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domingo, 7 de março de 2021

Eu e Você – Niccolò Ammaniti – Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

7 de março de 2021, ano da Itália

“O mimetismo batesiano se verifica quando uma espécie animal inócua, aproveitando sua semelhança com uma espécie tóxica ou venenosa que vive no mesmo território, consegue imitar a cor e os comportamentos dessa última. Assim, na mente dos predadores, a espécie imitadora é associada à perigosa, o que aumenta suas possibilidades de sobrevivência”.

(Niccolò Ammaniti, epígrafe)

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Um livro que explora a natureza humana quando esta é forçada a se adequar ao meio e que aborda a transição da adolescência para a idade adulta, Eu e Você, do italiano Niccolò Ammaniti, é um livro sensível que aborda as dificuldades de um garoto calado e antissocial em interagir de forma honesta e sincera com o mundo, mas que é confrontado pelo destino e posto à prova quando forçado a conviver, mesmo que temporariamente, com sua meia-irmã problemática e viciada em narcóticos.

Confira a resenha do terceiro livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.

Sinopse do enredo

Roma, fevereiro de 2000. Munido de comida, bebida, livros e jogos, Lorenzo Cuni está escondido no porão de seu prédio, rodeado de objetos empoeirados de uma condessa morta, esperando que a semana branca (settimana bianca) acabe e ele possa enfim retornar para o andar de cima e contar para a mãe o quão divertido foi passar aqueles dias esquiando nos alpes italianos com seus amigos.

Mentir e esconder-se ali era a única opção depois que ele inventou uma viagem que não existia com amigos que ele nem se quer conhecia. Uma maneira louca de fugir da perseguição dos pais que queriam que ele tivesse amizades.

Tudo parecia dar certo. Ele conseguiu enganar os pais em relação a viagem, e conseguiu despistar a mãe quando esta queria levá-lo ao ponto de encontro com os tais amigos. Depois disso, conseguiu se instalar secretamente em seu refúgio sem grandes esforços. Apesar disso, ele não contava que um segundo elemento se introduziria em seus planos: a meia irmã Olivia, com a qual Lorenzo quase não teve nenhum contato e que era viciada em drogas.

Naquele justo momento, Olivia aparece em busca de algumas coisas pessoais no porão da casa do pai, de algum dinheiro e de um lugar para “ficar limpa”, ou seja, para esperar passar o tempo de abstinência dos narcóticos que usava. Sob coerção, Lorenzo se vê obrigado a “hospedar” a irmã em seu refúgio secreto e, por vários dias, conviver com ela, uma quase desconhecida. É assim que Olivia se soma a equação de Eu e Você, e à vida do jovem Lorenzo.

Resenha

Quando comprei Eu e Você, em 2019, de planos fazer naquele ano a quarta edição da CALCT, fiquei um tanto receoso porque a capa e o título sugerem mais um daqueles romances de amor adolescente e dramático. Todavia o livro de Niccolò Ammaniti vai para um caminho totalmente oposto, e se ainda assim Eu e Você (no original, Io e Te) seja um tanto dramático, é um livro sem muito romantismo, cheio de originalidade e que conseguiu me agradar com seus personagens, sua narrativa e sua leitura ágil e descomplicada.

Li numa resenha que este livro promete pouco e entrega pouco, mas para mim, esse “pouco” foi mais do que o suficiente. É claro que Eu e Você não explora as belas paisagens italianas ou os cenários romanos seculares, mas, por outro lado, explora um pouco da natureza humana daqueles que são deslocados. O próprio protagonista e narrador é daquelas almas egocêntricas que preferem a solitude de estar em sua própria companhia porque considera que não há nenhuma outra associação melhor, mas que se vê – por atrito – forçado a amadurecer. A outra protagonista é uma pessoa destruída pelo desprezo de seus pares e pelo vício das drogas. Alguém desajustado, que mesmo não estando à espera de que alguém lhe estenda a mão, luta com suas próprias forças para encontrar um caminho.

Ammaniti parece gostar dos romances dramáticos e de família, a exemplo do seu elogiado Como Deus Manda (Come Dio Comanda), onde os dois protagonistas, pai e filho, vivem uma relação baseada na violência e no conflito. Eu e Você é mais suave, mas possui seus próprios tons dramáticos. A temática sobre as drogas já se tornou corriqueira – afinal, mais do que nunca, o uso de drogas se tornou um fato universal –, mas está em perfeito equilíbrio com a proposta e nível do livro. Ainda assim, ele foi bom o suficiente para garantir uma adaptação para o cinema realizado em 2012 por Bernardo Bertolucci e que rendeu várias indicações para o Prêmio David di Donatello.

A escrita de Ammaniti é ágil, leve e sucinta sem deixar de ser descritiva e bem escrita. É prosaica, mas não destituídas de alguma poesia. Há um equilíbrio entre diálogo e narração, e o narrador, por sua personalidade individualista é irônico e opinativo. Mas o interessante nesse livro é o choque existente entre duas gerações de irmãos tão distintos entre si. Ele amado e mimado, ela ovelha negra, perdida, indesejada. Desse choque nasce uma novela interessante, ainda que limitada. Mas o que quero mesmo é destacar seus personagens muito bem-feitos.

Lorenzo é um personagem tão peculiar quanto interessante. Ele é um ator nato e o meio termo entre um adolescente esnobe e malcriado, mas sensível, e o futuro projeto de um manipulador taciturno, antissocial e calculista, mas que não se concretiza. Observador, inteligente, e egocêntrico, mas pouco dado a conversar com aqueles que não faziam parte de seu círculo familiar. Só a mãe, o pai e a avó lhe importavam.

Os pais se preocupam com a pouca sociabilidade do filho. Quando era pequeno, Lorenzo só respondia aos estranhos com “sim, não, e não sei”, e se insistissem, dizia aquilo que eles queriam ouvir. Quando “os outros” não o deixavam em paz, se tornava agressivo e, por isso, os pais preocupados o mandaram para um psicólogo, que o menino tratou logo de tentar enganar, fazendo-se passar por um “menino normal”. Contudo o diagnóstico não poderia ser ao mais exato: Lorenzo era “incapaz de sentir empatia pelos outros”, “[...] tudo que está fora de seu círculo afetivo não existe, não lhe suscita nada” e “acredita que é especial e que apenas pessoas especiais como ele podem compreendê-lo”.

Os pais, obviamente, desacreditaram deste diagnóstico e tiraram o menino do tratamento. Para eles, o filho era “afetuoso”, “um menino normal”. No entanto, aquela decisão foi a chave para que Lorenzo aprendesse a dissimular, fingir ser quem não era para que as pessoas o deixassem em paz. Se misturava com os outros jovens numa distância segura o suficiente para que eles e os pais pensassem que ele era um “deles”, que tinha amigos, e longe o suficiente para não ser importunado. Como um inseto havia aprendido a mimetizar.

“Eu me misturava como uma sardinha em um cardume de sardinhas, me mimetizava como um bicho-pau entre ramos secos”.

Contudo, ao entrar no liceu[1] público a técnica deixa de ser eficiente e ele se torna alvo de bullying. O que lhe resta é evoluir, não como pessoa, mas como imitador, e é através da imitação das práticas e trejeitos dos mais temidos da escola que ele consegue afastar todo os indesejáveis. Ele passava a ser uma mosca que imitava as vespas.

“Em algum lugar, nos trópicos, vive uma mosca que imita as vespas. Tem quatro asas, como todas as de sua espécie, mas mantém uma sobre a outra, e assim parecem apenas duas. Tem listras amarelas e pretas no abdome, antenas, olhos protuberantes e até um ferrão de mentira. Não faz nada, é boazinha. Mas, vestida como uma vespa, é temida pelas aves, pelas lagartixas, até pelos seres humanos. Pode entrar tranquilamente nos vespeiros, um dos lugares mais perigosos e vigiados do mundo, e ninguém a reconhece.

Eu tinha errado tudo.

Era isso que eu devia fazer.

Imitar os mais perigosos”.

 

Desse modo, Lorenzo continuava sozinho e isolado. Sentia-se feliz sozinho, mas ao lado dos outros tinha que representar, o que chegava a amedrontá-lo. Além disso, inventava mentiras e casos engraçados da escola para deixar os pais tranquilos. Foi nesse círculo interminável de mentiras e dissimulações que ele acabou por inventar que alguns amigos haviam o convidado para esquiar e teve que buscar uma maneira de sustentar sua mentira. Nesse ponto começa de fato a história do livro.

[ALERTA DE SPOILER]. Olivia por sua vez é pintada pelo narrador sob as cores da irmã-mistério, desconhecida, inoportuna, indesejada, inteligente e boa mentirosa, mas, ao mesmo tempo, objeto de uma curiosidade pouco confessada e que ao olhar do irmão vai pouco a pouco se transformando, pela força da convivência forçada, como alguém em mutação.

[ALERTA DE SPOILER]. Ela, por sua vez, oscila da indiferença a curiosidade, das pequenas implicâncias a solidariedade fraternal que quebra lentamente o iceberg em que Lorenzo estava preso. Na maioria do tempo padece dos efeitos da abstinência, mas, nas suas falas, é possível perceber o ressentimento que nutria do pai e da madrasta.

É interessante notar que Olivia na história funciona como o ponto de pressão de Oliver, forçando-o a abandonar seu egocentrismo para ajudá-la em um momento em que ela se encontra extremante vulnerável e doente.

[ALERTA DE SPOILER]. Eles dois não conviveram, mal se conheciam, e se viram em pouquíssimas oportunidades, mas a relação irmão e irmã, com seus altos e baixos, birras e solidariedades está ali, explícita, palpável. E desse modo aquele breve tempo juntos acaba por impulsionar o lado mais humano do garoto e contribui para seu crescimento e amadurecimento por forçá-lo a deixar de olhar para si, para olhar para o outro. Uma temporada breve, mas significativa ao ponto de levar o menino a ampliar seu círculo afetivo outrora tão estreito.

Enfim, o desfecho é singelo e muito sensível, sem deixar de ser, até certo ponto, realista e verossímil. O livro como um todo não é um clássico, e rapidamente caiu no esquecimento, mas tem qualidade e te prende, sendo, em parte, até comovente.

A edição lida é da Editora Bertrand Brasil, do ano de 2013 e possui 160 páginas.

Sobre o autor


Niccolò Ammaniti nasceu em Roma e é um dos mais conceituados autores italianos da atualidade. Os seus livros são sucessos de vendas internacionais e estão publicados em quarenta e quatro países. Escreveu os romances Branchie, Ti prendo e ti porto via e Não tenho medo, além da antologia de contos Fango. Como Deus Manda recebeu o prêmio Strega, mais importante e disputado da literatura italiana. A Festa do Século, seu livro seguinte, demonstra todo o talento do autor por meio de uma crítica tão criativa quanto impiedosa à sociedade. Com Eu E Você, Ammaniti comprova a versatilidade literária que o levou a ser traduzido para mais de quarenta idiomas.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano.

Saiba mais sobre os autores que estão sendo lidos na Campanha no link: autores.

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Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


domingo, 7 de fevereiro de 2021

Um Amor Incômodo – Elena Ferrante – Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

07 de fevereiro de 2021, ano da Itália

“Talvez eu quisesse tentar estabelecer entre nós uma intimidade que nunca existira, talvez eu quisesse confusamente fazer com que ela soubesse que eu sempre fora infeliz.”

(Elena Ferrante – Um Amor Incômodo)

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Edição Brasileira, pela editora Intrínseca. Preço de capa: R$ 39,90
Livro de estreia da celebrada e misteriosa escritora italiana Elena Ferrante Um Amor Incômodo é um livro um pouco monótono, mas que aborda a violência doméstica de forma autêntica e complexa. Uma narrativa crua, de personagens marcantes, sentimentos intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória.

Confira a resenha do segundo livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.

 

Sinopse do enredo

Delia é uma desenhista de quadrinhos que abandonou sua cidade natal, Nápoles, para fugir do seu passado e da relação complicada que possuía com sua família. A única pessoa com quem a desenhista mantinha proximidade era com Amalia, sua mãe, que frequentemente ia a Roma visitá-la. Entretanto, mesmo essa presença um pouco constante da mãe era indesejada e incômoda a Delia, até o dia que Amalia é encontrada morta em uma praia em circunstâncias misteriosas: seminua, vestida apenas com um sutiã de grife.

A morte inesperada da mãe obriga Delia a retornar à Nápoles e enfrentar novamente o seu passado marcado pela violência doméstica causada pelos rompantes de raiva e ciúmes obsessivo de seu pai. Nessa viagem de volta ao passado, ao mesmo tempo em que busca lidar com a perda da mãe, a quadrinista se vê diante do desafio de buscar preencher as lacunas do passado, encarar os fortes sentimentos que Amalia lhe provocava e descobrir como ocorreu a sua morte. Mas é principalmente a figura do suposto amente da mãe, Caserta, que persegue as lembranças do passado e também o presente de Delia.

Entorno da figura de Amalia e Caserta gira a curiosidade e o desejo sôfrego de Delia de compreender o que de fato havia acontecido entre os dois no passado, provocando na italiana a reflexão dos fatos que se deram em sua infância e que levaram a deterioração da sua relação com a mãe e também com o pai.

Resenha

Elena Ferrante é uma das mais curiosas escritoras italianas que já ouvi falar. Não só por conta do sucesso de sua obra composta de nove livros – todos já publicados no Brasil – como também pelo mistério que envolve sua identidade, segredo este que já rendeu investigações e polêmicas na Itália há alguns anos.

Nunca havia lido nada de Ferrante apesar do sucesso da escritora entre os leitores brasileiros, mas resolvi fazê-lo por conta da IV Campanha Anual de Literatura, que nesse ano homenageia a literatura italiana. Por força desse fator, decidi ter meu primeiro contato com a obra da escritora a partir de seu livro de estreia Um Amor Incômodo (L’amore molesto), que segundo dizem os leitores assíduos da italiana é um livro ainda da fase pouco madura da escritora e, logo, ainda um pouco distante da sua escrita atual.

Um Amor Incômodo é um livro intimista e com uma caraga dramática pesada, mas que aborda com muita sensibilidade os desdobramentos emocionais na vida adulta de uma infância marcada pela violência doméstica.

Publicado em 1992, a obra foi adaptada em filme homônimo pelo cineasta Mario Martone em 1995, mas só em 2017 o livro foi publicado no Brasil.

O enredo conta a história de Delia, uma quadrinista quadragenária, profissionalmente realizada, mas emocionalmente abalada pelo passado familiar, o que imprime em seu comportamento um forte desejo de distanciamento dos seus familiares.

Delia (interpretada por Anna Bonaiuto). Cena do filme L'amore Molesto (1995).

Delia é o tipo de personagem introspectivo que se perde bastante nos próprios sentimentos e pensamentos. Como a história se passa no momento em que ela tenta lidar e processar a perda da mãe encontrada afogada no dia do aniversário da filha, durante grande parte da narrativa, Delia divaga sobre o passado e vai, ao mesmo tempo, reconstruindo a linha histórica de lembranças e memórias não muito confiáveis. Essa reconstrução é importantíssima na trama, porque nos revela o passado da protagonista ao mesmo tempo que, por um lado, nos elucida as circunstâncias que fizeram sua relação com a mãe se tornar insustentável e, por outro, desvenda os últimos passos de Amalia antes de ser encontrada morta.

Vista da cidade de Nápoles com Vesúvio ao fundo. Nápoles é o principal cenário do livro de Ferrante. Imagem de Damirux. Wikimedia Commons.


O enredo em si é esse reencontro da protagonista com o seu passado
, com ela mesma e com as lembranças de sua relação com a mãe. Mas mesmo sendo conturbada essa relação entre mãe e filha, é ela que dá forma e norte a personalidade da protagonista que inicialmente demonstra uma aversão quase que instintiva e bastante intensa pela presença de Amalia, chegando a se sentir um tanto aliviada com a morte de sua progenitora. No entanto, gradativamente vai se revelando que, na verdade, essa aversão é fruto de um sentimento frustrado e infantil de desejo de simbiose, ou melhor dizendo, de querer ser a mãe, fundir-se e confundir-se com a personalidade materna, como também observa Aline Aimee. Daí vem o título do livro. O amor de Dalia por Amalia era tão cheio de marcas, complexos e sentimentos conflitantes que ele se tornava incômodo, angustiante, sofrido.
A principal marca da personagem principal na narrativa é sua difícil relação com a mãe. Delia analisa e reconstrói essa relação a partir das memórias que possui de sua infância com Amalia, o pai, o tio e os vizinhos: Caserta, o menino Antonio e o avô confeiteiro de Antonio. Ao mesmo tempo ela envereda numa busca por reconstituir os últimos acontecimentos vividos por Amalia, como sua reaproximação com o suposto amante do passado, Caserta, e também fechar as lacunas que explicariam as circunstâncias de sua morte.

A minha opinião sobre a personagem principal é que ela não é a figura mais importante de sua própria história e perde um pouco de seu protagonismo para a figura da mãe, personagem forte e dúbio e que, por isso, me faz lembrar de outra personagem feminina: Capitu, do livro Dom Casmurro, obra icônica do escritor brasileiro Machado de Assis.

Amalia, cuja morte é o motivo de existir enredo, rouba a cena por ser uma personagem difícil de precisar e de descrever, mas que ao mesmo tempo é a cola que une todo o elenco do livro e os fios de sua trama. Sem ela, simplesmente, não existiria história.

Amalia jovem, interpretada por Licia Maglietta (1995).

Em sua juventude, a mãe de Delia é descrita por Ferrante como uma mulher bonita, risonha e provocante, que buscava preservar o bom humor e o gosto pela vida, mesmo vivendo em um ambiente sufocante e marcado pela violência. Casada com um pintor fracassado que sobrevivia com a venda de pinturas baratas de temas vulgares, Amalia sofria constantemente com as agressões do marido extremamente ciumento e que sempre a agredia. Mesmo em ambientes públicos, quando algum homem se dirigia a ela e a mesma esboçava algum tipo de simpatia, Amalia costumava ser vítima das agressões. Os abusos também eram muito comuns por conta dos constantes presentes que Amalia recebia do vizinho Caserta que era sócio de seu marido nos negócios de vendas de pinturas.

Desse modo, o tema da violência doméstica se torna um elemento imprescindível da história escrita por Ferrante e dá a narrativa um caráter bastante realista. As lembranças de Delia são profundamente marcadas pelas cenas de violência protagonizadas pelo pai e, por isso, o tema funciona como elemento crucial na formação da personalidade da protagonista. O resultado é que o desenho psicológico de Delia é bastante conturbado e atravessado pelo produto de um passado marcado de um lado pela frustração e nunca conseguir se igualar a figura materna, e de outro pela violência doméstica da qual ela foi testemunha e em um dado momento foi também impulsionadora.

Cenas do filme L'Amore Molesto de Mario Martone (1995) 
e que retratam a violência doméstica sofrida por Amalia.

Outros dois personagens importantes na trama são o tio Filippo, irmão de Amalia e que em vez de defendê-la das agressões a culpava por elas, e Caserta, outro personagem enigmático da trama e que sustenta a narrativa junto com as lembranças de Amalia conservadas por Delia.

Filippo é um homem tosco e irritadiço. Na maior parte do tempo fica xingando no dialeto local e falando mal de Amalia, a culpando por destruir o próprio casamento por seu comportamento, na visão dele, bastante reprovável. Ele junto com o pai de Delia representam na narrativa a figura do homem machista que vê na mulher a reencarnação da devassidão e da pecaminosidade, devendo ser corrigida a sua inclinação inevitável para a infidelidade com pancadas. 

Caserta é descrito no livro como um homem “esperto, de pele escura como um sarraceno, mas com olhos de diabo assanhado”, tinha fama de importunar as mulheres do bairro e desde a infância sua imagem causava a Delia uma mistura conflitante de atração, repulsa e medo. Este não era seu nome, mas um apelido.

Discussão entre Caserta (camiseta branca - por Enzo De Caro), Filippo (com a arma - Francesco Paolantoni) e o pai de Delia (à esquerda - Italo Celoro) em cena de flashback do filme L'amore Molesto (1995).

Na época, o pai da menina já era um pintor medíocre que pintava por ninharias, foi Caserta quem percebeu a possibilidade de que ele ganhasse um pouco mais pintando retratos a óleo das mães, irmãs e namoradas dos marinheiros americanos com saudades de casa. O negócio com Caserta porém de se desfez depois que o pai de Delia achou uma proposta mais vantajosa, pintando imagens de ciganas. Amalia se opôs e daí em diante as brigas entre o casal por conta de Caserta começaram, se tornando pior quando Delia lançou ao pai a semente da desconfiança de uma possível traição. Filippo e o cunhado quase mataram Caserta e seu filho, obrigando-o a fugir com sua família.

Passados todos aqueles anos Caserta ainda era um nome envolto em mistério, e de alguma forma ele estava ligado aos últimos dias de vida de Amalia. Delia não sabia como nem porque, mas o mistério daquele homem asqueroso a atraía.

A título de conclusão...

Apesar de ser uma narrativa na qual a narradora reflete bastante sobre cenas e episódios ocorridos no passado, Ferrante usa de uma narração linear e não recorre a flashbacks. Delia narra os hábitos, as brigas, os fatos, os lugares e as pessoas, mas não perde a sua condição de narradora quando evoca o passado. Por conta disso, ela acaba por caminhando pela linha tênue entre os acontecimentos do passado e o presente, como se o passado fosse imagens fantasmagóricas que a quadrinista vislumbra sobrepostas às imagens do presente. Por isso, não é incomum que sonho, lembrança e realidade se fundam na mente da narradora e ela chegue até mesmo a ter visões, sobretudo da mãe.

Ferrante escreve um livro de atmosfera intimista e psicológica muito marcante. Lembranças, divagações e fantasias da protagonista se misturam, mostrando que muitas das respostas que ela buscava já estavam guardadas em seu subconsciente, e seria o contato que ela faz com todas aquelas pessoas do passado o fator responsável por trazer gradativamente à tona as lembranças mais escondidas.  Desse modo, o tom que percebi dominar na obra foi a da confusão de sentimentos, pensamentos e lembranças que emanam de Delia e que conduzem a personagem em um encontro com seu passado, recuperando cenas e enredos esquecidos e deformados com o passar do tempo.

Enfim, achei o livro monótono, mas a forma como Ferrante aborda a violência doméstica através das lembranças um tanto inconsistentes da protagonista e os complexos e aversões que ela desenvolveu no processo foi excepcionalmente autêntico e até mesmo complexo. Ademais, Um Amor Incômodo é uma narrativa crua, de sentimentos muitos intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória. Possui personagens muito marcantes, cujos sentimentos e ações nos fazem questionar muito sobre a natureza humana.

Muitos afirmam, que este livro não é o melhor de Elena, mas como minha primeira experiência com a autora, não farei julgamento de valor. Além disso, é sabido de qualquer leitor experimentado que livros de estreia quase sempre são reflexos de um escritor ainda em formação, ainda cru e em processo de aperfeiçoamento. Justamente por isso é interessante ler estes livros, porque eles meio que humanizam aqueles que se encontram no panteão da literatura internacional.

A edição lida é da Editora Intrínseca, do ano de 2017 e possui 176 páginas.

Sobre o autor

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que prefere manter sua identidade em segredo sob a justificativo poder escrever com liberdade, e para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma imagem pública. Especula-se que seja uma tradutora, Anita Raja, que nasceu em Nápoles e que seja casada com o também escritor Domenico Starnone.

A autora concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e intermediadas pelas suas editoras italianas. A única certeza sobre ela é que escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance, L'amore molesto, livro resenhado nesta postagem.

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domingo, 17 de janeiro de 2021

Opinião | O Decamerão em tempos de quarentena: as pandemias de peste negra e Covid-19

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

17 de janeiro, Ano da Itália.

A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”.

(Albert Einstein)

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Dizem os historiadores que aprendemos com o passado para entendermos não apenas o nosso presente como para projetar o futuro. De forma análoga diria eu que aprendemos com a ajuda da literatura a compreender nossa realidade através das experiências, descrições e relatos subjetivos e objetivos dos escritores e que estes imprimem em suas obras.

No caso do livro O Decamerão (ou Decameron), obra centenária do italiano Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), ambas as proposições podem ser consideradas como válidas e pude atestar a validade dessas afirmações quando li o livro em meados do ano passado, em plena quarentena contra a COVID-19.

Escrito em pleno curso da pandemia de Peste Negra que varreu o continente europeu entre os anos de 1347 e 1351, O Decamerão não é unicamente uma obra dedicada a falar do amor erótico, mas é também uma expressão vívida e potente do horror causado pela pestilência que vitimou um terço da população europeia.

Na primeira das dez jornadas que compõe o livro, Boccaccio dedica algumas das páginas de sua obra para fazer um relato dirigido aos leitores sobre os impactos da doença na cidade itálica de Florença, onde se desenvolve a história central da obra. Nesse breve relato que permeia quase uma dezena de páginas o autor – ainda muito impressionado com a violência da peste e com a forma como a esta havia modificado o comportamento e a vida dos florentinos – faz uma descrição abrangente no qual conta as origens, os danos e sintomáticas da doença, seus reflexos sobre o comportamento dos florentinos, as mudanças de hábitos, as crenças acerca da doença, as dificuldades de sepultamento, além de falar do abandono dos campos e dos animais pelos camponeses que morriam aos montes. Enfim, ele faz um panorama de como a doença se manifestava, mudava o comportamento daquela sociedade e de como consumia a vida de suas vítimas, aterrorizando os que ainda se mantinham sãos.

No contexto do momento em que li aquele relato foi inevitável para mim não lançar sobre a obra um olhar comparativo com a realidade de angustias, mortes e incertezas em que éramos forçados a viver na época de minha leitura e ainda nos dias atuais. E acho que aprendi mais sobre a vida humana em tempos de pandemia do que me limitando ao que via e ouvia no noticiário da TV.

A COVID-19 assustou o mundo, mas também o tornou mais nítido.

Como ainda não havíamos testemunhado, a misteriosa doença principiada na longínqua cidade chinesa de Wuhan parou mercados em escala global, forçou pessoas a mudarem suas formas de viver, trabalhar e se relacionar e tornou em um caos a rotina de governos e profissionais de saúde.

O coronavírus mostrou-se bom de briga e obrigou empresas e comércios a se adequarem a uma realidade nova e inesperada. Reuniu esforços médicos e científicos de centenas de lugares. Escancarou o egoísmo humano bem como destacou sua capacidade de empatia e solidariedade. Aproximou famílias, desfez casamentos, fomentou o feminicídio e a violência doméstica. Evidenciou desigualdades, aprofundou o desemprego, destruiu economias já irremediavelmente frágeis.

No campo do poder, fez máscaras politicas caírem e evidenciou quais eram os países e governos realmente preparados e com gestões competentes. Nunca ficara tão violentamente evidente quem eram aqueles que governavam com discursos vazios os seus belos castelos de areia prestes a ruir. Polarizados, testemunhamos incrédulos um bizarro show de mortes, irracionalidade e ódio gratuito fermentado por incertezas, teorias da conspiração, guerra política, divergências, retrocessos e medo.

Enfim, o futuro ainda é incerto e nebuloso, mas quando li O Decamerão senti que haviam certos padrões que se repetiam em nosso tempo atual – o famoso tempo circular –, bem como deixou evidente para mim a diferença que faz o nível técnico e científico de cada época para dar resposta a momentos de crise desta natureza.

PANDEMIAS SÃO SEMPRE MOMENTOS DE MEDO, IRRACIONALIDADE, DIVERGÊNCIAS E POLARIZAÇÃO

Como homem de seu tempo Boccaccio inicia sua exposição sobre os efeitos da Peste Negra colocando-a como desígnio e ira divina que se abatera sobre os homens para puni-los de sua iniquidade e expiar seus pecados. O discurso que é extremamente condizente com as crenças e mentalidade da época, não difere essencialmente dos discursos atuais de uma minoria barulhenta que (descrentes na ciência) constroem entorno da COVID-19 uma série de teorias conspiratórias, disseminam uma enxurrada de informações falsas, tratamentos supostamente miraculosos que vão de cloroquina a desinfetante e que atribuem o caos instaurado pela doença a uma suposta histeria coletiva e infundada.

O nome que posso dar ao que se dava na Europa de Boccaccio é desinformação fundada na única explicação disponível: a explicação religiosa. O nome que damos ao que é feito hoje (a despeito de todos os avanços científicos) é negacionismo fundamentado na ignorância e no fanatismo. Eis a primeira distinção histórica.

Mas em termos de semelhanças, quando lemos o relato de Boccaccio, vemos que o período da pandemia de peste foi ele também uma época de divisão de opiniões e de certa polaridade. Não se tratava, porém, de uma polaridade exatamente política como a nossa e nem tão radicalmente inflexível, mas acerca de como melhor proceder durante a pandemia. Essa polaridade dividia as pessoas e suas reações frente a doença em quatro categorias:

Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter.

Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. [...]

“[...] Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas, outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao nariz, pois consideravam ótimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios.

Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como fugir; [...].

E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; [...].” 

É obvio que na nossa época a polaridade se dá em novos contextos. Não é sensato querer dizer que agimos hoje de forma equivalente, mas mesmo agora as opiniões estão divididas e polarizadas e as decisões tomadas por cada um, seguindo esta ou aquela visão, contribuíram e vem contribuindo para o aumento dos casos.

Há os que minimizam a gravidade da doença e não seguem as medidas de proteção orientadas pelos médicos e autoridades sanitárias. Há aqueles que as seguem parcialmente e com perigosa flexibilidade e que para não se privar de seu lazer e divertimento, promovem ou participam de festas e aglomerações. E por fim, há os que de fato se isolaram em quarentena. Entretanto algo que chama a atenção é que, ao contrário do que ocorria no século XIV, hoje sambemos quais as medidas preventivas, então a divisão de opiniões tem caráter pura e simplesmente ideológica.

Várias centenas de manifestantes anti-lockdown se reuniram no Ohio Statehouse em 20 de abril. Wikimedia Commons.

Boccaccio relata que fora aquela época um período que se deu muita vazão a imaginação, as crendices (que direta ou indiretamente disseminam ideias falsas).

De tais coisas e de muitas outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde.”

Coisa semelhante se dá nos dias atuais. De coisas que as pessoas ouvem falar, de casos particulares que presenciam ou de mera especulação ideológica nasceram dezenas de teorias absurdas.

Alguns afirmam que o coronavírus teria sido fabricado em laboratório por instituições farmacêuticas, outros que a pandemia seria parte de um plano maior envolvendo governos e países. Há quem acredite que as vacinas causam doenças graves e que conteriam de HIV à chips com o número da besta.

Contudo, uma das teorias mais comuns, é a de que os números de mortos e doentes seriam inflacionados, sobretudo pelos dirigentes de municípios, a fim de angariar recursos federais. Ainda que seja plausível pensar que algumas lideranças políticas nos milhares de municípios brasileiros tenham intenções corruptas, essa ideia é generalizada e propagandeada a fim de minimizar a gravidade da doença.

São ideias conspiratórias de base ideológica e que encontram no medo, na ignorância das pessoas ou na inflexibilidade de pensamento terreno fértil para se disseminar.  Elas se assemelham ao que acontecia na época de Boccaccio porque são frutos da ignorância das pessoas, da desinformação ou simplesmente porque são explicações que lhes agradam mais porque se harmonizam melhor com suas crenças e visões de mundo.

Outras duas semelhanças que encontrei entre os dois momentos históricos através das falas de Boccaccio estão relacionados a pobreza e as dificuldades de enterrar o grande número de mortos.

Boccaccio menciona que os pobres estavam entre as classes mais atingidas pela mortandade. Tal como agora, as classes mais baixas eram as mais atingidas e não podiam retirar-se das localidades de contágio e por isso adoeciam em grande quantidade.

Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção.

Em outras palavras, assim como agora, na Idade Média a desigualdade social também teve seus reflexos sobre o agravamento da pandemia de peste bubônica. No caso do Brasil, impossibilitados de trabalhar durante a quarentena o auxílio emergencial foi imprescindível para salvar milhões da fome e da extrema pobreza. Além disso o tamanho das casas de famílias mais humildes e numerosas também dificultou bastante (e em alguns casos não permitiu) qualquer tipo de isolamento social entre eles, ampliando os contágios. Mas mais do que isso, são inúmeros os casos de pessoas de comunidades pobres que não encontraram assistência médica quando doentes.

Gravura contemporânea de Marselha durante a Grande Peste em 1720. Conhecida como a Grande Peste de Marselha, essa epidemia de uma variação da Peste Negra matou cerca de 100 mil pessoas na cidade de Marselha, na França. Wikipedia Commons.

Quanto aos mortos, relata Boccaccio que:

“Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora [...], abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até a borda.”

Esqueletos numa vala comum de 1720 a 1721 em Martigues, França, renderam evidências moleculares do ramo orientalis de Yersinia pestis, o organismo responsável pela peste bubônica. A segunda pandemia de peste bubônica esteve ativa na Europa desde 1347, o início da peste negra, até 1750. Wikimedia Commons.


O número de mortos e contaminados pela COVID-19 está até então (e felizmente) em patamares extremamente menores do que os 70 a 200 milhões de mortos[1] que se estima que tenham morrido durante a Peste Negra, mas isso não impediu que em certas localidades faltassem cemitérios para enterrar o grande volume de mortos.

Em abril de 2020, a prefeitura de Manaus necessitou abrir valas comuns em cemitério para enterrar as vítimas de coronavírus[2]. Naquele mesmo mês Nova York vivia o drama de ter seus necrotérios lotados[3] e também passou a usar valas comuns na Ilha Hart para enterrar seus mortos[4].

A DIFERENÇA QUE A CIÊNCIA FAZ NA SALVAÇÃO DE VIDAS

Não obstante, de todos os aspectos que o relato de Boccaccio em O Decamerão me fez refletir, o principal está relacionado a diferença que o conhecimento e o avanço científico fazem hoje em nossas vidas.

Segundo o relato do escritor medieval, a semelhança do que governos, médicos e cientistas fazem na pandemia atual, algumas medidas sanitárias e de fechamento da cidade (fechamento de fronteiras) foram adotadas na Florença da época. O relato ainda deixa supor que até mesmo instruções foram dadas a população, entretanto, todas essas medidas se demonstraram infrutíferas, por razões que ele não explica em seu texto.

E, de nada havendo servido os saberes e as providências humanas, limpeza das imundícies da cidade por funcionários encarregados de tais coisas, a proibição de entrada dos doentes e os muitos conselhos dados para a conservação da salubridade [...]”.

 O autor também relata que na época faltava atendimento por conta da periculosidade da doença ou por falta de serviços oportunos, o que contribuiu para o aumento do número de mortos.

Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão a morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais presenciar.”

Mas, de todos os aspectos, a falta de conhecimento médico sobre a doença foi fator decisivo.

Tratava-se de uma enfermidade nova, desconhecida. Na época mão se sabia a origem da peste nem como esta passava aos seres humanos, por conta disso, também se desconhecia a forma mais eficaz de tratá-la e de evitar os surtos e propagações. Muitos médicos não passavam de charlatões e aqueles que de fato eram formados em medicina também se encontravam quase que de mãos atadas.

Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina: ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme, havendo, além dos cientistas, também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa, nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam, como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação”.

A peste bubônica é de origem bacteriana (bactéria Yersinia pestis), diferente da COVID-19 que é uma enfermidade viral (SARS-CoV-2). Mas, a semelhança daquela, a COVID-19 era no começo da pandemia quase que totalmente desconhecida, uma doença nova, e, mesmo com todo o nosso avanço técnico, foram precisos muitos meses para que médicos achassem os tratamentos mais eficazes e que cientistas pudessem desenvolver vacinas. Essa corrida contra o tempo abriu espaço para especulações de medicamentos supostamente eficazes, mas sem comprovação científica, a exemplo da hidroxicloroquina, sugerida pelo presidente dos EUA, Donald Trump, que chegou a falar também no uso de injeções de desinfetante[5]. A imprudência do chefe de estado americano chegou a repercutir e só na cidade de Nova York as autoridades de saúde da cidade receberam 30 chamados por ingestão de desinfetante nas dezoito horas que se seguiram a fala de Trump[6].

Mas a fala de Boccaccio deixa evidente como a ciência e os avanços médicos são fundamentais para minimizar o número de mortos quando novas doenças e com elevado grau de contaminação e mortes acaba por surgir no cenário mundial. Para nós que vivemos em uma época radicalmente diferente, sobretudo em termos de avanço técnico, mas com algumas tênues similitudes em relação a época em relação a comportamento social diante de situações de pandemia, devemos nos atentar para a relevância da ciência em nossa sobrevivência enquanto espécie e combater os pensamentos retrógrados e reducionistas que tentam descreditar a ciência.

A peste negra matou muito mais e era potencialmente mais mortal do que a COVID-19, mas foi o desconhecimento sobre as suas origens, acerca de tratamentos eficazes de combate e imunização e sobretudo a ausência de uma ciência médica desenvolvida para investigar em tempo hábil esses aspectos que fizeram daquela pandemia muito mais mortífera que a atual.

Se houvesse na época a integração e a facilidade de locomoção entre os vários continentes como existe hoje, ou mesmo os grandes fluxos de circulação de pessoas – que muito facilitam a propagação de agentes patogênicos como o coronavírus – os efeitos seriam ainda mais mortíferos. Ainda assim, um terço da população europeia sucumbiu.

Ademais, na época, se desconhecia a relação entre a peste, a pouca higiene urbana, ratos e suas pulgas (principais transmissores). O desconhecimento levou a explicações religiosas acerca de castigos divinos e mesmo teorias de que a contaminação se dava por via área (pelo ar) – a teoria do miasma. A importância da higiene só foi reconhecida séculos depois e o estabelecimento da ideia de quarentena em 1377, foi um avanço médico fundamental para o combate à doença[7]. A técnica até hoje se mostra fundamental e básica para evitar a propagação de epidemias.

Temos hoje a nosso favor um número vasto de conhecimentos acumulados e milhares de especialistas que trabalham em colaboração a nível internacional. É graças aos avanços científicos que tantas vacinas foram criadas em menos de um ano (tempo recorde) e que desde o começo da pandemia a população foi prontamente orientada quanto as principais formas de prevenção (máscaras, álcool em gel, higienização das mãos, medidas de isolamento social). Coisas assim eram inimagináveis na época de Boccaccio e custaram milhões de vidas. Ainda assim, muitas pessoas desacreditam a ciência, agem de forma negacionista e espalham desinformação, não só por ignorância, mas por alienação política e até religiosa.

Um aviador dos EUA recebendo uma vacina COVID-19. Wikimedia Commons.

Enfim, o que vem por aí nós não sabemos. Todavia concluo esse texto chegando a uma única e importante conclusão possível: o futuro pós-pandemia é imprevisível, mas certamente passaremos por uma mudança radical que nos levará a divisar novos horizontes formados pelo progresso em determinadas áreas e por terríveis retrocessos em outras.

Que nesse nosso caminhar relatos como o de Boccaccio em O Decamerão nos sirvam de lembrete para que não repitamos os erros do passado, afastemos de nós o negacionismo, a ignorância, as crendices e o fanatismo religioso, bem como as firmações sem fundamentação ou lastro científico, para que não experienciemos consequências tão desastrosas como aquelas que a Europa vivera no século XIV.

Você pode conferir a resenha de O Decamerão neste link.

Referência da edição de onde foram extraídas as citações

BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Tradução Ivone C. Benedetti. Porto Alegre, L&PM, 2013.

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[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra

[2] https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/21/prefeitura-de-manaus-faz-valas-comuns-em-cemiterio-para-enterrar-vitimas-de-coronavirus-veja-video.ghtml

[3] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52224123

[4] https://oglobo.globo.com/mundo/nova-york-abre-valas-comuns-para-enterrar-mortos-por-coronavirus-24364067

[5] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/04/24/trump-sugere-luz-solar-e-injecao-de-desinfetante-para-tratar-coronavirus

[6] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/04/25/ny-tem-30-chamados-por-ingestao-de-desinfetante-melhor-prevencao-e-higiene.htm

[7] https://pt.wikipedia.org/wiki/Peste_Negra#Causas 

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