Por Eric Silva para a Tag Coleção Vagalume
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A coleção vaga-lume é um conjunto de livro infantojuvenil
que inegavelmente marcos a história de vida de muitos leitores brasileiros. São
poucos os adultos leitores que nunca tenham lido pelo menos um dos livros dessa
vasta coleção que reúne alguns dos maiores nomes da literatura infantojuvenil
brasileira das décadas de 80 e 90.
Eu pessoalmente tenho muitas destas leituras na minha
bagagem de adolescência: A Vida Secreta
de Jonas e O Brinquedo Misterioso, ambos
de Luiz Galdino, os livros de Marcos Rey como O Mistério do Cinco Estrelas, Na Rota do Perigo e Sozinha
no Mundo, além de A Serra dos Dois Meninos de Aristides
Fraga Lima. Sozinha no Mundo e o livro de Aristides são os meus prediletos na
coleção.
Meu amor por essa coleção é tão grande que lanço hoje uma
nova tag exclusiva para ela. Entre os muitos que li e dos que possuo em casa
começo resenhando um que só apareceu aqui no blog através do resumo de um
antigo aluno meu, mas que, ainda assim, rendeu até o hoje mais de 1600 acessos:
Zezinho, o Dono da Porquinha Preta.
Sinopse
Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma novela infantojuvenil do escritor mineiro Jair
Vitória. Nesse livro Jair narra as aventuras de um menino do campo, Zezinho, na
sua luta para impedir que seu pai, um homem rústico e turrão, venda sua
porquinha de estimação para um dos lavradores vizinhos.
Resenha
Enredo
Zezinho é um menino do
interior acostumado a uma educação rígida e sem muito sentimentalismo. Seu pai,
Odilo, é um homem rústico endurecido pela difícil vida do campo e pouco
acostumado a demonstrações de afeto e carinho. Sempre muito severo e rígido, os
filhos o temem e basta uma palavra sua para que os meninos o atendam de pronto
por temor de algum castigo ou represália. Mesmo a esposa tem pouca influência
sobre Odilo que normalmente faz o oposto aos seus conselhos apenas para contrariá-la
e demonstrar poder.
Na narrativa contada por Jair
Vitória, Odilo resolveu vender, Maninha, a porquinha preta de estimação do
filho criada sempre próximo a casa desde que era uma leitoa. Maninha é muito
dócil e está preste a ter sua primeira ninhada de porquinhos. Zezinho tem muito
afeto pelo animal e cuidou da porca desde que ela era pequena, acostumando-a a
ficar próxima dos humanos, atender seus chamados e aceitar afagos seus.
Quando, Valtério, o filho do
lavrador vizinho, conta a Zezinho que seu pai comprará Maninha de Odilo o
menino se revolta com o amigo, acusando-o de invejoso e ladrão. Mas a principal
revolta do menino é saber que seu pai jamais voltaria atrás com a sua decisão e
venderia a porquinha desconsiderando os sentimentos do filho pelo animal.
Tentando impedir a venda da
porquinha escondendo-a nas grotas[1] da região e convencendo os
lavradores a não comprarem Maninha, Zezinho se envolve em diversas confusões
que atiçam a ira do pai.
Personagens
realistas: as vivências do autor
Jair Vitória é um escritor
que cresceu e se criou na zona rural mineira. Suas narrativas dialogam com suas
vivências na roça e, por isso, costumeiramente estão ligadas a questões da vida
e do campo como Botina Velha, o Escritor
da Classe que fala das crianças que abandonam a escola para ajudar no
trabalho da lavoura e A Terra que
Machucou que aborda a questão da luta pela terra.
Os personagens criados por Jair são inspirados na
realidade brasileira e no cotidiano das populações rurais de sua época, o que
torna o livro não só essencialmente brasileiro, como realista. Seus personagens são críveis e poderiam muito bem terem
existidos na realidade ou terem sido inspirados em pessoas reais.
Filho de lavradores, assim
como Zezinho, Jair tirou de suas próprias vivências o material que inspirou a
história, por isso a sua narrativa mesmo voltada para crianças e jovens
adolescentes é repleta de sensibilidade e delicadeza e todos os seus elementos
(cenários, linguagem, costumes e temas) são realistas e apontam para o seu
conhecimento da vida e da criação do povo mais antigo das áreas rurais. Zezinho
poderia ser o alter ego da criança
que Jair foi na infância: uma criança travessa, mas sensível e inocente, muito
ligada aos animais e corajosa no sentido de defender as criaturas por quem tem
estima. Isso torna Zezinho, o dono da
Porquinha Preta um livro sensível e delicado e até mesmo profundo.
Zezinho teme o pai assim como
os seus irmãos, mas é igualmente obstinado, e mesmo não fazendo frente ao pai
diretamente usa de todos os recursos que lhe são possíveis para impedir a venda
do animal. Jair dá ares de travesso a seu personagem principal, mas coração
sensível e determinado. É um personagem difícil de ignorar e muito fácil de ser
estimado pelo leitor. Jair acerta em sua
fórmula para fazer uma história com personagens cativantes e cria um
protagonista pelo qual você torce apesar de todas as brigas e traquinagens
cometidas pelo menino ao longo da narrativa.
Por seu turno, Odilo, por seu
caráter severo e turrão, acaba fazendo, dentro da narrativa, o papel de vilão
que bate e briga à toa, do pai insensível e implicante. Trata-se da
transposição para a literatura do imaginário adolescente que quando se vê
contrariado pelos pais costuma pintá-los com ares de tirania e vilania.
A mãe é mais sensível e se
entristece por ver a tristeza do filho, mas sabe que é impotente ante a
teimosia do marido e, realista e pessimista, tenta apenas convencer o menino de
desapegar-se do animal.
Os demais personagens, com
exceção do menino Valtério, possuem participação muito secundária. Jair dedica
um certo tempo na descrição psicológica de Odilo, mas não o faz em relação aos
aspectos físicos. Os demais personagens ficam, em sua maioria, em segundo
plano, enquanto personagens como o próprio Zezinho, seu irmão mais velho
Orlando e o amigo Valtério são construídos ao longo da narrativa, sem uma
preocupação de caracterizá-los profundamente. Seus detalhes vão sendo
construídos ao longo da história.
Orlando é representado como o
irmão mais velho que gosta de fazer troça do mais novo, em contraste com os
caçulas da família que se demonstram sensíveis, prestativos e inocentes e
buscam ao seu modo ajudar Zezinho ou pelo menos consolá-lo, mesmo que este não
saiba reconhecer e aceitar o pequeno e inútil esforço dos irmãozinhos.
Valtério no imaginário de
Zezinho é seu principal antagonista, porque seria ele o incitador da questão da
venda da porquinha. Foi sua inveja e cobiça de ter uma porquinha mansa que
incitou o pai, seo Martinho a querer
comprar Maninha e, por sua vez, estimulou Odilo a vendê-la. Por isso, no
imaginário simplista de criança injustiçada, primeiro pelo amigo que lhe
traíra, e depois pelo pai que desconsiderava sua estima pelo animal, faz com
que ele veja Valtério como inimigo invejoso que conta vantagem em poder, pela
força do dinheiro, tomar-lhe a porquinha preta.
Um
livro que fala de educação e de amor
Fotografia: Eric Silva, 2018. |
O enredo do livro é simples,
porém profundo. Zezinho, o dono da Porquinha Preta, é uma obra essencialmente
pedagógica, a qual já utilizei muitas vezes em aulas de aperfeiçoamento da
leitura.
Como educador formado em
letras e que exerceu o magistério, Jair
demonstra, em uma linguagem muito simples, que a melhor educação é aquela feita
com diálogo e sem violência. Essas são as temáticas principais de seu
livro: educação e amor.
Odilo é um homem rude que
educa seus filhos com uma disciplina baseada no medo e na violência. A sensação
transmitida pelo livro não é a de que seus filhos o respeitam porque o amam e
admiram, mas porque o temem, porque temem um castigo do qual em algum momento
já haviam sido submetidos.
“Zezinho saiu apressadamente. Ordem
do pai era ORDEM de verdade. Não era brincadeira. Nem era pensar em
contrariá-lo. Correu e foi ajudar o irmão no paiol”.
Ele não demonstra afeto pelos
filhos e nem compreensão. Não age conforme um diálogo para entender as crianças
e suas vontades para fazê-las compreender seus motivos e respeitarem a sua
autoridade. Averso a qualquer conversa ele prefere demonstrar seu poder
contrariando os desejos da esposa e dos filhos em vez de entrar em um consenso
com os mesmos:
“Sabia que o pai sempre gostava de
contrariar a mãe, mostrando que não aceitava opinião de ninguém em casa, mas
talvez ela conseguisse alguma coisa”.
Em sua compreensão as
vontades e desejos das crianças não deveriam ser ouvidas, muito menos
atendidas, devem ser descartadas imperando apenas a palavra dele:
“Menino não tem querer. Menino não
tem nada aqui em casa. Só tem a roupa que veste e a comida que come”.
Trata-se de uma educação
rígida, inflexível e violenta – simbólica e fisicamente falando – e que
resulta, invariavelmente, em problemas futuros. Quase sempre este autoritarismo
gera desobediência, o que de certa forma acontece com Zezinho.
Como educador e quase pai,
acredito que o diálogo e a liberdade de expressão são caminhos mais promissores
ainda que não perfeitos – não há educação perfeita –. Isso não significa que
não haja autoridade. Autoridade é
conquistada com respeito e admiração. O diálogo serve para esclarecer o
posicionamento de ambos e o adulto tomando a sua concepção acerca do problema e
o posicionamento da criança deve ponderar e saber quando dizer não e quando ser
flexível, sempre tentando fazer a criança compreender as razões de suas
decisões e a legitimidade das mesmas.
O que falta na relação de
Odilo e sua família é essa flexibilidade e diálogo. Pelo contrário, ele prefere
punir o erro com a violência em lugar do diálogo, dos combinados e das
proibições e suas respectivas consequências quando são quebrados os acordos e
imposições (punição não violenta). Essas são práticas que ensinam e impõem
limites. Centrado em uma educação arcaica, Odilo prefere a agressão física:
E já foi tirando o cinturão. Quando
via o pai puxando o correião daquele jeito, tremendo de raiva, a surra não era
brincadeira. Ia ser fogo. O pai não perdoava. Fugir era uma coisa que não devia
nem pensar. Só se fosse para nunca mais voltar em casa.
– Não, paizinho, vou capinar agora.
– Aqui o seu capinar, Zezinho.
A primeira lambada estalou nas
pernas. Zezinho pulou e acudiu com as mãos. A segunda guascada atingiu as mãos
dele e ara aliviar a dor, levou as mãos à boca. Mas o pai não cava tempo de ele
acudir a dor. As lambadas eram rápidas e terríveis. A dor andava das costas às
pernas.
O propósito de Jair Vitória é
tecer uma crítica a esse modelo arcaico de disciplinamento, e no final mostra
que seu resultado nem sempre é bom ou tem um resultado conforme o desejado. O
que fica é a revolta:
Sentia o corpinho dolorido,
macetado. Não estava gostando do mundo naquele momento. Toda vez que apanhava,
passava a estar contra tudo.
“Mas a Maninha ele não vende. Se ele
vender, eu mato ela. Dou veneno pra ela. Vou pegar aquele Valtério e dar um
murro no nariz dele pra tirar sangue.”
Por isso, Zezinho,
o dono da Porquinha Preta é uma leitura que também recomendaria aos pais
como uma reflexão sobre educação.
Por outro lado, outro aspecto explorado pela narrativa é
o amor. O amor do pai que falta aos
filhos e o amor de Zezinho pelo animal de estimação. Isso de certa forma está
também ligado ao tema de educação. Porque não existe educação verdadeira que
deixe de lado o amor. É preciso amor para educar, porque se trata de uma tarefa
árdua. Do amor nasce a compreensão e a empatia em relação ao sofrimento do
outro, mas é também do amor que nasce o desejo de lutar. O amor por Maninha
fortalece Zezinho para que ele desafie os desejos do pai de vendê-la, mesmo com
todo o medo que ele sente por aquele homem de figura imponente e ameaçadora.
Últimos
comentários: narração, escrita e desfecho
Narrado em terceira pessoa e
seguindo um tempo cronológico, Zezinho, o
dono da Porquinha Preta é um livro de linguagem simples e escrita limpa,
sem muitas metáforas ou recursos estilísticos que viessem a complicar a
compreensão de seu principal público-alvo: crianças e jovens adolescentes.
Os diálogos e mesmo a narração
aproveitam da linguagem simples do interior explorando muitos vocábulos
regionais de uma linguagem popular que é mais próxima da realidade daquelas
pessoas. Isso garante o realismo e a verossimilhança da narrativa. Contudo, é
nos diálogos que essa particularidade fica mais visível. Imitando a forma
regional de falar ou autor usa o coloquialismo para construir falas como: “Mas ele é mais grande que você, Zezinho”
ou “É capaz que eu vou também”.
O narrador explorar alguns
termos regionais, mas, por seu lado, garante todas as convenções da
norma-padrão da língua, sem, no entanto, utilizar-se de um tom erudito ou
rebuscado.
Em sua escrita, Jair mistura
os pensamentos de Zezinho às falas do narrador ao ponto de narração,
comentários e pensamentos narrados em discurso indireto virarem uma coisa só,
numa forma de narração confortável e gostosa que flui tranquilamente e instiga
a leitura.
![]() |
Ilustração de Cirto Gerano que encerra o sexto capítulo. |
As ilustrações de Cirto
Genaro são bonitas e delicadas feitas com técnicas na ponta de lápis com delicadeza
e realismo.
O desfecho é tocante e não desagrada, mas é um pouco
abrupto e apressado. Mas
independentemente de ter sido apressado e não desenvolver plenamente uma das
cenas mais tocantes da história, ele entrega a narrativa deixando um
questionamento sobre crescimento, amadurecimento e determinação, ressaltando
até mesmo em suas últimas linhas o caráter pedagógico do livro.
A história de Zezinho não é minha preferida dentro da
Coleção Vaga-lume, mas está entre os livros que mais admiro por ser muito bem
escrito e trabalhado com carinho pelo seu escritor. É perceptível pela escrita
de Jair o carinho e docilidade com o qual ele compôs sua narrativa e
personagens, transformando uma historinha simples e até banal em um livro
bonito e delicado, que busca ensinar seus leitores através de personagens
cativantes e sem perder o realismo ou tornar-se por demasia infantil.
A edição lida é da Editora
Ática, do ano de 1996 e possui 127 páginas.
Sobre
o autor
Jair Vitória nasceu numa
fazenda no município do Prata, Triângulo Mineiro, em 1943. Viveu seus primeiros
sete anos na zona rural e só conheceu a cidade quando já era rapazinho. Era filho de lavradores e estudou a maior
parte do tempo na escola da zona rural. Parou de estudar três vezes para ajudar
os pais na roça. Entretanto, o pai desejava ao filho um destino diferente do
dele que não possuía nem o primário. Jair volta a estudar na roça até quando
chegou à universidade. Trabalhou de datilógrafo e estudou à noite. Dedicou-se
ao magistério e à literatura e formou-se em Letras, pela Universidade de São
Paulo.
Seu primeiro livro publicado
foi o livro de contos "Cuma-João".
Aposentado pela Secretaria de
Educação do Distrito Federal, retornou ao Triângulo Mineiro, e, atualmente,
vive na pequena cidade de Tupaciguara, onde escreve seus livros.
[1]
Cavidade, na encosta de serra ou de morro, provocada por águas das chuvas, ou,
em ribanceira de rio, por águas de enchentes (Houaiss, 2001)
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