Por
Eric Silva, com um pouco de timidez,
porque hoje abro minha vida pessoal para falar de meus livros
Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.
Eu e A Serra dos Dois Meninos
A Serra dos Dois Meninos é o primeiro livro da minha infância que resenho aqui no blog. Na verdade, ele é da época da minha pré-adolescência, porque deveria ter entre 11 e 12 anos quando o tive em minhas mãos pela primeira vez. Mas escolhi começar por esta pequena narrativa que integra a famosa e fabulosa coleção Vagalume, devido a dois motivos: o primeiro deles é a minha identificação muito grande com a história. Trata-se de um enredo que diz muito de mim e de minha vida, muito mais hoje do que naquela época. Em segundo lugar, o escolhi para ser o primeiro pelo carinho que dedico ao meu volume, que conservo comigo por quase uma década e meia.
A Serra dos Dois Meninos não foi um livro escolhido ou um presente que
ganhei de alguém. Não foi um daqueles muitos volumes de livraria que você passa
horas tentando se decidir quais levar, e que por um título ou sinopse você faz
a sua escolha. Não. Eu posso dizer que
ele estava destinado a mim e eu a ele. Precisávamos um do outro e
pacientemente ele esperou por alguém que lhe desse o valor e o carinho de que
necessitava.
Nosso encontro se deu em um dos
costumeiros dias frios do bairro de Brotas, quando
eu e minha mãe voltávamos da missa. Caminhávamos sozinhos pela pequena e
sinuosa ladeira em que terminava a rua da capela e falávamos amenidades. Lembro
que, da minha parte, estava aliviado que o enfadonho ritual dos meus sábados e
domingos havia acabado – a catequese e a missa dominical –, mas já não lembro do
que ela falava. Isto está há muito perdido no tempo. Como sempre, eu estava
mais atento aos meus passos do que ao que de fato ela dizia. E foi ai que, ainda alguns passos de
distância, mirei algo que me chamou a atenção: descartado ao pé de um poste e com as folhas amareladas abertas para o
céu, um livro jogado no chão. Adiantei-me e me curvei para pegá-lo. Estava
limpo, mas bastante maltratado. Tinha as folhas envelhecidas, alguns riscos e
nomes escritos aqui e ali, e também algumas folhas com as bordas destruídas
pela ausência da capa que, me parecia, havia sido arrancada muito tempo antes.
Não havia em mim nenhum
preconceito ou nojo. Não havia em mim nenhum desprezo pelo seu estado. O que eu
sentir era que se ele estava ali descartado, abandonado a própria sorte, e eu o
tinha achado era porque ele me pertencia. Cabia a mim lhe dar zelo e um lugar
resguardado da chuva e do calor. Ele deveria (e iria) ocupar um lugar entre
os demais da minha coleção de didáticos.
Minha desgastada e mal-tratada edição do livro |
Corri
os olhos rapidamente pelo seu título e retomei a marcha seguindo mainha com meu
achado nas mãos. Ela em nenhum momento se opôs ao meu novo amigo e eu não o
descartaria mesmo que ela pedisse. Para minha alegria mainha sempre compreendeu
meu amor e compulsão pelos livros, mesmo hoje quando já não tenho espaço para
guardá-los e continuo a adquiri-los.
Chegando
a casa da Clião Arouca, pensei como protegeria as primeira e as últimas páginas
que, devido ao deszelo dos antigos donos, já se consumiam. Arranquei então uma
capa de uma revista e com fita adesiva improvisei a capa que até hoje o
protege. Como em minha mente toda capa
deveria ter o título de seu livro escrevi com uma letra que julguei caprichada
o nome da obra e de seu autor e fiquei orgulhoso de meu trabalho, porque agora
ele estava protegido e poderia enfim ser manuseado.
Não
lembro se comecei sua leitura de imediato, mas é bem provável que não. Devo ter
me detido apenas a lhe dar os primeiros socorros, olhar suas ilustrações e
buscar um lugar na caixa de livros em que ele pudesse ficar sem que sua nova
capa fosse arrancada ou amassada. O quarto era pequeno e não havia prateleira
para meus livros, de modo que todos ficavam em caixas de papelão. Contudo
independente de tê-lo lido de imediato ou não, me recordo de que quando o fiz
aquela história me prendeu de tal forma que nunca a esqueci em seus detalhes, nem
de suas ilustrações muito bem feitas. É
por isso que agora divido com vocês essa história e também minhas impressões do
enredo do meu pequeno amigo, o livro de Aristides Fraga Lima.
Sinopse
Depois
de ter adquirido a fazenda Gravatá, Seu Domingos resolve levar a esposa e os
filhos para conhecer a propriedade e um pouco da vida sertaneja.
A
fazenda ficava em meio a caatinga do sertão baiano e ali abrigava três grandes
e misteriosas serras que chama a atenção de todos, mas onde ninguém mais além
das suçuaranas viviam.
Os
dias que se passam e a família se integra rapidamente com a realidade da vida
no campo, sobretudo Ricardo e Maneca, os dois escoteiros filhos mais novos de
Dona Mariana e Seu Domingos. A simplicidade
e curiosidade dos dois meninos conquistam facilmente a amizade dos vaqueiros da
região com os quais passam a conviver com muita proximidade. Com os vaqueiros
Maneca e Ricardo também aprendem bastante sobre a lida com o gado e sobre os
mistérios e perigos existentes na caatinga e sobretudo nas três serras
imponentes.
Contudo,
todas as histórias dos vaqueiros e dos caçadores Alexandre e Zé Pequeno sobre as
serras só servem para avivar nos dois meninos o desejo irresistível de explorá-las
o que decidem fazer um dia ao saírem escondidos de casa. Mas o que parecia ser fácil
para dois escoteiros se mostraria por demais perigoso devido a mata traiçoeira
das serras e ao perigo eminente do ataque das onças que ali viviam. Perdidos em
meio a caatinga densa os meninos precisam de todo o seu conhecimento para
saírem vivos daquela aventura no sertão da Bahia.
Resenha
Como
a maioria dos leitores brasileiros sabem, a coleção vaga-lume da editora Ática
esteve presente na vida e na infância de milhares de brasileiros. Muitos de
seus volumes são até hoje lido pelas crianças do país todo e algumas desta obras
ainda tem conservam muito destaque como referências da leitura infanto-juvenil
nacional como é o caso de Escaravelho do Diabo, livro de Lúcia Machado de
Almeida, e que este ano foi adaptado para o cinema. A Serra dos dois Meninos não é a história
mais conhecida da coleção, mas é a mais preciosa para mim, juntamente com Sozinha
no Mundo, do autor Edmundo Donato que escreve o livro com o pseudônimo de
Marcos Rey. Os motivos são vários, como já elencados no começo do texto, mas
hoje a história tem para mim um significado novo.
Representação da paisagem nordestina e do trabalho com o gado |
A
narrativa do livro se passa em uma localidade próxima ao município baiano de Adustina em uma propriedade em meio a caatinga nordestina.
Eu também hoje moro em uma cidade do sertão baiano, pertencente ao domínio das
caatingas[1] e
dentro do polígono das secas. Sou soteropolitano como Maneca e Ricardo, mas me
sinto sertanejo. Por essa vivência em uma cidade sertaneja do interior, hoje,
identifico na história muitos dos elementos que existem também na localidade
onde moro. A forma própria de falar que Fraga Lima fez questão de destacar em
seu enredo com expressões como “esfalfado”, “malhada”, “pega”, “trempe”,
“ferra” e “obrigação”, vejo-a presente ainda em muitas pessoas que vivem no
campo e que ainda estão ligadas a terra e a criação de gado. Não são os mesmos
termos, mas a mesma forma de falar e que vai aos poucos se perdendo.
Outra
coisa que chama atenção é o destaque que o autor dá a simplicidade e a amizade
gratuita que as pessoas do campo dedicam aos vizinhos, a comunidade. É certo que a história de Lima vê um campo
ainda romantizado, como um lugar bucólico, ignorando as profundas mudanças que
estes espaços vem sofrendo. Mas uma coisa é verídica, a generosidade e
simplicidade dessas pessoas ainda estão vivas. Porém, hoje me incomoda a forma
como o autor se refere a estas pessoas como “homens rudes”, “mentes rudes e
simples”. São expressões que generalizam e diminuem as capacidades dessas
pessoas, que são bastante inteligentes, detentoras de um conhecimento da
natureza, do trabalho do campo, da vida comunitária e da luta pelo direito da
terra. Capacidades e conhecimentos que surpreendem até aos mais versados doutores
universitários.
Neste
retorno à Serra dos dois Meninos foi
impossível não o comparar aos tempos atuais. Quem hoje vive em plena explosão
de um mundo conectado em redes, era do celular e das tecnologias de comunicação
e lê este livro, estranha a curiosidade e o encantamento de dois meninos da
cidade pela vida do campo. Atualmente, muito conectados e “urbanizados”, os
jovens, em sua maioria, possuem completa aversão ao campo, visto por eles como
atrasado. Porém, na época em que a história foi concebida, os tempos eram
outros e um pouco distantes deste universo tecnológico, distrativo, volta e
meia entorpecente. Para o jovem da cidade o campo era um universo novo, um
mundo a ser explorado, desbravado, e isso é bem ilustrado por Maneca e Ricardo.
A força do distinto, da novidade, do contraste com a vida urbana era sedutora,
e os dois irmãos foram seduzidos por ela.
Em
relação a narrativa, fica claro o foco nos personagens Maneca e Ricardo. Os
meninos são bastante cativantes, tanto dentro quanto fora da narrativa. Pela simplicidade
os dois encantam os vaqueiros, mas pela cumplicidade, companheirismo e amizade
forte entre os dois também conquistam o leitor que torce para que a aventura
dos dois não acabe em tragédia. Além disso chama a atenção como os personagens
conseguem empregar muito bem seus conhecimentos de escoteirismo para
sobreviverem às adversidades da caatinga fechada e, até hoje, me surpreende a
forma encontrada pelos dois para dormirem no meio da mata estando fora do
alcance das onças e também como fazem para preparar os ovos de jacu mesmo sem
uma panela por perto. É uma história que
para mim ainda tem grande parte do encanto que tivera há vinte anos atrás
quando li pela primeira vez, e é justamente no tempo em que os dois meninos
se encontram perdidos na mata que está o ponto alto do livro.
A Serra dos dois Meninos contém um dos conjuntos de ilustrações mais bem desenhados da coleção Vagalume, trabalho de Paulo César Pereira |
Porém, a história possui ainda alguns
pontos que hoje me perturbam.
A primeira dela são as personalidades tão parecidas dos irmãos. Os dois meninos
apresentam personalidades muito próximas, diferindo, tenuamente, pelo caráter ligeiramente
mais adulto do mais velho deles. Fora isso é como se os dois dividissem um
mesmo ego, uma mesma personalidade. Isso descaracteriza um pouco as personagens
como pessoas que encerram em si suas próprias individualidades. Mas essa não é
a única crítica que tenho em relação ao desenvolvimento das personagens do
livro.
Um
outro ponto que só emergiu agora, depois de reler o livro com um novo olhar
mais maduro e vivido, foi a forma como as personagens femininas são
demasiadamente secundarizadas na narrativa, algumas delas deixadas totalmente a
parte. O autor, concentrado nos dois meninos, em seu pai e nos vaqueiros,
esquece-se de desenvolver alguns personagens. As filhas do fazendeiro, a
empregada – esta desaparece da narrativa depois de ser citada no primeiro
capítulo – e mesmo Dona Mariana, esposa de seu Domingos, é muito deixada a
parte na narrativa. Isso hoje me incomoda porque dá a história um ar um tanto machista
que, creio eu, não tenha sido a intensão do autor. Além disso ficamos com um
leque muito grande de personagens coadjuvantes que são esquecidos ao longo da
história.
Mas
fora estes pontos que consideram negativos na história, A Serra dos Dois Meninos é uma narrativa que ainda hoje prende
minha atenção, assim como da primeira vez. Ainda criança ficava fascinado com
suas ilustrações desenhadas com esmero e realismo por Paulo César Pereira,
esboçando aqui e ali, na paisagem, as características físicas do sertão baiano,
da sua flora e geomorfologia, bem como do trabalho com o gado. Elementos que
não se encerram nas ilustrações, mas que povoam toda a narrativa.
Hoje
estas imagens possuem ainda mais significado, porque as vejo com um novo olhar,
o de geógrafo que lê na paisagem as características do lugar. Também hoje estimo
muito mais o resgate cultural que é feito pela obra de Aristides ao dar um
grande foco ao trabalho do vaqueiro, à difícil lida com o gado e às tradições
que se amontam em volta dessa profissão tão desvalorizada.
Enfim, ainda hoje conservo por
este livro uma estima muito grande. Ele faz parte de mim e, mesmo que
minimamente, eu não seria o mesmo se nossos caminhos não tivessem se cruzados.
Um encontro que já havia sido decidido muito antes daquela tarde fria no bairro
de Brotas.
A
edição lida, com 110 páginas, é da editora Ática, do ano de 1984 e é parte
integrante da Coleção Vagalume.
Postagens Relacionadas
[1]
Domínio morfoclimáticos das caatingas, segundo a classificação do geógrafo brasileiro
Aziz Ab’Saber.
Nenhum comentário:
Postar um comentário