terça-feira, 2 de outubro de 2018

A Fórmula Preferida do Professor – Yoko Ogawa – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Livro mais famoso da escritora japonesa Yoko Ogawa, A Fórmula Preferida do Professor é uma obra delicada e cheia de significados, que enaltece a beleza da matemática, ao mesmo tempo que destrincha as relações humanas de afeto, cuidado e zelo mútuo.

Confira a resenha do quinto livro da Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo, que neste ano homenageia a literatura japonesa.

Sinopse

Empregada doméstica agenciada por uma empresa especializada, a narradora deste livro é uma mãe solteira que deixa seu filho sozinho em casa para garantir o sustento dos dois. Contudo, sua vida conhece uma reviravolta quando passa a trabalhar para um velho professor de matemática incapaz de manter sua memória por mais de 80 minutos.

Nomeado apenas como Professor, o matemático vive recluso em casa, se dedicando exclusivamente a resolver desafios matemáticos propostos por revistas especializadas. Um senhor muito peculiar e de difícil trato, mas que quando conhece o filho de sua empregada, um garoto de dez anos por ele apelidado de Raiz, se revela um apaixonado por crianças. No convívio com aquela inusitada figura, com suas roupas repletas de lembretes e sua a incapacidade de memorizar quem são aquelas pessoas, mãe e filho despertam o amor pela matemática e aprende o significado do respeito, da amizade e a importância do cuidado.

Resenha

Um enredo tocante

A narradora de A Fórmula Preferida do Professor é uma mulher ainda jovem, mas que com sacrifício sustenta seu filho de apenas 10 anos, sem a ajuda de um pai e com o parco salário que recebia por seu trabalho através de uma agência de empregadas domésticas.

A acostumada a um trabalho nem sempre recompensador e muitas vezes com empregadores de difícil trato, ela sempre buscava não se envolver demais com as pessoas as quais servia, acostumar-se às despedidas nem sempre amigáveis e a esquecer-se das pessoas tão rápido quanto ela mesma era esquecida por eles. Tudo muda, porém, quando ela é escalada pela agência para trabalhar com um dos clientes mais problemáticos, um professor aposentado por invalidez, e em cuja casa nove outras funcionárias já haviam trabalhado e sido dispensadas algum tempo depois.

Com uma narração marcada pela delicadeza e simplicidade que fortemente caracterizam a personagem, ela conta como junto com seu filho conheceram e se afeiçoaram ao “Professor”, um matemático de grande inteligência e um mestre paciente, mas cuja memória, após um acidente de trânsito, havia parado no ano de 1975 e se tornado incapaz de guardar qualquer lembrança do presente por não mais do que 80 minutos.

O Professor era um homem reservado. Quando concentrado na resolução de algum problema matemático ficava mal-humorado se interrompido. Além disso, só parecia à vontade quando estava falando de algum conhecimento da matemática. Era fã de basebol e sobretudo do arremessador do Hanshin Tigers, Yutaka Enatsu, o camisa 28 (um número perfeito).

Como não conseguia se recordar de nada que fizera, ouvira ou das pessoas e lugares que conhecera após os 80 minutos durante os quais duravam sua memória recente, o velho magistrado tinha seu paletó sempre coberto de lembretes que o ajudavam a lembrar, inclusive, de sua enfermidade. Todos os dias para ele era como um retorno ao mesmo ponto, incapaz de reter qualquer que fosse a informação, por mais importante que ela fosse. A matemática era seu único elo com o mundo e com as pessoas com os quais convivia. Pelo mesmo motivo todas as manhãs recebia a empregada como se não a conhecesse, e, por sua incapacidade de lembrar-se, a recepcionava com as mesmas perguntas: Que número você calça? Qual o número do seu telefone? Perguntas cujas respostas ele sempre encontrava algum maravilhoso padrão matemático.

A narradora demora um pouco a se acostumar com o trabalho tão atípico, apesar de pouco penoso e que se resumia a cuidar das tarefas domésticas de uma edícula pobre e de um patrão pouco exigente. Na verdade, mesmo a sua verdadeira empregadora, a cunhada do velho professor e que morava na casa principal, não queria ser importunada e em nada interferia em seu trabalho.

No entanto, a vida da humilde doméstica encontra uma grande revolução quando o professor, sabendo que a empregada possuía um filho pequeno que ficava sozinho em casa até que a mãe retornasse, exige-lhe que não deixe o menino sozinho e traga-o para o trabalho quando este saísse da escola no final da manhã. É assim que o filho da narradora recebe o carinhoso apelido de Raiz (o símbolo matemático) devido sua cabeça achatada.

Com o tempo, mãe e filho começam a criar um laço poderoso de afeto e cumplicidade em relação ao Professor, e ambos se recobrem de cuidados para nunca o deixar desconfortável ou aborrecê-lo por conta de algo trivial que chegasse a esquecer. Era assim que buscavam retribuir ao matemático que sempre paciente os ensinavam algo novo do mundo dos números e se demonstrava muito amoroso e atencioso com o menino.

Cuidado e humanidade: a construção dos personagens

Todas as manhãs, quando acordava e vestia seu terno, o Professor recebi o veredicto do lembrete que ele próprio escrevera, sobre sua enfermidade. E então percebia que o sonho que acreditava ser daquela noite fora na realidade o último que sonhara em uma noite longínqua, quando a sua memória ainda vivia. Era esse o momento em que ele se dava conta, devastado, de que o seu eu de ontem despencara por uma fresta do tempo ao fundo de um abismo de onde jamais seria resgatado. Aquele Professor que protegera Raiz da bola perdida já se tornara cadáver dentro dele mesmo. Todos os dias, invariavelmente, ele recebia sozinho, sentado sob sobre o seu leito, esse veredicto tão cruel. Como eu pudera não pensar nisso sequer uma única vez, durante todo esse tempo.

Esse é um livro que fala sobre laços afetivos, sobre empatia, cumplicidade e amizade. É um exemplo típico daquelas obras que nos ensina o quanto o mundo está carente de atenção e de amor, sobretudo as pessoas enfermas, idosas e de difícil trato. Essa é certamente a mensagem transmitida por Ogawa nesse livro, o que já é bastante evidente na citação acima. O seu objetivo é nos faz recordar como essas pessoas ainda tem tanto a nos ensina e a contribuir com o mundo, mas muitas vezes são jogadas às traças e esquecidas, potenciais subutilizados e desprezados por uma juventude tão impaciente, imediatista e egocêntrica – focada em si mesma e em seus problemas e questões.

O professor era como uma dessas pessoas, esquecido em uma edícula malcuidada e decadente, enquanto sua mente, apesar da memória limitadíssima, ainda era capaz de apresentar de uma maneira toda especial as maravilhas do mundo dos números. A empregada e seu filho são os primeiros a despertarem para as necessidades do professor e para todo o valor que ele possuía. Ele se torna, não apenas um patrão com problemas de memória, mas um elemento formador que agregava significados a vida de mãe e filho. Um modelo, um exemplo e ao mesmo tempo um amigo, um companheiro. Ele desperta não apenas o lado maternal e fraterno, o desejo de cuidar, mas a curiosidade para um mundo novo e ainda inexplorado: o mundo da matemática. Dessa forma não apenas sua vida é mudada com um salto em qualidade, como ele, sem nem mesmo se dar conta, vai transformando a vida dos outros dois que dividiam com ele aquela difícil rotina.

Ao mesmo tempo, outra proposta da autora é reapresentar a matemática aos seus leitores, desmitificar seu lado frio e abstrato e ressaltar sua importância, beleza e brilho. Aqui a matemática é descrita pelo olhar de um apaixonado que vê no mundo a beleza dos números, das proporções, dos números infinitos “guardados no livro de Deus”. A matemática não unicamente como ciência, mas como forma de linguagem que permitiu criar uma ponte de comunicação e interação entre o Professor e as pessoas que estavam ao seu redor.

Foto: Eric Silva dos Santos, 2018.
Ogawa constrói personagens complexos e únicos, com desenhos psicológicos bem definidos. Mesmo o pequeno Raiz, sendo uma criança ativa e como qualquer outra nem sempre preocupada, em muitos momentos e em contextos muito precisos e adequados se demonstra alguém muito maduro e dedicado, amoroso, atencioso e zeloso. Ele tenta se adequar as necessidades do patrão de sua mãe sempre tomando o cuidado de não o deixar desconfortável com algum de seus esquecimentos. Junto com a mãe combina como agir para preservar o professor de pequenas coisas que o incomodasse e ter a infindável paciência de sempre responder (com o mesmo entusiasmo) às mesmas perguntas e lições matemáticas quando estas por acaso já tivessem sido feitas em outro momento.

A narradora também se demonstra uma pessoa zelosa e pouco a pouco vê sua visão de mundo contagiada pela beleza da matemática que tão singularmente seu patrão ensinava a ela e ao pequeno Raiz. Isso é tão marcante na personagem que ao caminhar para os últimos capítulos se torna nítido pelo discurso da narradora que esta começa a falar como uma matemática:

“– Oh! – Raiz soltou uma curta exclamação.
Uma exclamação sóbria, de gente adulta. Como alguém que tivesse lembrado da fórmula necessária para responder uma questão difícil, ou encontrado a linha auxiliar capaz de solucionar um problema gráfico que parecia impossível. Ela foi tão comedida, que por um momento eu nem percebi que ele tinha em mãos o cartão desejando. ””

Por seu turno, o Professor é uma figura bem atípica. Sua aparência é bem desgastada e desamparada. Usava roupas bem envelhecidas e consumidas e cujo aspecto se tornava ainda mais estranho pelos muitos lembretes ali pendurados. Era na maior parte do tempo taciturno, introspectivo e até um pouco mal-humorado, mas quando se tratava da matemática ou do pequeno Raiz ele se transformava em um entusiasta, um apaixonado cheio de paciência, energia e carinho para ensinar e proteger. O bem-estar de Raiz era para ele prioridade absoluta, mesmo que dia a pós dia ele conhecesse pela primeira vez o menino da cabeça achatada.

O professor só se abatia quando por conta de seus esquecimentos ele se sentia em alguma situação constrangedora. Por isso mesmo, a narradora e seu filho se esforçavam ao máximo e mantinham um acordo secreto para evitar qualquer comentário ou situação que colocasse o professor em situações desconfortáveis.

Enfim, os personagens de Ogawa são humanos e com uma grande capacidade de demonstrar empatia. A narradora envolve o leitor ao dividir sua rotina diária com o professor e o filho, os problemas vividos, os desafios, os momentos de alegria, de preocupação e de dificuldades.

Um livro não escapa do seu contexto histórico: o desafio de um país e de suas mães solo (solteiras)

Foto: Eric Silva dos Santos, 2018.
Uma coisa que percebi no livro de Ogawa é que de forma muito indireta e nas entrelinhas ele está vinculado com o contexto histórico e social japonês da época em que foi publicado (2003) e também do tempo em que se passa a narração (1992).

A história se passa logo nos primeiros anos do maior período de estagnação econômica vivido pelo Japão. Um grande problema econômico que abrangeu toda a década de 1990 e também os anos 2000 e que teria a classe trabalhadora como a camada social mais atingida. Com a crise econômica iniciada naquela década muitas empresas japonesas abririam falência e grande parte da força de trabalho seria substituída por trabalhadores temporários, com “pouca segurança trabalhista e menos benefícios”[1]Mesmo sem entra no mérito econômico, o livro de Yoko reflete um pouco da realidade da classe mais pobre japonesa e que, naqueles anos, sofreria com os reflexos mais perversos da crise.

A narradora de A Fórmula Preferida do Professor é uma mãe solo (solteira) com recursos limitadíssimos que deixa seu filho sozinho em casa para poder trabalhar. Ao longo de toda a narrativa (até seu desfecho) ela não ascende socialmente ou muda de profissão ou rendimento e os estudos do filho são mantidos com seu sacrifício. Abordei aqui há alguns meses a situação difícil das mães solteiras no Japão e o período no qual se passa a história foi, sem dúvidas, uma época ainda mais complicada para essa camada social que não conta com ajuda efetiva das políticas públicas japonesas. 

A narradora de Ogawa faz parte de um grupo social que em sua maioria se encontra na linha da pobreza e tem grandes dificuldades de sustentar suas famílias. (Confira a matéria sobre a situação difícil das mães solteiras japonesas nesse link).

A empregada do Professor, apesar de conseguir manter o filho, deixa explícitas as dificuldades para fazê-lo sozinha, tendo pouco tempo para sua criação e tendo que se sujeitar muitas vezes a mal empregadores para continuar trabalhando. A crise econômica da época não é citada em momento algum, ainda mais que o ano de 1992 era ainda o começo de tudo, mas como todo livro é, inevitavelmente, um reflexo de sua época, Ogawa escolhe como sua narradora alguém de um dos grupos sociais que mais dificuldades teriam de sobreviver com a economia em desequilíbrio. Assim, ela deixa transparecer toda a carência daquela mulher e de seu filho e até mesmo de seu patrão, cuja renda provinha de prêmios de desafios matemáticos que ganhava em revistas especializadas, sugerindo que a situação da classe idosa e deficiente também não era das melhores.

Esse é o segundo livro japonês que leio nesse ano e que de forma muito indireta reflete a situação econômica de seu país. O primeiro foi Relatos de um Gato Viajante, de Hiro Arikawa (lançado em 2011), que por retratar um período bem mais recente aborda de forma bem mais visível os problemas econômicos e sociais do Japão. Contudo, por não ser objetivo da autora, A Fórmula Preferida do Professor (2003) tangencia a questão de forma muito indireta e atenuada, como se fosse tudo aquilo algo muito pontual e específico apenas daqueles personagens, mas não deixa de ser uma lembrança de que a vida no Japão está longe de ser o paraíso de prosperidade presente no imaginário dos brasileiros.

Finalizando….

Foto: Eric Silva dos Santos, 2018.
Muito bem estruturada e leve, a escrita de Ogawa não é cheia nem de descrições excessivas nem de metáforas, além de ter um equilíbrio entre narração e diálogo. A narrativa é bastante linear e segue a ordem cronológica dos fatos. Os poucos fatos passados que são narrados não se dão em flashbacks, mas são comentados pela narradora. Toda a narrativa é contada sob uma única perspectiva e há uma grande influência emocional da narradora com sua história que ela conta em tom bastante nostálgico e até mesmo emotivo.

O livro ainda traz ainda muitas informações e teoremas de matemática, porém todas muito bem ilustradas e bem explicadas, o que facilita bastante a vida do leitor que não precisa fazer um esforço extra para compreender do que os personagens estão falando.

Sou formado em Geografia, mas exerço à docência em múltiplas áreas e trabalho há quase 13 anos com matemática. Mesmo com essa longuíssima experiência nunca fiz tantas descobertas matemáticas em um só livro e sem precisar fazer esforço para compreendê-las. Isso denota uma pesquisa impecável feita pela autora para garantir a verossimilhança da história e tornar mais realista o seu personagem. Ela constrói um matemático de verdade. Um entusiasta, um apaixonado.

A Fórmula Preferida do Professor é um livro delicado e até certa medida comovente e intimista. O desfecho é um tanto presumível, mas agrada e não tira a qualidade de uma narrativa escrita com cuidado e com personagens bem desenhados e cativantes. Para quem gosta de basebol o livro é um convite, porque este esporte é bastante explorado na trama. Para quem não é muito fã da matemática, é uma proposta para vê-la sob uma outra ótica. É também uma obra que ensina e nos faz refletir sobre o respeito, o cuidado e a amizade. Enfim, um livro completo e significativo. Leitura obrigatória.

A edição lida é da Editora Estação Liberdade, do ano de 2017 e possui 232 páginas.

Sobre o autor

Yoko Ogawa (小川 洋子) nasceu no Japão, em Okayama, em 1962. Se formou na Universidade de Waseda, e, hoje, vive em Ashiya, Hyogo, com seu marido e filho.

Como escritora, publica desde 1988 e atualmente é reconhecida como uma das escritoras de maior prestígio em seu país. Possui mais de vinte romances, traduzidos para diversos idiomas e algumas de suas obras foram adaptados para o cinema, a exemplo do filme francês L'annulaire (2005), baseado no livro Kusuriyubi no hyōhon (薬指の標本) e dirigido por Diane Bertrand.

Apenas três de seus livros já forma publicado no Brasil: o suspense O Museu do Silêncio (2016), o drama a Fórmula Preferida do Professor (2017) e o livro Hotel Íris (2011), uma de suas obras mais extensas e de conteúdo sexual mais explícito.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

No link abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Issuu:

Preview do Issuu





[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9cada_perdida_(Jap%C3%A3o)

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