quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Naufrágios – Akira Yoshimura – Resenha


Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


Em um estilo minimalista, Naufrágios, livro do escritor japonês Akira Yoshimura, é um testemunho de como a vida pode ser regida por dissabores que se repetem em ciclos como as estações do ano.

Ambientado no Japão medieval onde uma pequena comunidade pesqueira luta pela sobrevivência, esse livro fala de como abandonamos valores morais de valor a vida do outro, para garantir a sobrevivência de um grupo maior. Desejar o naufrágio de um navio e trucidar uma tripulação naufragada para saquear sua carga e, desse modo, aplacar a fome se torna valores e objeto de culto neste livro de pequena extensão, mas de significados amplos e profundos.

Naufrágios é o sétimo livro da III Campanha Anual de Literatura que neste ano homenageia a literatura japonesa.

Sinopse

Em algum período remoto da era medieval japonesa, uma pequena comunidade de pescadores luta para sobreviver da pesca de moluscos, peixes e conchas. Na pequena aldeia vive também chamado Isaku, um menino é um de nove anos que tenta garantir o sustento de sua família e como os demais aldeões, além de pescar, ajuda na destilação de sal para ser comercializado para os povoados vizinhos. É por meio da narração dos anseios e dificuldades enfrentadas pelo garoto que conhecemos a vida difícil e da comunidade que luta contra a fome e descobrimos que a manufatura do sal tem uma outra utilidade oculta: provocar naufrágios de embarcações carregadas de arroz que passam pela costa.

Resenha

Morte e vida: um enredo trágico

Publicado em 1982 sob o título de Hasen (破船), Naufrágios é um romance de época que retrata um pouco da realidade das comunidades pesqueiras pobres do Japão medieval. Um livro extremamente pequeno (192 páginas), mas que descreve com esmero o desespero e os dilemas de seus personagens para continuarem sobrevivendo.

Daimyo da era feudal japonesa.
Imagem: KCP International.
Em alguma ilha do Japão dos daimyos[1] (大名), uma pequena aldeia de pescadores buscava sobreviver a escassez de alimentos do lugar. Localizada numa costa desértica, cujo solo rochoso propiciava apenas colheitas escassas, a comunidade tinha na pesca de peixes, polvos e lulas o seu principal sustento.

A pequena produção de pescado era salgada e periodicamente levada a vila vizinha para ser trocada por grãos. Contudo, por mais que fossem grandes os esforços da comunidade, continuamente a fome era um desafio para a sobrevivência de todos e, por isso, algumas medidas mais extremas eram adotadas como não dar comida aos que estivessem severamente doentes e que certamente não sobreviveriam.

“Em uma aldeia que lutava contra a fome, um inválido era considerado morto.”

A escassez de tudo era tão extrema naquele lugar desolado, que era prática comum que algum membro de cada família acabasse por se vender como servo por três, cinco ou dez anos para garantir, por um tempo, o sustento dos demais. No entanto, o dinheiro obtido com esse tipo de negociação costumava ser muito pequeno e a quantidade de grãos comprada com ele quase insignificante.

Mas a resposta para momentos de maior abastança, contudo também vinha do mar: o o-fune-sama (お船さま). A pequena ilha, que não recebe um nome, tinha uma costa que no inverno se tornava perigosa para os navios cargueiros que passavam ao largo. As ondas furiosas quando somadas aos perigosos recifes de corais representavam um risco eminente para qualquer tripulação à deriva ou que fugindo de uma tempestade pensasse de aportar naquela costa. O naufrágio era certo.

Para aumentar as chances de que um navio mercante carregado de cereais naufragasse na costa e permitisse o saque da carga, os aldeões destilavam sal para os povoados vizinhos, em grandes caldeirões sobre fogueiras que ardiam durante as noites furiosas de tempestade ao longo de todo o inverno. O objetivo era que as chamas que brilhavam na escuridão confundissem os marinheiros em meio a tempestade e esses dirigissem o barco para a orla lançando-os sobre os recifes da ilha. Quando o esperado naufrágio ocorria, o navio era saqueado e os espólios distribuídos de forma justa entre todos os aldeões.

Essa incessante luta pela vida é contada através da história de Isaku, um garoto de apenas nove anos, mas que assume a responsabilidade de sustentar sua mãe e três irmãos pequenos enquanto o pai vai para servidão.

Yoshimura descreve o lento desenvolvimento do menino que urgentemente necessita se tornar um pescador experiente para garantir o alimento da família e não deixar que ninguém morra de fome, inclusive ele mesmo.  Transversalmente à passagem das estações, o narrador observa e descreve o dia a dia de Isaku ao longo de pouco mais de dois anos, atentando para seus pensamentos, desejos e apreensões que não eram muito diferentes de nenhum adulto ao seu redor e que revelavam a necessidade vital de amadurecer rápido.

Infância perdida: o protagonista Isaku

O-fune-sama.
Naufrágios é um livro de personagens maduros que criaram uma espécie de armadura para enfrentar a adversidade. Yoshimura não gasta muito tempo em caracterizar seus personagens, mas não há um só deles que se caracterize pelo bom humor ou por qualquer outra característica que não seja a taciturnidade de quem tem grandes deveres e todo um futuro incerto pela frente.

O personagem principal, Isaku, tem apenas dez anos mas a maturidade de suas ações e pensamentos, bem como o peso das responsabilidades impostas a ele, o fazem bem mais velho e maduro. Isso, em grande parte, se deve a pesada responsabilidade de sustentar a família na ausência do pai, mas também a rígida educação dada pela mãe que em pouquíssimos e raros momentos demonstra algum carinho pelo menino, preferindo o víeis da severidade e da cobrança.

Não há como sentir a criança que Isaku é, e a imagem que se tem é a de um rapaz perto de se tornar adulto. Ele manifesta desejos quase sexuais, seu senso de responsabilidade é bastante dilatado, há seriedade em quase todas as suas ações e o desejo de ser reconhecido como um adulto. Somado a todas essas coisas ele assume responsabilidades adultas, é bastante cobrado e seu principal medo é não poder cumpri-las. Ele é apaixonado por uma das garotas da aldeia, mas mesmo sua paixão difere bastante de algo inocente ou infantilizado, possuindo com traços de alguém mais velho e preocupado, inclusive, com o futuro.

Contudo a experiência como pescador e a força física para atividades essenciais para a sobrevivência são coisas que faltam a Isaku e isso, além de desesperá-lo, o faz a todo momento comparar-se aos meninos maiores e mais experientes. Saber pescar e fazer bias pescarias era o fator decisivo entre sobreviver ou morrer. Por isso, Isaku está sempre buscando extrair dos mais velhos o máximo de conhecimento e experiências, como forma de crescimento e evolução e, assim, garantir o alimento necessário à sua família.

Pela sua própria inexperiência o menino tarda a entender o significado das tradições da aldeia e do o-fune-sama. Também por inexperiência e por ter uma visão estreitada pelos horizontes restritos e limitados exclusiva e unicamente a sua própria realidade – e da aldeia –, ele não consegue compreender a brutalidade e o contrassenso daquele ritual que dependia da morte de uns para garantir a vida de outros. E como os demais moradores acaba ansiando pelo momento do naufrágio que garantiria alimentos suficientes a todos.

O foco do livro é muito centrado em Isaku, mas nota-se que os habitantes da aldeia não diferem muito dos traços psicológicos e de personalidade do menino. A única parte da narrativa onde os habitantes da miserável aldeia esboçam alegria e um maior relaxamento é quando o o-fune-sama finalmente acontece.  Inicialmente eles são tomados por uma alegria imensa, em seguida, por conta da fartura, ficam indolentes, e, por fim, são tomados pelo terror.

Outros personagens de maior destaque na trama são a mãe de Isaku e o chefe da aldeia.

A mãe de Isaku é retratada todo o tempo como uma pessoa de pouca sensibilidade, severa, de poucas palavras, sempre voltada ao trabalho e para o sustento da família, além de nem um pouco carinhosa. Na maior parte da narrativa ela exige do filho mais velho que ele trabalhe como os demais homens da ilha e assim cumpra com a responsabilidade deixada para ele pelo pai que tinha ido para a servidão.

Por sua vez, o chefe da aldeia é representado como um sábio por quem todos nutrem um profundo respeito e obediência. As vezes a trama o representa como quase um deus digno de reverências, em outros como uma pessoa temerosa e frágil frente a situações que podiam ameaçar seu povo. Trata-se de uma figura icônica que me faz recordar de figuras reais do passado de nosso país, a exemplo de Antônio Conselheiro.

Outros personagens compõem a trama, porém nenhum com muita relevância, e muitos possuem passagem muito breve pelo enredo.

Quando dois livros parecem se inspirar

Em alguns aspectos, esse é um livro cuja as condições peculiares dos habitantes da vila descrita se assemelham bastante a história contada em O Conto da Deusa, livro de Natsuo Kirino resenhado logo no começo deste ano.

Assim como na aldeia de Namima, protagonista de Kirino, a comunidade de pescadores onde Isaku nasceu vive o pesadelo da fome e tem no mar sua principal fonte de sustento.  Da mesma forma ali muitas tradições estranhas e cruéis se desenvolveram a partir do medo da fome e a incerteza de se conseguir o sustento. No livro de Natsuo, o fanatismo religioso leva ao exílio e a destruição da vida de alguns aldeões, no livro de Yoshimura a fabricação do sal se torna uma arma para provocar a tragédia dos naufrágios e permitir o saque da carga. Além disso, na história de Naufrágios os doentes terminais e inválidos costumeiramente eram deixados para morrer sem alimento ou voluntariamente deveriam parar de comer para poupar alimento para os seus familiares, aquele que não o fazia era visto como egoísta como denota claramente o trecho abaixo:

— Só isso? Vocês devem estar realmente economizando. Estamos no nosso quarto fardo, que está pela metade. É culpa do vovô. Ele pode morrer a qualquer momento, mas fica nos pedindo para lhe dar comida. As pernas estão inchadas e ele está se acabando, mas continua sendo egoísta — disse Sahei, franzindo o cenho.

De forma similar, em O Conto da Deusa a família de Namima devia comer menos ou até mesmo privar-se do alimento, se assim fosse necessário, para garantir o sustento da sacerdotisa, que no credo local era elemento fundamental para que a comunidade tivesse pescas proveitosas e para afastar a possibilidade da fome.
Comparando-as notei como estas duas histórias são muito semelhantes no que tangem às dificuldades das aldeias japonesas de pescadores durante a era pré-moderna (medieval) e por isso denotam a quão complicada era a sobrevivência nas ilhas mais isoladas do arquipélago japonês. Trata-se de uma realidade que nos tempos atuais mudou bastante, porém o Japão ainda é um país que necessita de importações de alimentos e que tem na pesca sua principal e fundamental fonte de alimentos. Do mar vinha tudo: o sustento escasso, os mortos que reencarnavam nas crianças que nasciam e o o-fune-sama. Esse livro deixa muito bem evidente, assim como Kirino o deixa em seu O Conto da Deusa, a relação íntima e fundamental dos japoneses com o mar e que vai do mítico ao prático (a subsistência).
Em ambos os livros os personagens se encontram firmemente presos a tradição e a terra de seus antepassados impedindo-os de migrar para lugares onde a sobrevivência fosse facilitada. Crenças religiosas se misturam a tradição e ao apego ao lugar de origem para criar um ciclo vicioso, suicida e perverso.

Características gerais e apreciação crítica

Naufrágios é um livro no qual o diálogo é um dos elementos narrativos menos explorado. A escrita de Yoshimura se concentra na narração e descrição contínua do cotidiano e das emoções dos personagens. A narração em terceira pessoa é metódica, sequenciada e linear, e o narrador, sem compadecer-se com seus personagens, segue o curso dos acontecimentos documentando cada uma das ações do cotidiano.

A forma como o autor escreve é limpa e até objetiva, mas o enredo em si é monótono e cíclico, marcado por um tempo cronológico demarcado pela transição das estações do ano e nos quais várias ações rotineiras e sazonais dos personagens são retomadas.

Para enfatizar que a vida naquela aldeia era sempre repetitiva e que as várias atividades empreendidas pelas pessoas eram sempre definidas pela passagem e chegada das estações, o autor não poupa seu leitor falando mais de uma vez sobre temas como a pesca do polvo, a extração do sal e a expectativa da chegada d’o-fune-sama. A novidade de cada ano é a evolução lenta, mas inexorável de Isaku e alguns acontecimentos que são decisivos para o desenlace da narrativa. Isso torna a narrativa um pouco entediante, repetitiva e arrastada em vários momentos, esse é o ponto fraco fundamental do livro, mas é inegável a qualidade da escrita de Yoshimura.

O tom geral da narrativa é bastante melancólico. O temor da fome que trazia consigo a morte é o sentimento que com mais intensidade se encontra presente em toda a peça.

A luta interminável pela sobrevivência, o medo da fome, a tristeza por aqueles que morriam de fome ou iam para a servidão e nunca voltavam, ou que dela retornavam envelhecidos e inválidos dão muito pouco espaço para momentos felizes na história de Naufrágios. O próprio título escolhido por Yoshimura já evidencia muito desse tom que domina a história, mas, ao mesmo tempo, é um jogo de ideias bastante metafórico.

O naufrágio de um navio nunca representa algo bom, mas o desespero e a certeza da morte. Trata-se de uma tragédia anunciada. No entanto, contraditoriamente, a chegada do o-fune-sama representava para aquelas pessoas a esperança de períodos de abastança e sobrevivência mais fácil, a certeza de que ninguém morreria de fome ou necessitaria vender-se como servo.

A morte dos náufragos (mesmo dos sobreviventes, sumariamente eliminados pelos pescadores para que não houvesse testemunhas do saque da carga) representava uma oportunidade de vida para a aldeia inteira. Assim podemos entender que antes mesmo dos barcos mercantes naufragarem na costa da ilha, a própria aldeia já era a metáfora de um navio prestes a “naufragar”. Seria o naufrágio real a possibilidade mais concreta de se adiar o “naufrágio” daquela população desvalida. Esse é um sutil jogo de ideias presente nessa narrativa na qual morte significa também sobrevivência. Ali as relações mais primitivas da lógica da natureza se destacam: é necessária a morte para que haja vida.

[ALERTA DE SPOILER]. Por fim, o desfecho é inesperado, mas não surpreende. Yoshimura deixa o fim da narrativa um tanto em aberto e o gosto de derrota dos personagens é evidente, quase palpável. Os últimos acontecimentos narrados não surpreendem o leitor porque tudo na aldeia parece sempre convergir para um mesmo resultado: o trágico. Contudo, muitos dos acontecimentos são inesperados porque a forma como a história encontra seu fim não podia ser interpretada nas entrelinhas, ou seja, um desfecho original e criativo.

A edição lida é da Editora Best Seller, do ano de 2003 e possui 192 páginas.

Sobre o autor

Escritor japonês premiado, Akira Yoshimura ( ) nasceu em Tóquio, no dia 1 de maio de 1927.

Foi presidente do sindicato dos escritores japoneses e um membro do PEN, clube internacional de escritores fundado em 5 de outubro de 1921 pela escritora inglesa Catherine Amy Dawson Scott.
Publicou mais de 20 romances, dos quais On Parole e Naufrágios são internacionalmente conhecidos e foram traduzidos para várias línguas. Seu livro A Enguia (Unagi) foi adaptado com sucesso para o cinema.

Naufrágios é seu primeiro romance lançado no Brasil.

Faleceu em 31 de julho de 2006.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.






[1] “Termo genérico que se refere a um poderoso senhor de terras no Japão pré-moderno, que governava a maior parte do país a partir de suas imensas propriedades de terra hereditárias” (Wikipédia).

2 comentários:

  1. Esse livro é incrível, já o reli 3 vezes e pretendo reler novamente no futuro.
    Ótima resenha, descreveu com precisão as características da história, entretanto, eu apenas discordo na parte em que diz que a história é "um pouco entediante, repetitiva e arrastada em vários momentos".
    Bom, ao meu ver, Yoshimura escreve propositalmente dessa forma, para passar a sensação do cotidiano, da rotina, do tédio que a população da ilha vivia - apesar das dificuldades - e a espera do milagre do Ofune-sama, que quando acontece, é notável a agitação da população da ilha. E essa sensação de tédio da rotina e a agitação com o Ofune-sama é igualmente transmitida para nós leitores e isso é a maior sacada do autor: nos envolver totalmente na história a ponto de sentirmos o que aquela população vivia.

    Mas mais uma vez, ótima resenha!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sua observação é muito interessante. Não pensei por essa perspectiva, por isso é ótimo dividir experiencias literárias. Obrigado pelo comentário.

      Excluir

Postagens populares

Conhecer Tudo