Por Eric Silva
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
Livro mais famoso da escritora japonesa Yoko Ogawa, A Fórmula Preferida do Professor é uma
obra delicada e cheia de significados, que enaltece a beleza da matemática, ao
mesmo tempo que destrincha as relações humanas de afeto, cuidado e zelo mútuo.
Confira a resenha do quinto
livro da Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo, que neste ano
homenageia a literatura japonesa.
Sinopse
Empregada doméstica agenciada
por uma empresa especializada, a narradora deste livro é uma mãe solteira que
deixa seu filho sozinho em casa para garantir o sustento dos dois. Contudo, sua
vida conhece uma reviravolta quando passa a trabalhar para um velho professor
de matemática incapaz de manter sua memória por mais de 80 minutos.
Nomeado apenas como
Professor, o matemático vive recluso em casa, se dedicando exclusivamente a
resolver desafios matemáticos propostos por revistas especializadas. Um senhor
muito peculiar e de difícil trato, mas que quando conhece o filho de sua
empregada, um garoto de dez anos por ele apelidado de Raiz, se revela um
apaixonado por crianças. No convívio com aquela inusitada figura, com suas
roupas repletas de lembretes e sua a incapacidade de memorizar quem são aquelas
pessoas, mãe e filho despertam o amor pela matemática e aprende o significado
do respeito, da amizade e a importância do cuidado.
Resenha
Um enredo tocante
A narradora de A Fórmula
Preferida do Professor é uma mulher ainda jovem, mas que com sacrifício
sustenta seu filho de apenas 10 anos, sem a ajuda de um pai e com o parco
salário que recebia por seu trabalho através de uma agência de empregadas
domésticas.
A acostumada a um trabalho nem sempre recompensador e muitas
vezes com empregadores de difícil trato, ela sempre buscava não se envolver
demais com as pessoas as quais servia, acostumar-se às despedidas nem sempre
amigáveis e a esquecer-se das pessoas tão rápido quanto ela mesma era esquecida
por eles. Tudo muda, porém, quando ela é escalada pela agência para trabalhar
com um dos clientes mais problemáticos, um professor aposentado por invalidez,
e em cuja casa nove outras funcionárias já haviam trabalhado e sido dispensadas
algum tempo depois.
Com uma narração marcada pela delicadeza e simplicidade que
fortemente caracterizam a personagem, ela conta como junto com seu filho
conheceram e se afeiçoaram ao “Professor”, um matemático de grande inteligência
e um mestre paciente, mas cuja memória, após um acidente de trânsito, havia
parado no ano de 1975 e se tornado incapaz de guardar qualquer lembrança do
presente por não mais do que 80 minutos.
O Professor era um homem reservado. Quando concentrado na
resolução de algum problema matemático ficava mal-humorado se interrompido. Além
disso, só parecia à vontade quando estava falando de algum conhecimento da
matemática. Era fã de basebol e sobretudo do arremessador do Hanshin Tigers,
Yutaka Enatsu, o camisa 28 (um número perfeito).
Como não conseguia se recordar de nada que fizera, ouvira ou das
pessoas e lugares que conhecera após os 80 minutos durante os quais duravam sua
memória recente, o velho magistrado tinha seu paletó sempre coberto de
lembretes que o ajudavam a lembrar, inclusive, de sua enfermidade. Todos os dias para ele era como um retorno
ao mesmo ponto, incapaz de reter qualquer que fosse a informação, por mais
importante que ela fosse. A
matemática era seu único elo com o mundo e com as pessoas com os quais
convivia. Pelo mesmo motivo todas as manhãs recebia a empregada como se não
a conhecesse, e, por sua incapacidade de lembrar-se, a recepcionava com as
mesmas perguntas: Que número você calça?
Qual o número do seu telefone? Perguntas cujas respostas ele sempre
encontrava algum maravilhoso padrão matemático.
A narradora demora um pouco a se acostumar com o trabalho tão
atípico, apesar de pouco penoso e que se resumia a cuidar das tarefas
domésticas de uma edícula pobre e de um patrão pouco exigente. Na verdade,
mesmo a sua verdadeira empregadora, a cunhada do velho professor e que morava
na casa principal, não queria ser importunada e em nada interferia em seu
trabalho.
No entanto, a vida da humilde doméstica encontra uma grande
revolução quando o professor, sabendo que a empregada possuía um filho pequeno
que ficava sozinho em casa até que a mãe retornasse, exige-lhe que não deixe o
menino sozinho e traga-o para o trabalho quando este saísse da escola no final
da manhã. É assim que o filho da narradora recebe o carinhoso apelido de Raiz
(o símbolo matemático) devido sua cabeça achatada.
Com o tempo, mãe e filho começam a criar um laço poderoso de
afeto e cumplicidade em relação ao Professor, e ambos se recobrem de cuidados
para nunca o deixar desconfortável ou aborrecê-lo por conta de algo trivial que
chegasse a esquecer. Era assim que buscavam retribuir ao matemático que sempre
paciente os ensinavam algo novo do mundo dos números e se demonstrava muito
amoroso e atencioso com o menino.
Cuidado e humanidade: a
construção dos personagens
“Todas as manhãs, quando acordava e vestia seu terno, o Professor recebi
o veredicto do lembrete que ele próprio escrevera, sobre sua enfermidade. E
então percebia que o sonho que acreditava ser daquela noite fora na realidade o
último que sonhara em uma noite longínqua, quando a sua memória ainda vivia.
Era esse o momento em que ele se dava conta, devastado, de que o seu eu de
ontem despencara por uma fresta do tempo ao fundo de um abismo de onde jamais
seria resgatado. Aquele Professor que protegera Raiz da bola perdida já se tornara
cadáver dentro dele mesmo. Todos os dias, invariavelmente, ele recebia sozinho,
sentado sob sobre o seu leito, esse veredicto tão cruel. Como eu pudera não
pensar nisso sequer uma única vez, durante todo esse tempo.”
Esse é um
livro que fala sobre laços afetivos, sobre empatia, cumplicidade e amizade. É um exemplo típico daquelas obras que nos
ensina o quanto o mundo está carente de atenção e de amor, sobretudo as pessoas
enfermas, idosas e de difícil trato. Essa é certamente a mensagem
transmitida por Ogawa nesse livro, o que já é bastante evidente na citação
acima. O seu objetivo é nos faz recordar
como essas pessoas ainda tem tanto a nos ensina e a contribuir com o mundo, mas
muitas vezes são jogadas às traças e esquecidas, potenciais subutilizados e
desprezados por uma juventude tão impaciente, imediatista e egocêntrica –
focada em si mesma e em seus problemas e questões.
O professor era como uma dessas pessoas, esquecido em uma
edícula malcuidada e decadente, enquanto sua mente, apesar da memória limitadíssima,
ainda era capaz de apresentar de uma maneira toda especial as maravilhas do
mundo dos números. A empregada e seu filho são os primeiros a despertarem para
as necessidades do professor e para todo o valor que ele possuía. Ele se torna,
não apenas um patrão com problemas de memória, mas um elemento formador que
agregava significados a vida de mãe e filho. Um modelo, um exemplo e ao mesmo
tempo um amigo, um companheiro. Ele desperta não apenas o lado maternal e
fraterno, o desejo de cuidar, mas a curiosidade para um mundo novo e ainda
inexplorado: o mundo da matemática. Dessa forma não apenas sua vida é mudada
com um salto em qualidade, como ele, sem nem mesmo se dar conta, vai
transformando a vida dos outros dois que dividiam com ele aquela difícil
rotina.
Ao mesmo tempo, outra proposta da autora é reapresentar a
matemática aos seus leitores, desmitificar seu lado frio e abstrato e ressaltar
sua importância, beleza e brilho. Aqui a matemática é descrita pelo olhar de um
apaixonado que vê no mundo a beleza dos números, das proporções, dos números
infinitos “guardados no livro de Deus”. A
matemática não unicamente como ciência, mas como forma de linguagem que
permitiu criar uma ponte de comunicação e interação entre o Professor e as
pessoas que estavam ao seu redor.
Foto: Eric Silva dos Santos, 2018. |
Ogawa constrói
personagens complexos e únicos, com desenhos psicológicos bem definidos. Mesmo o
pequeno Raiz, sendo uma criança ativa e como qualquer outra nem sempre
preocupada, em muitos momentos e em contextos muito precisos e adequados se
demonstra alguém muito maduro e dedicado, amoroso, atencioso e zeloso. Ele
tenta se adequar as necessidades do patrão de sua mãe sempre tomando o cuidado
de não o deixar desconfortável com algum de seus esquecimentos. Junto com a mãe
combina como agir para preservar o professor de pequenas coisas que o
incomodasse e ter a infindável paciência de sempre responder (com o mesmo
entusiasmo) às mesmas perguntas e lições matemáticas quando estas por acaso já
tivessem sido feitas em outro momento.
A narradora também se demonstra uma pessoa zelosa e pouco a
pouco vê sua visão de mundo contagiada pela beleza da matemática que tão
singularmente seu patrão ensinava a ela e ao pequeno Raiz. Isso é tão marcante
na personagem que ao caminhar para os últimos capítulos se torna nítido pelo
discurso da narradora que esta começa a falar como uma matemática:
“– Oh! – Raiz soltou uma curta exclamação.
Uma exclamação sóbria, de gente adulta. Como alguém
que tivesse lembrado da fórmula necessária para responder uma questão difícil,
ou encontrado a linha auxiliar capaz de solucionar um problema gráfico que
parecia impossível. Ela foi tão comedida, que por um momento eu nem percebi que
ele tinha em mãos o cartão desejando. ””
Por seu turno, o Professor é uma figura bem atípica. Sua
aparência é bem desgastada e desamparada. Usava roupas bem envelhecidas e
consumidas e cujo aspecto se tornava ainda mais estranho pelos muitos lembretes
ali pendurados. Era na maior parte do tempo taciturno, introspectivo e até um
pouco mal-humorado, mas quando se tratava da matemática ou do pequeno Raiz ele
se transformava em um entusiasta, um apaixonado cheio de paciência, energia e
carinho para ensinar e proteger. O bem-estar de Raiz era para ele prioridade
absoluta, mesmo que dia a pós dia ele conhecesse pela primeira vez o menino da
cabeça achatada.
O professor só se abatia quando por conta de seus esquecimentos
ele se sentia em alguma situação constrangedora. Por isso mesmo, a narradora e
seu filho se esforçavam ao máximo e mantinham um acordo secreto para evitar
qualquer comentário ou situação que colocasse o professor em situações
desconfortáveis.
Enfim, os
personagens de Ogawa são humanos e com uma grande capacidade de demonstrar
empatia. A narradora envolve o leitor ao dividir sua rotina diária com
o professor e o filho, os problemas vividos, os desafios, os momentos de
alegria, de preocupação e de dificuldades.
Um livro não escapa do
seu contexto histórico: o desafio de um país e de suas mães solo (solteiras)
Foto: Eric Silva dos Santos, 2018. |
Uma coisa que percebi no
livro de Ogawa é que de forma muito indireta e nas entrelinhas ele está
vinculado com o contexto histórico e social japonês da época em que foi
publicado (2003) e também do tempo em que se passa a narração (1992).
A história se passa logo nos
primeiros anos do maior período de estagnação econômica vivido pelo Japão. Um
grande problema econômico que abrangeu toda a década de 1990 e também os anos
2000 e que teria a classe trabalhadora como a camada social mais atingida. Com
a crise econômica iniciada naquela década muitas empresas japonesas abririam
falência e grande parte da força de trabalho seria substituída por
trabalhadores temporários, com “pouca segurança trabalhista e menos benefícios”[1]. Mesmo sem entra no mérito
econômico, o livro de Yoko reflete um pouco da realidade da classe mais pobre
japonesa e que, naqueles anos, sofreria com os reflexos mais perversos da
crise.
A narradora de A Fórmula Preferida do Professor é uma
mãe solo (solteira) com recursos limitadíssimos que deixa seu filho sozinho em
casa para poder trabalhar. Ao longo de toda a narrativa (até seu desfecho) ela
não ascende socialmente ou muda de profissão ou rendimento e os estudos do
filho são mantidos com seu sacrifício. Abordei aqui há alguns meses a situação
difícil das mães solteiras no Japão e o período no qual se passa a história
foi, sem dúvidas, uma época ainda mais complicada para essa camada social que
não conta com ajuda efetiva das políticas públicas japonesas.
A narradora de Ogawa faz
parte de um grupo social que em sua maioria se encontra na linha da pobreza e
tem grandes dificuldades de sustentar suas famílias. (Confira a matéria sobre a
situação difícil das mães solteiras japonesas nesse link).
A empregada do Professor,
apesar de conseguir manter o filho, deixa explícitas as dificuldades para
fazê-lo sozinha, tendo pouco tempo para sua criação e tendo que se sujeitar
muitas vezes a mal empregadores para continuar trabalhando. A crise econômica da época não é citada em
momento algum, ainda mais que o ano de 1992 era ainda o começo de tudo, mas
como todo livro é, inevitavelmente, um reflexo de sua época, Ogawa escolhe como
sua narradora alguém de um dos grupos sociais que mais dificuldades teriam de
sobreviver com a economia em desequilíbrio. Assim, ela deixa transparecer
toda a carência daquela mulher e de seu filho e até mesmo de seu patrão, cuja
renda provinha de prêmios de desafios matemáticos que ganhava em revistas
especializadas, sugerindo que a situação da classe idosa e deficiente também
não era das melhores.
Esse é o segundo livro
japonês que leio nesse ano e que de forma muito indireta reflete a situação
econômica de seu país. O primeiro foi Relatos de um Gato
Viajante, de Hiro Arikawa
(lançado em 2011), que por retratar um período bem mais recente aborda de forma
bem mais visível os problemas econômicos e sociais do Japão. Contudo, por não
ser objetivo da autora, A Fórmula
Preferida do Professor (2003) tangencia a questão de forma muito indireta e
atenuada, como se fosse tudo aquilo algo muito pontual e específico apenas
daqueles personagens, mas não deixa de ser uma lembrança de que a vida no Japão
está longe de ser o paraíso de prosperidade presente no imaginário dos
brasileiros.
Finalizando….
Foto: Eric Silva dos Santos, 2018. |
Muito bem estruturada e leve,
a escrita de Ogawa não é cheia nem de descrições excessivas nem de metáforas,
além de ter um equilíbrio entre narração e diálogo. A narrativa é bastante
linear e segue a ordem cronológica dos fatos. Os poucos fatos passados que são
narrados não se dão em flashbacks,
mas são comentados pela narradora. Toda a narrativa é contada sob uma única
perspectiva e há uma grande influência emocional da narradora com sua história
que ela conta em tom bastante nostálgico e até mesmo emotivo.
O livro ainda traz ainda
muitas informações e teoremas de matemática, porém todas muito bem ilustradas e
bem explicadas, o que facilita bastante a vida do leitor que não precisa fazer
um esforço extra para compreender do que os personagens estão falando.
Sou formado em Geografia, mas
exerço à docência em múltiplas áreas e trabalho há quase 13 anos com
matemática. Mesmo com essa longuíssima experiência nunca fiz tantas descobertas
matemáticas em um só livro e sem precisar fazer esforço para compreendê-las.
Isso denota uma pesquisa impecável feita pela autora para garantir a
verossimilhança da história e tornar mais realista o seu personagem. Ela constrói um matemático de verdade. Um
entusiasta, um apaixonado.
A Fórmula
Preferida do Professor é um livro delicado e até certa medida comovente e
intimista. O desfecho é um tanto presumível, mas agrada e não tira a qualidade
de uma narrativa escrita com cuidado e com personagens bem desenhados e
cativantes. Para quem gosta de basebol o livro é um convite, porque este
esporte é bastante explorado na trama. Para quem não é muito fã da matemática,
é uma proposta para vê-la sob uma outra ótica. É também uma obra que ensina e
nos faz refletir sobre o respeito, o cuidado e a amizade. Enfim, um livro
completo e significativo. Leitura obrigatória.
A edição lida é da Editora
Estação Liberdade, do ano de 2017 e possui 232 páginas.
Sobre
o autor
Yoko Ogawa (小川 洋子) nasceu no Japão, em Okayama, em 1962. Se formou na
Universidade de Waseda, e, hoje, vive em Ashiya, Hyogo, com seu marido e filho.
Como escritora, publica desde 1988 e atualmente é reconhecida
como uma das escritoras de maior prestígio em seu país. Possui mais de vinte
romances, traduzidos para diversos idiomas e algumas de suas obras foram
adaptados para o cinema, a exemplo do filme francês L'annulaire (2005), baseado no livro Kusuriyubi no hyōhon (薬指の標本) e dirigido
por Diane Bertrand.
Apenas três de seus livros já forma publicado no Brasil: o
suspense O Museu do Silêncio (2016), o drama a Fórmula Preferida do Professor
(2017) e o livro Hotel Íris (2011), uma de suas obras mais extensas e de
conteúdo sexual mais explícito.
Confira quem são os outros
autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.
No link abaixo você pode
conferir uma prévia do livro disponível no Issuu:
Preview
do Issuu
Postagens Relacionadas
Nosso Itinerário: livros resenhados
Listas e Postagens Especiais
Cinema
[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9cada_perdida_(Jap%C3%A3o)
Nenhum comentário:
Postar um comentário