Por Eric Silva
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
Em um estilo minimalista, Naufrágios, livro do escritor japonês Akira Yoshimura, é um
testemunho de como a vida pode ser regida por dissabores que se repetem em
ciclos como as estações do ano.
Ambientado no Japão medieval onde uma pequena comunidade
pesqueira luta pela sobrevivência, esse livro fala de como abandonamos valores
morais de valor a vida do outro, para garantir a sobrevivência de um grupo
maior. Desejar o naufrágio de um navio e trucidar uma tripulação naufragada
para saquear sua carga e, desse modo, aplacar a fome se torna valores e objeto
de culto neste livro de pequena extensão, mas de significados amplos e
profundos.
Naufrágios é o sétimo livro
da III Campanha Anual de Literatura que neste ano homenageia a literatura
japonesa.
Sinopse
Em algum período remoto da
era medieval japonesa, uma pequena comunidade de pescadores luta para sobreviver
da pesca de moluscos, peixes e conchas. Na pequena aldeia vive também chamado
Isaku, um menino é um de nove anos que tenta garantir o sustento de sua família
e como os demais aldeões, além de pescar, ajuda na destilação de sal para ser
comercializado para os povoados vizinhos. É por meio da narração dos anseios e
dificuldades enfrentadas pelo garoto que conhecemos a vida difícil e da
comunidade que luta contra a fome e descobrimos que a manufatura do sal tem uma
outra utilidade oculta: provocar naufrágios de embarcações carregadas de arroz
que passam pela costa.
Resenha
Morte
e vida: um enredo trágico
Publicado em 1982 sob o
título de Hasen (破船), Naufrágios é
um romance de época que retrata um pouco da realidade das comunidades
pesqueiras pobres do Japão medieval. Um livro extremamente pequeno (192
páginas), mas que descreve com esmero o desespero e os dilemas de seus
personagens para continuarem sobrevivendo.
Daimyo da era feudal japonesa. Imagem: KCP International. |
Em alguma ilha do Japão dos daimyos[1] (大名), uma pequena aldeia de pescadores buscava sobreviver a
escassez de alimentos do lugar. Localizada numa costa desértica, cujo solo
rochoso propiciava apenas colheitas escassas, a comunidade tinha na pesca de
peixes, polvos e lulas o seu principal sustento.
A pequena produção de pescado
era salgada e periodicamente levada a vila vizinha para ser trocada por grãos.
Contudo, por mais que fossem grandes os esforços da comunidade, continuamente a
fome era um desafio para a sobrevivência de todos e, por isso, algumas medidas
mais extremas eram adotadas como não dar comida aos que estivessem severamente
doentes e que certamente não sobreviveriam.
“Em uma aldeia que lutava contra a fome, um
inválido era considerado morto.”
A escassez de tudo era tão
extrema naquele lugar desolado, que era prática comum que algum membro de cada
família acabasse por se vender como servo por três, cinco ou dez anos para
garantir, por um tempo, o sustento dos demais. No entanto, o dinheiro obtido
com esse tipo de negociação costumava ser muito pequeno e a quantidade de grãos
comprada com ele quase insignificante.
Mas a resposta para momentos de maior abastança, contudo
também vinha do mar: o o-fune-sama (お船さま). A pequena ilha, que
não recebe um nome, tinha uma costa que no inverno se tornava perigosa para os
navios cargueiros que passavam ao largo. As ondas furiosas quando somadas aos
perigosos recifes de corais representavam um risco eminente para qualquer
tripulação à deriva ou que fugindo de uma tempestade pensasse de aportar
naquela costa. O naufrágio era certo.
Para aumentar as chances de
que um navio mercante carregado de cereais naufragasse na costa e permitisse o
saque da carga, os aldeões destilavam sal para os povoados vizinhos, em grandes
caldeirões sobre fogueiras que ardiam durante as noites furiosas de tempestade
ao longo de todo o inverno. O objetivo era que as chamas que brilhavam na
escuridão confundissem os marinheiros em meio a tempestade e esses dirigissem o
barco para a orla lançando-os sobre os recifes da ilha. Quando o esperado
naufrágio ocorria, o navio era saqueado e os espólios distribuídos de forma
justa entre todos os aldeões.
Essa incessante luta pela
vida é contada através da história de Isaku, um garoto de apenas nove anos, mas
que assume a responsabilidade de sustentar sua mãe e três irmãos pequenos
enquanto o pai vai para servidão.
Yoshimura descreve o lento
desenvolvimento do menino que urgentemente necessita se tornar um pescador
experiente para garantir o alimento da família e não deixar que ninguém morra
de fome, inclusive ele mesmo.
Transversalmente à passagem das estações, o narrador observa e descreve
o dia a dia de Isaku ao longo de pouco mais de dois anos, atentando para seus
pensamentos, desejos e apreensões que não eram muito diferentes de nenhum
adulto ao seu redor e que revelavam a necessidade vital de amadurecer rápido.
Infância perdida: o
protagonista Isaku
O-fune-sama. |
Naufrágios é um
livro de personagens maduros que criaram uma espécie de armadura para enfrentar
a adversidade. Yoshimura não gasta muito tempo em caracterizar seus
personagens, mas não há um só deles que se caracterize pelo bom humor ou por
qualquer outra característica que não seja a taciturnidade de quem tem grandes
deveres e todo um futuro incerto pela frente.
O personagem principal,
Isaku, tem apenas dez anos mas a maturidade de suas ações e pensamentos, bem
como o peso das responsabilidades impostas a ele, o fazem bem mais velho e
maduro. Isso, em grande parte, se deve a pesada responsabilidade de sustentar a
família na ausência do pai, mas também a rígida educação dada pela mãe que em
pouquíssimos e raros momentos demonstra algum carinho pelo menino, preferindo o
víeis da severidade e da cobrança.
Não há como sentir a criança
que Isaku é, e a imagem que se tem é a de um rapaz perto de se tornar adulto.
Ele manifesta desejos quase sexuais, seu senso de responsabilidade é bastante
dilatado, há seriedade em quase todas as suas ações e o desejo de ser
reconhecido como um adulto. Somado a todas essas coisas ele assume
responsabilidades adultas, é bastante cobrado e seu principal medo é não poder
cumpri-las. Ele é apaixonado por uma das garotas da aldeia, mas mesmo sua paixão
difere bastante de algo inocente ou infantilizado, possuindo com traços de alguém
mais velho e preocupado, inclusive, com o futuro.
Contudo a experiência como
pescador e a força física para atividades essenciais para a sobrevivência são
coisas que faltam a Isaku e isso, além de desesperá-lo, o faz a todo momento
comparar-se aos meninos maiores e mais experientes. Saber pescar e fazer bias
pescarias era o fator decisivo entre sobreviver ou morrer. Por isso, Isaku está
sempre buscando extrair dos mais velhos o máximo de conhecimento e
experiências, como forma de crescimento e evolução e, assim, garantir o
alimento necessário à sua família.
Pela sua própria
inexperiência o menino tarda a entender o significado das tradições da aldeia e
do o-fune-sama. Também por
inexperiência e por ter uma visão estreitada pelos horizontes restritos e
limitados exclusiva e unicamente a sua própria realidade – e da aldeia –, ele
não consegue compreender a brutalidade e o contrassenso daquele ritual que
dependia da morte de uns para garantir a vida de outros. E como os demais
moradores acaba ansiando pelo momento do naufrágio que garantiria alimentos
suficientes a todos.
O foco do livro é muito
centrado em Isaku, mas nota-se que os habitantes da aldeia não diferem muito
dos traços psicológicos e de personalidade do menino. A única parte da
narrativa onde os habitantes da miserável aldeia esboçam alegria e um maior
relaxamento é quando o o-fune-sama
finalmente acontece. Inicialmente eles
são tomados por uma alegria imensa, em seguida, por conta da fartura, ficam
indolentes, e, por fim, são tomados pelo terror.
Outros personagens de maior
destaque na trama são a mãe de Isaku e o chefe da aldeia.
A mãe de Isaku é retratada
todo o tempo como uma pessoa de pouca sensibilidade, severa, de poucas
palavras, sempre voltada ao trabalho e para o sustento da família, além de nem
um pouco carinhosa. Na maior parte da narrativa ela exige do filho mais velho
que ele trabalhe como os demais homens da ilha e assim cumpra com a
responsabilidade deixada para ele pelo pai que tinha ido para a servidão.
Por sua vez, o chefe da
aldeia é representado como um sábio por quem todos nutrem um profundo respeito
e obediência. As vezes a trama o representa como quase um deus digno de
reverências, em outros como uma pessoa temerosa e frágil frente a situações que
podiam ameaçar seu povo. Trata-se de uma figura icônica que me faz recordar de
figuras reais do passado de nosso país, a exemplo de Antônio Conselheiro.
Outros personagens compõem a
trama, porém nenhum com muita relevância, e muitos possuem passagem muito breve
pelo enredo.
Quando dois livros
parecem se inspirar
Em alguns aspectos, esse é um livro cuja as condições peculiares
dos habitantes da vila descrita se assemelham bastante a história contada em O Conto da Deusa, livro de Natsuo Kirino resenhado logo
no começo deste ano.
Assim como na aldeia de Namima, protagonista de Kirino, a
comunidade de pescadores onde Isaku nasceu vive o pesadelo da fome e tem no mar
sua principal fonte de sustento. Da
mesma forma ali muitas tradições estranhas e cruéis se desenvolveram a partir
do medo da fome e a incerteza de se conseguir o sustento. No livro de Natsuo, o
fanatismo religioso leva ao exílio e a destruição da vida de alguns aldeões, no
livro de Yoshimura a fabricação do sal se
torna uma arma para provocar a tragédia dos naufrágios e permitir o saque da
carga. Além disso, na história de Naufrágios
os doentes terminais e inválidos costumeiramente eram deixados para morrer sem
alimento ou voluntariamente deveriam parar de comer para poupar alimento para
os seus familiares, aquele que não o fazia era visto como egoísta como denota
claramente o trecho abaixo:
“—
Só isso? Vocês devem estar realmente economizando. Estamos no nosso quarto
fardo, que está pela metade. É culpa do vovô. Ele pode morrer a qualquer
momento, mas fica nos pedindo para lhe dar comida. As pernas estão inchadas e
ele está se acabando, mas continua sendo egoísta — disse Sahei, franzindo o
cenho.”
De forma similar, em O Conto da Deusa a família de
Namima devia comer menos ou até mesmo privar-se do alimento, se assim fosse
necessário, para garantir o sustento da sacerdotisa, que no credo local era
elemento fundamental para que a comunidade tivesse pescas proveitosas e para
afastar a possibilidade da fome.
Comparando-as notei como estas duas histórias são muito semelhantes no que tangem às
dificuldades das aldeias japonesas de pescadores durante a era pré-moderna
(medieval) e por isso denotam a quão complicada era a sobrevivência nas ilhas
mais isoladas do arquipélago japonês. Trata-se de uma realidade que nos tempos
atuais mudou bastante, porém o Japão ainda é um país que necessita de
importações de alimentos e que tem na pesca sua principal e fundamental fonte
de alimentos. Do mar vinha
tudo: o sustento escasso, os mortos que reencarnavam nas crianças que nasciam e
o o-fune-sama. Esse livro
deixa muito bem evidente, assim como Kirino o deixa em seu O Conto da Deusa, a relação
íntima e fundamental dos japoneses com o mar e que vai do mítico ao prático (a subsistência).
Em ambos os livros os personagens se
encontram firmemente presos a tradição e a terra de seus antepassados
impedindo-os de migrar para lugares onde a sobrevivência fosse facilitada.
Crenças religiosas se misturam a tradição e ao apego ao lugar de origem para
criar um ciclo vicioso, suicida e perverso.
Características gerais
e apreciação crítica
Naufrágios é um
livro no qual o diálogo é um dos elementos narrativos menos explorado. A
escrita de Yoshimura se concentra na narração e descrição contínua do cotidiano
e das emoções dos personagens. A narração em terceira pessoa é metódica,
sequenciada e linear, e o narrador, sem compadecer-se com seus personagens,
segue o curso dos acontecimentos documentando cada uma das ações do cotidiano.
A forma como o autor escreve é limpa e até objetiva, mas o
enredo em si é monótono e cíclico, marcado por um tempo cronológico demarcado
pela transição das estações do ano e nos quais várias ações rotineiras e
sazonais dos personagens são retomadas.
Para enfatizar que a vida naquela aldeia era sempre repetitiva e
que as várias atividades empreendidas pelas pessoas eram sempre definidas pela
passagem e chegada das estações, o autor não poupa seu leitor falando mais de
uma vez sobre temas como a pesca do polvo, a extração do sal e a expectativa da
chegada d’o-fune-sama. A novidade
de cada ano é a evolução lenta, mas inexorável de Isaku e alguns acontecimentos
que são decisivos para o desenlace da narrativa. Isso torna a narrativa um
pouco entediante, repetitiva e arrastada em vários momentos, esse é o ponto
fraco fundamental do livro, mas é inegável a qualidade da escrita de Yoshimura.
O tom geral da narrativa é bastante melancólico. O temor
da fome que trazia consigo a morte é o sentimento que com mais intensidade se
encontra presente em toda a peça.
A luta interminável pela
sobrevivência, o medo da fome, a tristeza por aqueles que morriam de fome ou
iam para a servidão e nunca voltavam, ou que dela retornavam envelhecidos e
inválidos dão muito pouco espaço para momentos felizes na história de Naufrágios. O próprio título escolhido por Yoshimura já evidencia muito desse tom
que domina a história, mas, ao mesmo tempo, é um jogo de ideias bastante
metafórico.
O naufrágio de um navio nunca
representa algo bom, mas o desespero e a certeza da morte. Trata-se de uma
tragédia anunciada. No entanto, contraditoriamente, a chegada do o-fune-sama representava para aquelas
pessoas a esperança de períodos de abastança e sobrevivência mais fácil, a
certeza de que ninguém morreria de fome ou necessitaria vender-se como servo.
A morte dos náufragos (mesmo
dos sobreviventes, sumariamente eliminados pelos pescadores para que não
houvesse testemunhas do saque da carga) representava uma oportunidade de vida
para a aldeia inteira. Assim podemos
entender que antes mesmo dos barcos mercantes naufragarem na costa da ilha, a
própria aldeia já era a metáfora de um navio prestes a “naufragar”. Seria o
naufrágio real a possibilidade mais concreta de se adiar o “naufrágio” daquela
população desvalida. Esse é um sutil jogo de ideias presente nessa narrativa na
qual morte significa também sobrevivência. Ali as relações mais primitivas da
lógica da natureza se destacam: é
necessária a morte para que haja vida.
[ALERTA DE SPOILER]. Por fim, o desfecho é inesperado,
mas não surpreende. Yoshimura deixa o fim da narrativa um tanto em aberto e o
gosto de derrota dos personagens é evidente, quase palpável. Os últimos
acontecimentos narrados não surpreendem o leitor porque tudo na aldeia parece
sempre convergir para um mesmo resultado: o trágico. Contudo, muitos dos
acontecimentos são inesperados porque a forma como a história encontra seu fim
não podia ser interpretada nas entrelinhas, ou seja, um desfecho original e
criativo.
A edição lida é da Editora
Best Seller, do ano de 2003 e possui 192 páginas.
Sobre
o autor
Foi presidente do sindicato dos escritores japoneses e um membro
do PEN, clube internacional de escritores fundado em 5 de outubro de 1921 pela
escritora inglesa Catherine Amy Dawson Scott.
Publicou mais de 20 romances, dos quais On Parole e Naufrágios
são internacionalmente conhecidos e foram traduzidos para várias línguas. Seu
livro A Enguia (Unagi) foi adaptado
com sucesso para o cinema.
Naufrágios é seu primeiro romance lançado no Brasil.
Faleceu em 31 de julho de 2006.
Confira quem são os outros
autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.
Postagens Relacionadas
Nosso Itinerário: livros resenhados
Listas e Postagens Especiais
Cinema
[1]
“Termo genérico que se refere a um poderoso senhor de terras no Japão
pré-moderno, que governava a maior parte do país a partir de suas imensas
propriedades de terra hereditárias” (Wikipédia).
Esse livro é incrível, já o reli 3 vezes e pretendo reler novamente no futuro.
ResponderExcluirÓtima resenha, descreveu com precisão as características da história, entretanto, eu apenas discordo na parte em que diz que a história é "um pouco entediante, repetitiva e arrastada em vários momentos".
Bom, ao meu ver, Yoshimura escreve propositalmente dessa forma, para passar a sensação do cotidiano, da rotina, do tédio que a população da ilha vivia - apesar das dificuldades - e a espera do milagre do Ofune-sama, que quando acontece, é notável a agitação da população da ilha. E essa sensação de tédio da rotina e a agitação com o Ofune-sama é igualmente transmitida para nós leitores e isso é a maior sacada do autor: nos envolver totalmente na história a ponto de sentirmos o que aquela população vivia.
Mas mais uma vez, ótima resenha!
Sua observação é muito interessante. Não pensei por essa perspectiva, por isso é ótimo dividir experiencias literárias. Obrigado pelo comentário.
Excluir