domingo, 26 de abril de 2020

[ESPECIAL] A Zona: uma galeria inspirada nas Vozes de Tchernóbil – Postagem Especial

Por Eric Silva
“A zona é um mundo à parte. Outro mundo em meio ao restante da Terra”
(Svetlana Alexijevich, Vozes de Tchernóbil)
                                                                                                                                                           

A vida em uma nação tão fechada quanto a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) sempre foi algo que mobilizou a minha curiosidade. Trata-se de um desejo de conhecer o desconhecido, para além das visões tendenciosas ou impregnadas pelas ideologias fossem elas da direita ou da esquerda.

Por outro lado, como geógrafo e educador, o acidente nuclear de Chernobyl [Tchernóbil], ocorrido em 1986, na Ucrânia, até então uma das repúblicas da URSS, é de grande interesse para mim, seja pela sua importância para a compreensão da história e do período da Guerra Fria, seja para o entendimento da matriz energética mundial, sobretudo para a conscientização quanto aos limites e os riscos inerentes ao emprego da energia nuclear. Por isso, ler o livro Vozes de Tchernóbil foi uma oportunidade única de conciliar dois interesses e conhecer a dimensão humana e subjetiva do acidente nuclear bem como sobre a vida e o homem soviético. Um livro precioso e excepcional.

Como é tradição aqui no Conhecer Tudo, livros relevantes e que abordam temáticas interessantes, a exemplo da obra de Svetlana Aleksiévitch, costumam ganhar postagens especiais no blog. Com estas postagens buscamos aprofundar nosso conhecimento dos temas que estes livros abordam ou vê-los por outras dimensões que extrapolam os limites das palavras.

Como Vozes de Tchernóbil é um daqueles livros que evocam temas de importância ímpar, preparei essa postagem pensando em conciliar palavra e imagem e dar a vocês, leitores, a oportunidade de conhecer um pouco das falas presentes no livro. Ao mesmo tempo, através da nossa seleção queremos mostrar um pouco da Zona de exclusão de Chernobyl que de diversas formas é sempre evocada pelas vozes ouvidas por Svetlana. Traduzir palavras em imagens.

Espero que gostem da postagem e deixe-nos o seu comentário.


A Zona

Contemplando territórios da Ucrânia e na Bielorrússia, a Zona de Alienação da Usina Nuclear de Chernobyl, conhecida também como Zona de exclusão de Chernobyl, é uma área de isolamento com mais de 2600 km² de extensão[1] entorno da área do acidente nuclear.

Quase desabitada pelo ser humano, a população que antes vivia na região fora removida nos meses que se seguiram a explosão, tonando cidades e povoados como Chernobyl e Pripyat em lugares-fantasmas. Contudo ainda é possível encontrar na região algumas pessoas, sobretudo, antigos moradores idosos que para lá retornaram ilegalmente após a evacuação.

Ainda hoje a área é proibida para a moradia ou qualquer outra atividade devido ao elevado grau de contaminação de seu solo, água e ar. As únicas atividades permitidas é o turismo, cujas excursões duram apenas algumas horas e sob diversas restrições[2], além de alguns estudos científicos relacionados com instalações para a segurança nuclear[3]. Para evitar a entrada ilegal de civis a zona de exclusão é patrulhada por unidades especiais do Serviço de Guardas Fronteiros da Ucrânia e do Ministério de Assuntos Interiores da Ucrânia[4], além de ser uma área de permanente controle de radiação[5].

Um dado curioso é que, a despeito de todo os riscos e mesmo com os elevados níveis de radiação dentro do perímetro da zona, a central nuclear de Chernobyl se encontrou em funcionamento até o ano de 2000.
A zona é citada em inúmeros depoimentos do livro de Svetlana e alguns dos entrevistados são ainda residentes nela. São falas que nos dão uma dimensão do que se viveu naquela área no tempo que se seguiu ao acidente, de como aquele é um mundo à parte e algumas transmitem, inclusive, uma carga simbólica muito forte, mostrando como a própria zona possui uma representação simbólica, subjetiva, indo além do espaço físico propriamente dito.

A Zona de Exclusão de Chernobyl

“Fui à zona de Tchernóbil. Já estive lá muitas vezes. E lá eu entendi que era impotente. Que não compreendo. E esse sentimento de impotência está me destruindo. Porque não reconheço este mundo. Tudo nele mudou. Até o mal é outro. O passado já não me protege. Não me tranquiliza. Não dá respostas. Antes sempre dava, agora não mais. O futuro me arruína, não o passado” (Vozes de Tchernóbil)

“A zona te puxa. Como um ímã, eu digo. Eh, minha senhora! Quem passar por lá… aquela alma será puxada.” (Vozes de Tchernóbil)

“Temos à nossa frente a tarefa de compreender Tchernóbil como filosofia. Há dois Estados separados por uma cerca de arame farpado: um é a zona, o outro, o restante. Nos postes apodrecidos que cercam a zona, como se fossem cruzes, penduraram panos brancos. São os nossos costumes. As pessoas vão ali como se estivessem indo a um cemitério. O mundo depois da tecnologia. O tempo andou para trás. Ali estão enterradas não só as suas casas, mas também uma época inteira. A época da fé! Da fé na ciência!” (Vozes de Tchernóbil)


A Zona: uma galeria inspirada nas Vozes de Tchernóbil

Fonte das Imagens: Wikimedia Commons





"Vê como foi? A ordem de evacuação era ‘Em três dias’. As mulheres gritando, as crianças chorando, o gado mugindo. Tapeavam os pequenos: ‘Vamos ao circo’. As pessoas achavam que iam voltar. A expressão ‘para sempre’ não existia".



“Não havia terroristas. Havia roentgen, curie…”




“Há um monumento aos heróis de Tchernóbil. É o sarcófago que construíram com as próprias mãos e no qual depositaram a chama nuclear. Uma pirâmide do século XX".




“Não apenas a paisagem mudou, pois onde antes se estendiam campos, cresceram novamente bosques e arbustos, mas também o caráter nacional mudou. Todos estão depressivos. O sentimento é o de estarem irremediavelmente condenados”.




“Eu queria gravar tudo na minha memória: um globo terrestre achatado por um trator no meio do pátio de uma escola; roupa lavada enegrecida, estendida havia vários anos num varal; bonecas envelhecidas pela chuva”.




“Porque já não é terra de ninguém. Deus a tomou. As pessoas a abandonaram”.




“Trabalhávamos dia e noite… Os comboios iam repletos. As pessoas fugiam… Muitos russos deixavam as suas casas… Milhares! Dezenas de milhares! Centenas! Uma Rússia inteira”.




“Foi elaborado um itinerário que tem início na cidade morta de Prípiat. Lá, os turistas podem observar os altos prédios abandonados com roupas enegrecidas nas varandas e carrinhos de bebê. E também o antigo posto de polícia, o hospital e o Comitê Municipal do Partido. Aqui ainda se conservam, imunes à radiação, os lemas da época comunista”.




“Certo, as casas estavam vazias, não havia pessoas, tinham partido, mas tudo ao redor estava mudo, não havia nem um pássaro. Pela primeira vez vi uma terra sem pássaros. Sem mosquitos. Nada voava”.




“Ninguém falava em radiação, só os militares circulavam com máscaras respiratórias… As pessoas compravam os seus pães, saquinhos com doces e pastéis nos balcões… A vida cotidiana prosseguia. Só que… as ruas eram lavadas com uma espécie de pó…”




“Quando falamos de passado e futuro, imiscuímos nessas palavras a nossa concepção de tempo, mas Tchernóbil é antes de tudo uma catástrofe do tempo. Os radionuclídeos espalhados sobre a nossa terra viverão cinquenta, cem, 200 mil anos. Ou mais. Do ponto de vista da vida humana, são eternos. Então, o que somos capazes de entender? Está dentro da nossa capacidade alcançar e reconhecer um sentido nesse horror que ainda desconhecemos?”




“Os gansos selvagens gritando, a primavera chegando. Era hora de semear. E nós com as casas vazias… Só os telhados estavam inteiros.”




“Avó, é proibido levar o gato. Não permitem. O pelo é radiativo.”
“Não, meus filhos, sem o gato eu não vou. Como é que eu posso deixá-lo? Sozinho? Ele é a minha família.”




“Os jardins cresciam, mas para quem? As pessoas tinham abandonado as aldeias. Quando passaram pela cidade de Prípiat, viram varandas com flores e roupas penduradas; debaixo de um arbusto, uma bicicleta com a bolsa de lona de um carteiro cheia de jornais e cartas. Sobre ela havia um ninho de passarinho. Como eu vi no cinema”.




“Imagine a estrada de ferro, uma via férrea traçada por brilhantes engenheiros; o trem é veloz, mas em lugar de um maquinista temos um cocheiro do século passado. Este é o destino da Rússia: viajar entre duas culturas. Entre o átomo e a pá”.




Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear
Svetlana Alexijevich





[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_de_exclus%C3%A3o_de_Chernobil
[2] http://exame.abril.com.br/mundo/chernobyl-completa-25-anos-e-abre-portas-para-turismo/
[3] https://es.wikipedia.org/wiki/Zona_de_alienaci%C3%B3n
[4] https://es.wikipedia.org/wiki/Zona_de_alienaci%C3%B3n
[5] http://www.otempo.com.br/opini%C3%A3o/f%C3%A1tima-oliveira/as-babushkas-da-zona-de-exclus%C3%A3o-de-chernobyl-1.1269487

2 comentários:

  1. Impressionante como uma visão de mundo extremamente fechada pode acarretar em enormes consequências.

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    1. Sim, mas mais do que isso, é assombroso vivermos à sombra de milhares de usinas nucleares ainda ativas e vulneráveis a toda sorte de fenômenos naturais, imprudências e atentados.

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