Por Eric Silva
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Sinopse
Shōko Nishimiya (西宮硝子) é uma menina com deficiência auditiva – baixa audição –
que sofre bullying de um grupo de colegas ao entrar para uma escola de ensino
regular. Atormentada pelo assédio de um dos garotos particularmente mais
travesso, Shōya Ishida (石田将也), ela vive um inferno
particular ainda que tente com todas as forças fazer o seu melhor e ser amiga
de todos.
Ishida não consegue
compreender nem aceitar a condição de Nishimiya e começa a assediá-la quebrando
seus aparelhos auditivos, dando-lhe sustos, destruindo seu material escolar,
até chegar ao ponto de ferir seus ouvidos, o que causa a revolta da família da
menina que pouco depois sai da escola.
Em consequência de suas
ações, a mãe de Ishida tem um prejuízo financeiro e o rapaz passa a ser
hostilizado pelos colegas e desprezado por seus pares, o que o torna tímido e
antissocial. Sua dificuldade de se relacionar com as pessoas é tão grande que
ele passa a ignorar os sons do seu entorno e não consegue encarar os rostos de
seus colegas. Anos depois, farto das atitudes de desprezo dos antigos amigos e
dos colegas, Ishida tenta cometer suicídio, mas desiste no último segundo,
tomando a atitude de tentar consertar seus erros cometidos no passado e viver
uma vida nova.
Resenha
Baseado em um mangá homônimo,
Koe no Katachi (2016) é um drama
romântico, obra do diretor Naoko Yamada (K-On!)
e escrito por Reiko Yoshida (Waka Okami wa Shōgakusei!)[1].
O filme tem uma trama universal pintado com as cores da realidade japonesa,
país com elevadíssimo índice de suicídio. A ideia, porém é delicada, romântica,
dramática e comovente.
Esta animação está entre meus
longas animados favoritos e tenho por ele um carinho de fundo sentimental, por
razões muito pessoais. Yamada faz um trabalho excepcional e singelo com uma
trama simples, mas com cores complexas e profundas. O filme é sereno como carpas nadando em água cristalina e repleta de
luz, mas seu caráter multitemático e a importância de seus temas o faz profundo
como um poço.
Os diálogos são inteligentes e, por vezes, profundos. Uma de minhas
falas preferidas é do personagem Tomohiro Nagatsuka (永束友宏), primeiro amigo que Ishida faz no novo colégio, após
salvá-lo de um valentão. Na cena, Nagatsuka explica a Ishida porque se tornou
seu amigo e num tom divertido e brincalhão diz uma das frases mais belas do
filme: “amizade está além da lógica e das
palavras”.
O filme não possui tom de
humor, mas uma curva dramática suave e constante que envolve seu expectador e
emociona, sobretudo em seu clímax, parte mais dramática, chocante e comovente
de todo o filme.
Na parte técnica, Koe no Katachi
é um filme que explora sobretudo o uso da câmera e uma paleta de cores bem
claras e luminosas que pintam cenários singelos em sua maioria urbanos, mas
também do rio local, principal cenário natural da história. Esses elementos
juntos com uma trilha sonora que se harmoniza com os humores de cada cena
enchem a tela de delicadeza, beleza e simplicidade.
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Muita luz e cores claras. |
A câmera sempre busca alternar diferentes ângulos produzindo efeitos
bonitos e delicados. Longshots,
planos de detalhes e contra-plongées
são os enquadramentos mais bem explorados, indo do distante passamos para o
muito próximo, e por vezes esse próximo capta apenas gestos ou detalhes: uma
parte do corpo como mão, pés e braços, um jarro de flores, flores tremulando ao
vento, pequenos furtos que caem de uma árvore ou a imagem singela de carpas
nadando no rio.
A música de Kensuke Ushio não tem nada de especial, mas sustenta o
equilíbrio entre câmera, cenário e cena, indo de alguns ritmos mais rápidos e
agitados a outros muito tranquilos, em sua maioria tranquilos.
Porém, são os personagens os pontos mais fortes do
filme. Muito diversas suas “atuações” demonstram as mais diferentes facetas dos
sentimentos humanos como culpa, gentileza, raiva, preconceito, arrependimento,
amor, agressividade, arrogância, perdão e vulnerabilidade. Sem dúvida são
personagens bem-feitos, complexos, redondos e críveis, cada qual com sua
própria “humanidade” e trazem uma mensagem positiva frente a vida e sobre o
valor do arrependimento sincero e do perdão.
Nishimiya é uma garota gentil
e sensível que sinceramente deseja ser amiga de todos e se relacionar bem com
seus colegas de sala. Ela é, sem dúvidas, uma protagonista que intriga e
encanta o expectador tanto quanto Ishida que se transforma ao longo da trama se
tornando mais gentil e preocupado com as pessoas. Ele era travesso e insensível
no começo da história, mas se torna alguém triste e reflexivo, mas, ao mesmo
tempo, alguém que vem dando tudo de si para se tornar alguém melhor. O romance que parece se desenvolver entre
os dois não é foco do filme, o que o torna algo bastante delicado. Mas os
dois são responsáveis pelas cenas mais tensas e difíceis da obra.
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Elenco principal |
Os protagonistas podem até
parecer monótonos, mas é o conjunto com as personalidades mais ativas dos
outros personagens que fazem o filme. Personalidades como da determinada Yuzuru
Nishimiya (西宮結絃), irmã mais nova de Shoko; da arrogante de Naoka Ueno (植野直花), colega de Ishida e Shoko quando eram do fundamental;
ou a atitude egoísta de outra das colegas da época, Miki Kawai (川井みき) que sempre se fazia de vítima quando, na verdade, por
omissão, também tinha parcela de culpa no bullying cometido contra Shoko. O
choque entre essas personalidades contrastantes e as mudanças que elas vivem ao
longo da trama tornam mais tensa, real e profunda a história.
Multitemático: a
surdez, o bullying e a questão do suicídio.
Apesar de seu um drama
romântico, o romantismo da trama é bem suave e fica em segundo plano, não se
sobressaindo em relação a temas mais pesados como o bullying e o suicídio. Koe no Katachi é um filme multitemático
e que perfeitamente enquadrado em seu contexto histórico e local. O tema da
surdez é o ponto de apoio da trama cujo título (em português, A voz do silêncio) faz referência.
A surdez é uma condição que ao
longo da história foi vista de forma preconceituosa. No passado, os surdos não
eram vistos como pessoas. O grande valor que era dado a oralidade fazia com que
o olhar da sociedade tirasse dessas pessoas a sua humanidade, puramente pela
incapacidade dos mesmos de falar.
Na Idade Média, por exemplo, os
surdos não podiam ser herdeiros de sua família e para contornar essa situação
algumas famílias abastadas pagavam preceptores que fossem capazes de ensiná-los
a falar. A Igreja Católica por muito tempo teve um importante papel nesse
processo discriminatório já que sua surdez fugia do padrão de “a imagem e semelhança de Deus”.
Na História, houve períodos em
que a linguagem de sinais foi desenvolvida para permitir a comunicação dessas
pessoas, e, em outras, ela foi vista como maléfica e por conta disso muito
surdos foram obrigados a aprender a falar, a usar a oralidade a partir até
mesmo de métodos perversos e completamente ineficientes.
Enfim, ao longo de séculos a
surdez foi colocada em uma condição de discriminação e os surdos colocados em
uma posição submissa. Hoje muita coisa mudou, mas os surdos ainda não se
encontram realmente incluídos na sociedade. Os Estados ainda não vêm preparando
a sociedade para socializar normalmente com os surdos e facilitar a comunicação
com os mesmos. O preconceito sobrevive e pouco é feito para combatê-lo. Mas esse
preconceito, quando se dá nas escolas, dá margem a outro problema da sociedade
moderna: o bullying.
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Cena de bullying cometido por Ishida contra Shoko. |
A condição de surdo é algo que
despertou em Ishida essa incapacidade de aceitação. Ele considerava a atitude e
as necessidades de Shoko incômodas, achava, ainda mais perturbadoras suas
tentativas de socializar e fazer amizades, sempre perdoando ou fingindo não perceber
as maldades de seus colegas, as brincadeiras cruéis e as agressões. Ela buscava
fazer o seu melhor e integrar-se naquele conjunto como uma igual. Suas atitudes
eram positivas, humildes e resignadas, mesmo quando ela tinha tudo para se
lamentar ou sentir raiva. A personalidade tão diferente de Shoko desperta o
ódio de Ishida, porque ele era incapaz de entendê-la e se demonstrou igualmente
incapaz de fazer o mesmo quando foi sua vez de estar do outro lado e ser a
vítima do bullying, tentando recorrer ao suicídio.
O suicídio é outra temática
muito bem explorada pela trama do filme. O Japão é conhecido por possuir uma
elevada taxa de suicídios se comparado a muitos países.
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Tentativa de suícidio de Ishida |
Como afirma essa reportagem, o
principal fator dos suicídios é o isolamento que antecede a depressão e o
próprio suicídio. Acredita-se que o suicídio em nome da honra que
historicamente foi cometido pelos samurais ("seppuku") e pelos jovens pilotos "kamikazes" da
Segunda Grande Guerra seria um dos motivos principais para a elevada frequência
com a qual os japoneses tiram a própria vida. Ou seja, eles encaram o suicídio
“como uma forma de assumir responsabilidade por alguma coisa". Mas essa não seria a razão tratada pelo
filme, e sim o sofrimento pessoal.
A reportagem da BBC esclarece
que no caso dos jovens japoneses a perda da esperança e a incapacidade de pedir
ajuda são os principais motivos para se matarem. As crises financeiras se
demonstraram como fator estimulador, uma vez que a realidade trabalhista e
econômica se tornou bastante difícil e desfavorável com "condições
precárias de emprego".
No caso de Ishida e Shoko o
sofrimento pessoal causado pelo bullying os levaram a uma condição de desespero
e inconformidade. Sentir-se socialmente deslocado e isolado fragilizou a
vontade de ambos em tentarem se manter vivos. O suicídio se apresenta então
como possibilidade real de amenizar o sofrimento pessoal. A própria estrutura
social os impelem a isso:
"Esta é uma sociedade muito orientada por regras.
Jovens são moldados para se encaixar em nichos existentes. Não há como alguém
expressar seus sentimentos verdadeiros. Se são pressionados por seu chefe ou se
deprimem, alguns acham que a única saída é morrer."[3]
Esse é o caso dos personagens do
filme, que apesar de jovens não se sentem adequados e são incapazes de pedir
ajuda, pois a cultura os impelem a resolver sozinhos os seus problemas.
Levá-los a outras pessoas significaria ser inconveniente e incômodo.
A reportagem ainda esclarece que
“o Japão é famoso por uma condição conhecida
como "hikkimori", um tipo de isolamento social grave”, que seria
alimentado pela tecnologia que incentiva esse isolamento. Por se tratarem de
jovens com “muito conhecimento, mas pouca experiência de vida”, pessoas como
Ishida e Shoko “não sabem como expressar suas emoções", as guardam para si
e chegam a um extremo de inferno pessoal. Se isso não bastasse, aponta a
reportagem, os sistemas de tratamento para os que sofrem de depressão são ruins
e a doença mal compreendida, o que inviabiliza um tratamento adequado e
eficiente. O sofrimento dessas pessoas chega a uma condição insuportável e a
morte se torna algo bem mais atraente.
A mensagem trazida pelo filme é
a de que lutemos para dar o melhor de nós mesmos tentando preservar a esperança
na vida. Que busquemos ajuda e nos relacionar melhor. Ele ainda busca
demonstrar os resultados nefastos do bullying e combatê-lo, trazendo uma
mensagem de respeito às diferenças e as deficiências físicas.
Enfim, é um filme delicado e inspirador que joga uma
reflexão sobre eventos e questões contemporâneas tanto japonesas como
universais, promovendo uma discussão relevante e tecendo uma mensagem positiva
que atinge em cheio seus expectadores. Um filme que cumpriu minhas expectativas
e que já assisti diversas vezes por ser especial, educativo e louvável seja
pela beleza de sua narrativa ou pela importante contribuição social que ele
faz.
A película é uma produção dos
estúdios Kyoto Animation, e entrou em cartaz no ano de 2016. Tem duração de 130
minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:
Trailer
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Cinema
[1]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Koe_no_Katachi_(filme)
[2]
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb
[3]
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb
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