Por
Eric Silva para os blogs Conhecer Tudo e Geographia Mundi
Nota:
todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé
sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens
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Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.
Sábado,
26 de abril de 1986, 1 h e 23 minutos, explode o quarto reator da usina de
Chernobyl[1][2][3], na Ucrânia soviética[4]. A radiação liberada
pela explosão entraria para a história como o maior acidente nuclear conhecido[5] e a nuvem radioativa
se espalharia por toda Europa, bem como as substâncias gasosas e voláteis
projetadas a grandes alturas e que chegariam até mesmo à América do Norte[6]. Depois da tragédia que
se abateu sobre soviéticos, muitos livros e reportagens relatariam o desastre,
suas causas, as tentativas do governo soviético de mantê-lo em segredo, mas
poucos deles mostrariam a dimensão humana, poucos dariam voz as vítimas:
liquidadores, camponeses, soldados, as crianças. Em Vozes de Tchernóbil, a
repórter bielorrussa e ganhadora do Nobel de Literatura, Svetlana Aleksiévitch,
dá espaço para os depoimentos daqueles que viveram o desastre de perto, que
testemunharam e padecem dos seus reflexos. Relatos emocionantes, carregados dos
mais diversos sentimentos e que mostram muitas das facetas do acidente que só
quem viveu pode contar.
Confiram
a resenha do livro.
Sinopse
Em abril de 1986, a explosão da usina de
Chernobyl criou um dos maiores desastres da história da humanidade e teve como
saldo mortes, evacuações e desolação. As perdas materiais foram imensas, mas os
danos emocionais e os custos humanos, incalculáveis. Por meio de relatos
daqueles que viveram Chernobyl, que por ele foram marcados e que também vivem
em meios as sombras do desastre, Svetlana Aleksiévitch (grafado
também como Alexijevich ou Alexievich) conta a história oral do
acidente nuclear. Um livro emocionante e único que descortina a letargia[7]
do Estado, o desalento daqueles que foram
arrancados da terra e de tudo que conheciam, bem como a morte e o sofrimento
daqueles que, por amor à pátria, deram sua vida na luta suicida contra a
radiação.
Resenha
Dentro do tema, particularmente, a discussão
acerca da produção e do emprego da energia nuclear na sociedade moderna sempre
me atraiu, tanto pela polêmica que gira entorno dos riscos envolvidos em seu
emprego, como também pelo tanto de conhecimento e domínio tecnológico imbuído
em seu desenvolvimento: uma produção de
energia que não é só perigosa, mas também complexa e contraditória (no fim
dessa postagem você encontra um vídeo sobre como funciona a produção dessa
energia).
Digo complexa
porque sua produção demanda o cumprimento de muitas medidas de segurança e um
conhecimento técnico apurado; e contraditória
porque, apesar de produzir resíduos extremamente nocivos e cujo armazenamento e
descarte deve seguir um rigoroso protocolo, a energia nuclear é considerada
como limpa por liberar na atmosfera durante a sua produção apenas vapor d'água.
Contudo, ela é ainda muito perigosa
porque não elimina o risco de vazamento ou de um acidente nuclear, a exemplo do
ocorrido em Fukushima, no Japão, em 2011, em decorrência de um terremoto
seguido de tsunami, ou do acidente em Chernobyl, Ucrânia, em 1986. Vozes de Tchernóbil trata justamente
deste último desastre nuclear, porém, a partir de uma perspectiva completamente
diferente daquela utilizada nos livros, filmes, documentários e reportagens que
abordaram o tema.
Para nos situarmos geográfica e historicamente
no contexto do livro de Svetlana Aleksiévitch fizemos uma postagem especial
sobre o momento histórico do acidente e como este se deu. Contudo, aqui
repetirei algumas coisas para que o leitor possa se situar
histórico-espacialmente.
O acidente da usina nuclear de Chernobyl se deu
no ano de 1986, já no princípio do fim da Guerra Fria e do bloco socialista que
se desmancharia com a desagregação da União Soviética em 1991. Localizada na
república soviética da Ucrânia, a província de Kiev, onde se encontram as
cidades de Chernobyl e Pripyat, seria o principal cenário do desastre que
também afetaria enorme e principalmente a república vizinha, a Bielorrússia.
Após uma explosão em decorrência de testes que
eram realizados no reator 4 da usina durante a madrugada de 26 de abril, uma
grande nuvem radioativa se espalharia pela região alcançando diversos países da
Europa e de outros continentes, mas afetando por sobremaneira os habitantes dos
arredores da usina que tiveram que ser evacuados em massa sem possibilidade de
retorno.
A explosão ocorrida no reator 4 da Usina
Nuclear de Chernobyl gerou um grande saldo de mortes e mesmo hoje é a causa
principal dos muitos casos de doenças congênitas e má formações nas crianças,
bem como pela elevada incidência de câncer na população de diversas faixas
etárias.
Entretanto, mais do que sequelas na saúde da
população ucraniana e bielorrussa, o incidente provocou diversos outros
reflexos na vida daqueles sujeitos. Perdas imateriais e subjetivas: perda de
identidade e do lugar de pertença, este último um conceito que usamos na
Geografia e que está ligada ao subjetivo e ao simbólico, mas também ao espaço
físico da vivência.
Composto
completamente de relatos orais, Vozes de
Tchernóbil vem contar essa história sob um “olhar mosaicista”[8]
onde as várias vozes, sob ópticas abordagens e pontos diferentes vão montando o
cenário e o roteiro daqueles acontecimentos do qual elas mesmas fizeram parte,
porém em posições e momentos distintos. O resultado é uma quebra com a
impessoalidade da notícia e com a frieza dos números. É o acidente e a própria
União Soviética vistos de outro ângulo, através do olhar de quem esteve lá, de
quem ainda vive nas zonas proibidas, de quem colhe e padece dos frutos
radioativos de Chernobyl. Também daqueles que não viveram os primeiros dias,
mas tiveram suas vidas inevitavelmente marcadas pelos efeitos do acidente: as
gerações posteriores.
Durante quase 20 anos Svetlana entrevistou e
reuniu dezenas de relatos provenientes de um grupo extremamente heterogêneo:
ex-soldados, ex-liquidadores[9], físicos, professores,
camponeses, donas de casa, burocratas, membros de ONGs, refugiados, moradores
da zona, evacuados, crianças, adultos, idosos, homens e mulheres. Relatos que
perpassam o antes, o durante e o depois, de pessoas que testemunharam não só a
derrocada de um sistema, como também de suas vidas e das gerações que se
sucederam.
O livro começa com uma Nota Histórica onde a autora copila trechos de notícias e livros
que falaram sobre Chernobyl e assim permite ao leitor, sobretudo aos leigos, se
situarem, mesmo que minimamente, no contexto do que foi e de como se deu o
acidente nuclear. Mas logo em seguida, a autora começa de fato com as
narrativas trazendo o relato de Liudmila Ignátienko, a esposa de um dos
primeiros bombeiros a chegarem ao local do incêndio na central atômica.
Em seu relato
comovente e angustiante, Liudmila expressa o profundo sentimento que nutria
pelo esposo, Vassíli Ignátienko, e de como a exposição à forte radiação
liberada pelo reator transformou o corpo de Vassíli e o matou em apenas 14
dias. Uma narrativa forte que transcreve não só uma história de sofrimento e
dor, mas de um amor desmedido de uma mulher por seu marido, que mesmo estando
grávida de seu primeiro filho foi contra toda a racionalidade para se manter ao
lado do esposo doente até o último dia de vida dele.
Através de relatos como de Liudmila, alguns
deles bem tensos, outros saudosistas, melancólicos e até desesperados,
Svetlana traça um panorama de como
viviam os soviéticos atingidos, desde camponeses a citadinos, mas sobretudo
de como vivem os deserdados que foram obrigados a abandonar a terra onde
viveram por gerações, as dificuldades de readaptação em lugares estranhos para
onde foram mandados, o preconceito que ainda sofrem por serem “pessoas de
Chernobyl”, como lidam com o sentimento da perda, com a certeza da morte
prematura e/ou com o medo de gerar filhos doentes. Conta também sobre a
insanidade de tentar “vencer” a radiação, que esteve sempre aliada ao zoocídio[10]
de centenas de animais domésticos contaminados, à desinformação sobre os
riscos, ao patriotismo exacerbado e à necessidade urgente de conter o vazamento
do reator e impedir que outros desastres maiores acontecessem, mas que custou a
saúde e até a vida de milhares de homens e mulheres que trabalharam na zona contaminada.
Por esses tantos olhares, através de um
conjunto de vozes que compõem um coro, Vozes
de Tchernóbil tece o drama destas pessoas, como também faz a denúncia da
ação do Estado, que sob a desculpa de não causar pânico e desordem, preferiu
esconder a verdade sobre a dimensão real do problema, até mesmo para a
comunidade internacional.
O meu interesse em ler esse livro foi imediato
desde o seu lançamento, mas, infelizmente, não foi possível no
momento. Mais do que um interesse profissional sobre o tema, vi nesse livro uma
possibilidade de conhecer um pouco mais da realidade cotidiana de um dos países
que já fizeram parte do bloco socialista. Esse meu interesse se justifica
porque desde quando aprendi as diferenças entre capitalismo e socialismo que
tenho curiosidade
de saber mais sobre os países
que experimentaram o socialismo, a exemplo da URSS, China, Vietnã e Cuba. Uma
curiosidade quase imanente de saber como era e é a realidade cotidiana desses países, no que avançaram em relação ao capitalismo, no
que regrediram, como se vivia e se vive nessas nações. Contudo, sempre vejo com
desconfiança o relato de autores de extrema esquerda, e com ainda mais
desconfiança o que falam os pensadores de direita, sejam eles moderados ou de
ultradireita.
Pela
primeira vez leio um livro no qual as pessoas comuns são a voz a relatar.
Uma história oral, do ponto de vista de
quem viveu a realidade daquele lugar daquela época. O foco é sem dúvida
Chernobyl, mas não há como separar o maior desastre nuclear do mundo e o
socialismo soviético. A forma como tudo se deu fala muito do que era a URSS, da
ideologia dos que enfrentaram o desastre, dos que dirigiam o gigante
socialista. E os testemunhos, sobretudo, falam dessa realidade. Aprendi com
esse livro muito mais do que um pensador socialista pudesse me dizer, de forma
bem mais real do que as críticas, por vezes tendenciosas, que um pensador de
direita poderia supor sobre o que foi o socialismo real.
Sem
dúvida, um livro angustiante, pois a situação vivida por essas pessoas era como
um tipo de guerra, uma guerra contra um inimigo invisível, incompreensível,
dissimulado na aparente normalidade do que existia em volta, no qual, longe da
usina, tudo parecia normal. Como compreender a evacuação, a destruição do seu
lar, e o homicídio de seus animais, quando nem você mesmo compreende quem é o
inimigo contra o qual se luta? Por isso encerro dizendo, simplesmente, que este
é um livro altamente recomendável.
A edição lida é da Editora Companhia das
Letras, do ano de 2016 e possui 384 páginas.
Abaixo você pode conferir uma
prévia do livro disponível no Google Books. Abaixo também você pode ver imagens
aéreas feitas por um drone da cidade de Pripyat, hoje uma cidade-fantasma.
Vídeos
Pripyat de vista por um Drone
Como funciona a produção de Energia Nuclear?
Prévia do Google
Books
[1]A
transliteração do nome Chernobyl
(em ucraniano Чорнобиль) possui diferentes grafias a exemplo de Chernobil,
Chernóbil, Chernobyl, Tchernobil ou Tchernóbil. O tradutor do livro de Svetlana
Aleksiévitch optou pela grafia Tchernóbil, aportuguesada e mais próxima da
pronúncia. Contudo aqui optamos por uma grafia mais popular (Chernobyl) e
corrente, inclusive, no Inglês.
[2]https://pt.wikipedia.org/wiki/Acidente_nuclear_de_Chernobil
[3]O
reator era também conhecido como Chernobil-4
[4]No
período a Ucrânia era uma das repúblicas que compunham a União das Repúblicas
Soviéticas (URSS).
[5]https://pt.wikipedia.org/wiki/Acidente_nuclear_de_Chernobil
[6]ALEKSIÉVITCH,
Svetlana. Vozes de Tchernóbil: a
história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[8]Uso
a expressão “olhar mosaicista” comparando o conjunto dos relatos com as peças
de um mosaico. Peças que apesar de distintas, porque as visões dos depoentes
são diversas e distintas, ajudam a compor um todo que são os fatos ocorridos
naquele momento.
[9]Liquidador
é o termo que era empregado pelo Estado Soviético para designar cada membro do
grupo de mais de 600 mil pessoas responsáveis pela limpeza da área atingida e
contensão do vazamento da usina, ou seja, eram responsáveis por minimizar as
consequências do acidente.
[10]Assassínio
de animais. Disponível em:
https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/assassinio-de-animais--zoocidio/28815
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