uma sociedade hipócrita, conservadora e corrupta. Por isso, achei O Retrato de Dorian Gray original, sobretudo para a sua época.

Segundo afirma a introdução da edição lida, Wilde teria tido a ideia após ser chamado ao estúdio do pintor Basil Ward. Na época, o pintor estava finalizando uma pintura de um jovem modelo, e Wilde, após ter visto a obra teria dito: “é uma pena que tal gloriosa criatura um dia envelheça”, afirmação com a qual Basil Ward concordou e acrescentou: “seria maravilhoso se ele pudesse permanecer exatamente como ele é; a imagem do quadro é que deveria ganhar as marcas do tempo”. Daí nasceria a inspiração para o livro.

Contudo, apesar dessa ideia básica do enredo ser estimulante, instigante, a escrita de Wilde não ajudou muito. O Retrato de Dorian Gray é um livro pensado pelo autor para que seja filosófico e defenda suas ideias esteticistas e, por isso, o autor carrega a narrativa com diálogos pomposos e longuíssimos que logo entediam o leitor mais acostumado ao dinamismo da literatura contemporânea, ou simplesmente àqueles que não estão interessados na temática do hedonismo ou do esteticismo wildiano (este último é meu caso em particular).

Além desse fator, o livro é extremamente dramático no sentido dramatúrgico da palavra. Único romance do autor inglês que, no entanto, escreveu dezenas de peças teatrais, é provável que por conta da veia dramaturga de Wilde tudo nesse livro soa como uma grande peça de teatro, com longos discursos do narrador e diálogos extensos quase sempre com duas ou três pessoas no máximo.

Outro aspecto da narrativa a ser destacada é o seu conteúdo filosófico proeminente, ligado ao hedonismo e ao esteticismo (falo mais sobre logo a seguir), e que torna a leitura do livro um pouco irritante, bastante cansativa e me fez levar 105 dias para terminar de ler. Esses 105 dias é expressão do quanto muito pouco a escrita wildiana me estimulou a terminar de ler.

Por isso, afirmo que ele é um livro que ou você vai amar (pela originalidade e pela narrativa de cunho fantástico) ou odiar (por todos os outros motivos).

Temas que saltam à vista: esteticismo e homossexualidade

Como falei, O Retrato de Dorian Gray é um livro que aborda com ênfase o esteticismo.

Segundo Alexandre Garcia Peres[5], o esteticismo foi um movimento tanto artístico quanto intelectual que se desenvolveu ao longo do século XIX. Tinha por características o “[...] culto ao Belo na arte, em detrimento da função ético-moral que ela pode ter [...]” e “[...] foi um dos vários movimentos que se valeram da ideia de se fazer ‘arte pela arte’”.

Segundo informa a introdução[6] da edição que eu li “as bases do Esteticismo foram desenvolvidas principalmente por Walter Pater, professor de Estética da Universidade de Oxford [...].” A principal defesa do movimento seria “[...] o ‘belo’ como única solução contra tudo o que considerava denegrir a sociedade da época, onde em suas manifestações mais fortes, os valores estéticos têm predominância sobre todos os demais aspectos da vida, numa atitude elitista em relação à arte”. Seria naquele século um movimento, que contaria com o apoio de uma geração de intelectuais e artistas britânicos e que “[...] visava transformar o tradicionalismo na época vitoriana, dando um tom de vanguarda às artes”. 

Seguidor desta corrente Wilde imprime na sua obra muitos aspectos de suas ideias, e obviamente entrara em choque com a posição que era corrente na preconceituosa, moralista e conservadora sociedade vitoriana, “onde a Arte não é apenas um meio de se propagar a moralidade, mas também um meio de reforçá-la[7].

Por conta das ideias do esteticismo, o livro traz muitas referências às artes, desde as artes menores (joias e objetos decorativos), até as artes mais destacadas como às literaturas clássica e moderna, à música, dentre outras formas de artes. O capítulo nove, por exemplo, dedica várias páginas a falar dos hobbies de Dorian e as coisas que por algumas temporadas chamavam-lhe a atenção, e as quais se dedicava com afinco até abandoná-las e seguir para a atividade seguinte. Essas atividades, quase todas, estavam ligadas ao mundo artístico. Além disso, o amor passageiro de Dorian por Sibyl Vane estava mais ligado aos talentos artísticos da moça no teatro, do que de fato à pessoa que ela era: uma jovem apaixonada e inexperiente.

As ideias esteticistas estão também nos discursos tediosos de Lorde Henry e também nas observações do narrador. Por fazer essa defesa das ideias do autor, o narrador é bastante opinativo, porque ele representa a própria voz do autor, que como havia se referido uma vez, via nos personagens algo de si:

Basil Hallward é o que penso que sou: Lorde Henry é o que o mundo pensa de mim: Dorian Gray é o que eu gostaria de ser — em outras eras, talvez”.

Acredito que com isso ele queria firmar que era um apaixonado como Basil, mas que era visto como um degenerado que desviava inocentes, como Lorde Henry, e desejava ser tão encantador e fascinante quanto era Dorian.

Sou uma pessoa que gosta de filosofia, sobretudo do ato de pensar filosoficamente, apesar de ser mais da prática do que da teoria, mas esse autor me cansou verdadeiramente, não tive muita paciência de ler as ideias filosóficas de Wilde, e o texto se tornou um martírio para mim.

No entanto, algo que surpreende em O Retrato de Dorian Gray é a coragem de Wilde de, naquela época, fazer referências tão óbvias ao homossexualismo, sobretudo com o personagem do pintor Basil. Mas esta atitude corajosa se voltou contra ele quando, em uma contenda judicial contra o pai de um de seus amantes, passagens de O Retrato de Dorian Gray foram usados como provas das inclinações homossexuais de Wilde. Além de ter sido preso ele foi afastado de seus filhos e, depois, abandonou a Inglaterra.

A era vitoriana foi marcada por uma moral muito severa, marcada por valores que englobavam a “restrição sexual, pouca tolerância para o crime e um código social de conduta pública rigoroso[8] e nesse período foram constantes os processos por sodomia ilegal. Na época, os homossexuais eram tratados como sodomitas, uma referência a Sodoma, cidade citada na bíblia sobre a qual eram relatados casos de relações sexuais entre homens. A homossexualidade era considerada uma aberração e era alvo de estudos médicos que tentavam entendê-la.

No plano legal, a Emenda Labouchere à Lei de Emenda da Lei Criminal de 1885, tornou todos os atos homossexuais masculinos ilegais no Reino Unido. A punição para quem desrespeitasse pública ou privadamente a norma era de dois anos de prisão, em outras palavras, cometer ou ser parte em atos de homossexualidade era crime, mesmo quando isso ocorria de forma privada. Oscar Wilde foi um dos condenados por violar esta lei, em 1895, se tornando símbolo da repressão puritana inglesa[9].

Mesmo muitos anos depois, no Reino Unido, a homossexualidade continuou como um tabu que gerava punições. É também icônico o caso do cientista da computação Alan Turing, retratado no filme O Jogo da Imitação (2014) como um dos responsáveis pela vitória sobre os alemães durante a segunda guerra mundial. Turing era homossexual e, para não ser condenado a prisão, foi forçado a sofrer castração química em 1952. Ainda naquela época a orientação homossexual era amplamente considerada pelos britânicos como uma doença mental cujo tratamento eficaz seria a castração química[10]

Para finalizar...

O Retrato de Dorian Gray é um livro interessante e peculiar. Um romance gótico que seria um dos meus favoritos se tivesse sido escrito em outra época e sem o exagero de tantos diálogos longuíssimos e suntuosos, e sem tanto destaque para o hedonismo e o esteticismo que foi exaustivamente descrito por Wilde.

Os personagens são complexos e muito bem desenvolvidos e a trama fantástica (gótica) muito bem pensada e executada. O texto traz muitas referências a cidade de Londres, aos costumes ingleses em voga e também a obras da literatura clássica que tornam as notas de tradução indispensáveis. O desfecho não se dá pelos motivos mais criativos, mas não decepciona.

Atrevo-me a dizer, apesar de não ter gostado do livro, que a obra de Wilde é uma expressão vívida e apaixonada do idealismo de uma época e do íntimo de um grupo que era marginalizado, ainda que falar de homossexualismo não fosse o objetivo do autor, mas, como era de sua natureza e Wilde se coloca tão intensamente nesta obra, não foi possível a ele dissimular.

A edição lida é bilíngue (português e inglês), da Editora Landmark, do ano de 2012 e possui 224 páginas.

Sobre o autor

Nascido em 16 de outubro de 1854, em Dublin, na Irlanda, e filho de uma poetisa nacionalista, Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde foi escritor, poeta e dramaturgo. Em quanto estudou em Oxford se aliou ao movimento artístico do Esteticismo. Casou-se em 1884 com Constance Lloyd, com quem teve dois filhos.

Embora conhecido nos círculos sociais, recebeu pouco reconhecimento por sua obra durante muitos anos.

Em 1895, o marquês de Queensberry, pai de Lorde Douglas amante de Wilde, iniciou uma campanha pública contra o autor. Após perder um processo judicial contra o Marquês, Wilde foi condenado a dois anos de trabalhos forçados. Ao ser libertado, se autoexilou em França, onde morreu na completa obscuridade em 30 de novembro de 1900.

 



[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%A2ndi

[2] Cada uma das doutrinas que concordam na determinação do prazer como o bem supremo, finalidade e fundamento da vida moral, embora se afastem no momento de explicitar o conteúdo e as características da plena fruição, assim como os meios para obtê-la (HOUAISS, 2009).

[3] Refere-se a melhor, mais popular ou renomada obra de um artista ou pensador.

[4] Desejoso de agradar, de demonstrar cortesia, de servir

[5] PERES, Alexandre Garcia. Esteticismo – O que é? Quando surgiu? O que defende? Características e Artistas. Disponível em: <https://www.gestaoeducacional.com.br/esteticismo-o-que-e/>. Acesso em: 19 de abril de 2020.

[6] INTRODUÇÃO. In: WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Landmark, 2014. 224 p.

[7] INTRODUÇÃO. In: WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Landmark, 2014. 224 p.

[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/Moral_vitoriana

[9] https://pt.wikipedia.org/wiki/Moral_vitoriana

[10] https://pt.wikipedia.org/wiki/Castra%C3%A7%C3%A3o_qu%C3%ADmica#Europa


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