Por Eric Silva
Professor e blogueiro
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"Ele (Marcelo Freixo) está preocupado, naturalmente, com as classes mais baixas (ao questionar sobre a isenção para o livro). Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, atenderemos também. Agora, eu acredito que eles, num primeiro momento, quando fizeram o auxílio emergencial, estavam mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos”
(Paulo Guedes, durante reunião da comissão mista da reforma tributária – 05/08/2020)
* * *
Há algum tempo venho querendo redigir alguns textos de
opinião para o blog sobre temas que dizem respeito ao mundo literário. Coisa
simples e sem muitas pretensões, mais para variar o conteúdo do blog do que
realmente pelo desejo de opinar sobre determinadas questões. No entanto, a
falta de tempo e os encargos de meu trabalho docente vieram frustrando minhas
pretensões neste sentido e o projeto não saiu do papel.
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O CONTEXTO ATUAL
É do conhecimento de todos que a pandemia de Covid-19 e as
medidas de restrição e distanciamento social que foram essenciais para reduzir
a mortandade (que no dia em que escrevo já chega a 848.084 no mundo, e a
122.596 no Brasil) tiveram profundos impactos não apenas no campo da saúde
pública – que exigiu maiores gastos por parte dos governos – como também no
campo econômico que teve grande parte do processo produtivo e de consumo
paralisados.
Houve em decorrência desta crise global o aumento do
desemprego, a falência de milhares de pequenos negócios, a diminuição da
arrecadação e outras consequências que ainda demandarão tempo para serem
amplamente conhecidas, sentidas e – sabe-se lá depois de quanto tempo –
superadas. Uma situação que vem preocupando governos do mundo todo.
No Brasil, particularmente, os reflexos da crise também se
deram no campo étnico, social e, principalmente, político. O Estado se viu
obrigado a socorrer uma imensa população empobrecida de um país historicamente
desigual através do pagamento de um Auxílio Emergencial, e sobretudo os Estados
da União tiveram seus gastos aumentados no combate ao avanço da doença.
Não obstante, mais do que estes fatores, os problemas gerados
pela epidemia chegaram no Brasil em um momento em que os dirigentes brasileiros
haviam começado uma série reformas e se encaminhavam para iniciar a discussão
de outra importante reforma, a tributária. Trata-se de Propostas de Emenda à
Constituição (PECs) que, caso sejam aprovadas, trarão impactos profundos no
curto e no longo prazo não só para a cadeia produtiva (empresarial) e de
prestação de serviços, como também sobre o bolso do cidadão comum,
principalmente agora que, nas últimas semanas, a reforma está sendo palco para
a proposição de medidas econômicas, no mínimo, discutíveis por parte da equipe
econômica do atual governo, liderada pelo então ministro da economia, Paulo
Guedes.
O que pretende a equipe econômica mediante sua proposta de
reforma é, através da unificação de uma série de impostos, aumentar a
arrecadação, taxando áreas que atualmente possuem isenção e reativando impostos
considerados ruins a exemplo da CPMF, usando a crise atual como razão de
fazê-lo. Se aprovada a proposta da equipe econômica nos termos em que esta se
apresenta atualmente, os impactos serão profundos para diversos setores da
economia e, entre eles, o setor editorial, talvez o mais prejudicado de todos.
REFORMA E
CARGA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA
Já faz algum tempo que o poder legislativo junto ao executivo
vem tentando – desde governos anteriores –discutir mudanças nas regras do
complexo sistema tributário brasileiro, responsável por uma carga tributária[1]
elevadíssima, causando impactos negativos não só para o setor produtivo, mas
principalmente para o cidadão comum.
Segundo a advogada tributarista e professora de Direito
Tributário, Ana Caroline Monguilod (2019[2]), o
sistema tributário brasileiro é confuso e complexo, demandando das empresas
brasileiras investimentos elevados em recursos e tempo na hora de fazerem o
recolhimento dos impostos devidos. Além disso, afirma a especialista, a carga
tributária brasileira, em 2019, equivalia a 33% do PIB brasileiro, sendo
bastante elevado quando se comparado a países com níveis de desenvolvimento
semelhantes ao nosso e chegando até mesmo a ser equivalente a carga tributária
paga em países desenvolvidos.
Se não bastasse, ainda explica a tributarista, o sistema
tributário brasileiro – que data do ano de 1965, quando aconteceu sua última
reforma – se encontra obsoleto frente aos tempos atuais. De lá para cá, o setor
de serviços ganhou maior participação na economia e o comércio online e de
produtos digitais passou a se tornar parte de uma realidade que é por nós
vivida, mas que está muito distante daquela dos anos 60. O resultado, explica,
foram distorções na tributação e na arrecadação que pesam no bolso dos
brasileiros, das empresas e afeta também o Estado.
Por conta destes fatores, uma reforma no sistema tributário é
esperada com expectativa e até receio por parte do contribuinte brasileiro,
podendo – a depender dos jogos políticos e de poder em Brasília – aliviar ou
tornar ainda mais onerosa a contribuição para a máquina pública.
Um sistema financeiro eficiente e com menor carga tributária
poderia, por exemplo, diminuir o preço de diversos bens de consumo bem como
reduzir os valores elevadíssimos que pagamos em forma de imposto direto. No
entanto, o objetivo desta reforma
pretendida por nossos governantes, como explica o blog da Fundação
Instituto de Administração[3],
não objetiva aliviar diretamente o bolso
dos contribuintes, haja vista que não se pretende reduzir os valores
arrecadados, mas tornar o sistema mais simples e desburocratizar a gestão
empresarial, o que, segundo os especialistas, no entanto, poderia nos beneficiar
de forma indireta, através de uma maior promoção da igualdade social (reduzindo
os impostos daqueles que possuem baixa renda e taxando grandes fortunas),
reduzindo a carga tributária, sobretudo sobre o consumo, além de diminuir os
custos administrativos daqueles que possuem algum empreendimento. No entanto,
há anos que se tenta reformar o sistema tributário sem que o executivo e o
legislativo cheguem a algum consenso.
No momento, duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) já
se encontravam em tramitação no legislativo e, no dia 21 de julho, um Projeto
de Lei foi encaminhada à Câmara pelo governo federal: a PL 3.887/2020[4]. Esta
PL que propõe a unificação de dois dos principais tributos federais e cuja
tributação é bastante complexa: o PIS/PASEP e a COFINS. Para ficar mais claro:
o PIS/PASEP é um imposto destinado ao pagamento do seguro-desemprego, do abono
salarial e participação na receita dos órgãos e entidades para os trabalhadores
públicos e privados[5],
e a COFINS é destinada sobretudo para a Saúde. As duas siglas não são
desconhecidas do grande público e você pode encontrá-las, por exemplo, nas suas
contas de água e de eletricidade, além disso, quase todos os anos se fala no
saque do PIS/PASEP.
Em 2019, segundo reportagem de Camilla Veras Mota, para a BBC
Brasil, o PIS/PASEP e a COFINS foram sozinhos responsáveis por uma arrecadação
de R$ 325 bilhões. No entanto, a proposta do governo de unificação destes
tributos daria origem a chamada Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) cuja
alíquota proposta seria de 12% em um regime não cumulativo, porcentagem que foi
considerada alta até mesmo pelos especialistas, segundo a mesma reportagem.
MAS ONDE
ENTRA O MUNDO LITERÁRIO NESTA HISTÓRIA?
Se aprovada a alíquota da CBS, ela não só aumentará os preços
de diversos serviços (setor mais atingido), elevando os custos, por exemplo, no
pagamento de mensalidades escolares e universitárias (idem, ibidem), mas também
terá um forte impacto sobre o mercado editorial que até então goza de algumas
isenções fiscais. O projeto não só eliminaria a isenção tributária para livros,
concedida no ano de 2004, como aplicaria para os mesmos a alíquota de taxação
de 12%. Contudo, o sistema tributário que já é bastante complexo se somaria,
neste caso, a complexidade da própria cadeia produtiva do livro que envolve não
só a produção do bem físico (o livro) na gráfica, como também a prestação de
serviço de vários agentes envolvidas (pessoal contratado pela editora, serviços
gráficos e etc.). No final, o custo para o consumidor final aumentaria não em
12%, mas em 20% segundo afirmou Bernardo Gurbanov, presidente da Associação
Nacional de Livrarias, em entrevistas para a edição brasileira da DW[6].
Em termos proporcionais, caso o aumento seja realmente de 20%
no preço de capa dos livros (ou seja, o preço sugerido pela editora às
livrarias e que pode ser reajustado por estas últimas), as obras que em média
custam de R$ 30,00 a R$ 40,00, passariam a custar entre R$ 36,00 e R$ 48,00. Já
obras mais caras, a exemplo das obras técnicas estrangeiras traduzidas e que
superam a cifra dos R$ 100,00, e também de boxes de livros que custam, por
exemplo, R$ 60,00, R$ 80,00, passariam a custar, respectivamente R$ 120,00, R$
72,00 e R$ 96,00.
A proposta foi recebida com críticas dentro do mundo
literário, tanto por parte dos leitores quanto pelo mercado editorial
(editoras, autores, livrarias e outros livreiros) e foi responsável por
alavancar as hashtags
#EmDefesaDoLivro e #DefendaOLivro bem como campanhas que tentam expor os
efeitos negativos não só sobre o setor como sobre a cultura caso seja aprovada
a taxação.
O QUE
ARGUMENTA O GOVERNO?
Os argumentos do governo para estender aos livros a alíquota
proposta para o CBS, no entanto, não poderiam ser mais falaciosas e sínicas.
No dia 05 de agosto, durante
reunião da comissão mista da reforma tributária, Paulo Guedes, o atual ministro da
economia, foi questionado
se sua proposta de reforma tributária se estenderia também a uma taxação sobre o
comércio de livros. Na ocasião, Guedes defendeu que no Brasil o consumo de
livros é feito pelas camadas sociais de maior renda e assim quis justificar que
manter a isenção sobre os livros não se justificaria, porque estes possuem
condições de pagar por seus livros ainda que mais caros.
Mais do que isso, afirmou o economista que para compensar os
mais pobres seria mais efetivo que o governo promovesse doações de livros aos
mesmos (o que ele não deixou claro como seria feito) e ampliasse o Bolsa
Família – através da criação do Bolsa Renda, atual carro-chefe da gestão
governamental. Além disso, o ministro completou sua fala sugerindo que os mais
pobres estão mais preocupados em sobreviver (comprar comida, naturalmente) do
que frequentar as livrarias que ele e os deputados presentes frequentavam e
adquiriam livros.
“Vamos dar o livro de graça para o mais
frágil, para o mais pobre. Eu também, quando compro meu livro, preciso pagar
meu imposto. Então, uma coisa é você focalizar a ajuda. A outra coisa é você, a
título de ajudar os mais pobres, na verdade, isentar gente que pode pagar”
"Ele
(Marcelo Freixo) está preocupado, naturalmente, com as classes mais baixas (ao
questionar sobre a isenção para o livro). Essas, se nós aumentarmos o Bolsa
Família, atenderemos também. Agora, eu acredito que eles, num primeiro momento,
quando fizeram o auxílio emergencial, estavam mais preocupados em sobreviver do
que em frequentar as livrarias que nós frequentamos”
O QUE PENSO DE TUDO ISSO
Em primeiro lugar, considero o posicionamento da equipe
econômica tão equivocada quanto irracional. É certo que parcela significativa
daqueles que consomem livros no Brasil fazem parte de classes sociais que podem
custear os aumentos de preços, mas isso não significa que devemos ignorar que
os leitores se encontram distribuídos num espectro de renda muito mais amplo.
Há na margem deste espectro um considerável número de pessoas
para as quais a compra de um livro de R$ 30,00 ou R$ 40,00 significa um
investimento (a palavra correta é esta) muito elevado. Ainda assim, são pessoas
que movidas pela necessidade salutar de enriquecer-se culturalmente, adquirir
conhecimento ou na busca de entretenimento usam de todas as estratégias para
apertar o orçamento e comprar seus livros. Planejam a compra por meses,
economizam, esperam feiras e bienais, liquidações, promoções e queimas de
estoque ou correm atrás de cupons de desconto para adquirir seus livros por um
preço mais acessível às suas condições. A pouco tempo atrás, eu mesmo fui uma
destas pessoas. Tirava dos meus parcos R$ 400 de renda mensal uma parcela que
ia juntando para comprar dois ou três livros numa Black Friday ou em outra promoção qualquer. Minha média era de
quatro ou cinco livros comprados por ano e parte considerável de minhas
economias eram sugadas pelos fretes.
Mas para além destes aspectos, o governo também ignora que no
Brasil há poucas possibilidades de acesso à leitura e um dos motivos disso é o
número pequeno de bibliotecas públicas (principalmente em consideração a outros
países) que poderiam atender a demanda dos leitores mais pobres.
Segundo levantamento do portal G1[7],
feito em 2014 a partir de dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas,
haviam 6.148 bibliotecas públicas no Brasil, na época, uma para cada 33 mil
brasileiros. Índice extremamente pequeno e que não havia mudado em cinco anos
segundo a mesma reportagem. Para se ter uma noção da pequenez deste número,
segundo o site Educa+ Brasil, na República Tcheca, a proporção é de uma
biblioteca para cada 1.970 habitantes[8].
Além do número pequeno, soma-se a isso, a má distribuição
destas bibliotecas pelo território nacional e as centenas de cidades que não
contam com um único espaço deste tipo e quando contam, nem sempre é um espaço
que atenda a uma ampla diversidade de leitores. Minha cidade é um exemplo
disso. Temos duas bibliotecas públicas, ambas universitárias, voltadas (por
razões óbvias) para o público universitário, com acervo de obras literárias
(ficcionais) limitadíssimo, com recursos parcos para ampliação do acervo e com
restrições de uso para preservá-lo (os livros não saem da biblioteca). Coube a
iniciativa privada – uma filarmônica no caso de minha cidade – oferecer acesso
às obras que as duas universidades públicas não dispõem. Uma biblioteca
pequena, mantida por doações, por parcas verbas de alguns raros programas
públicos para ampliação do acervo e pelas mensalidades dos estudantes de música
da instituição – que mantém igualmente o prédio, as contas e os salários de
funcionários e professores.
Minha segunda contra-argumentação ao que depõe Guedes, vai no
sentido de que o Governo cria com esta proposta uma armadilha para o próprio
Estado.
Através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), bem
como do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), o governo federal é um
dos maiores compradores de livros, sobretudo, didáticos, do país. Com o aumento
dos preços no setor editorial o Estado arcará com despesas maiores na aquisição
de livros para os estudantes das escolas públicas, para montagem e manutenção
das bibliotecas das mesmas. Todavia, não me surpreenderia se ambos os programas
fossem reformulados com o objetivo de oferecer menos livros, com um período
mais logo sem renovação das edições distribuídas ou até com o fim do PNBE (no
contexto mais grave até mesmo do PNLD), haja vista que, em agosto de 2019, o
MEC (Ministério da Educação) já havia feito cortes de R$ 348 milhões na verba
destinada a compra de livros[9].
Segundo a linha de lógica, seja no cenário de redução da
aquisição de livros didáticos por parte do governo ou do aumento da despesa com
esta aquisição, como e quando o governo federal destinaria verbas para a compra
e doação de livros aos obres como afirmou Guedes? De onde sairia o dinheiro? O
discurso do ministro me parece demagogia.
NO QUE TANGE À QUESTÃO ECONÔMICA E DE MERCADO
Minha terceira contra-argumentação versa sobre a situação de
fragilidade do mercado editorial brasileiro.
Segundo reportagem da DW supracitada, o mercado editorial no
Brasil encolheu mais de 20% nos últimos dez anos com perdas de R$ 1,4 bilhão, o
que seria consequência, afirma a reportagem, “[...] das transformações digitais
e agravado pela recessão econômica iniciada em 2015”. Além disso, a situação se
viu agravada com a falência e pedido de recuperação judicial de duas gigantes
do setor: as livrarias Saraiva e Cultura. O impacto foi enorme e nos últimos
anos ambas as empresas fecharam dezenas de suas livrarias físicas por todo o
país, obrigando as editoras a investirem em estratégias como a venda direta
para os consumidores através de seus sites.
Se não bastasse este cenário negativo, no contexto mais
recente, em conformidade com as medidas de contenção da pandemia de Covid-19,
livrarias físicas foram fechadas por todo o território. O resultado foi mais
perda de faturamento – 47% em abril deste ano em comparação com o mesmo período
em 2019 (idem, ibidem).
No Brasil, o consumo de livros é limitado, por um lado, pelo
preço do livro, que está acima do poder aquisitivo de muitos, e de outro, por
uma cultura alimentada e alicerçada por uma política de desvalorização da
leitura, fazendo com que os consumidores assíduos de livros não sejam
suficientes para garantir e impulsionar as vendas no setor. O resultado são
tiragens menores e preços elevados. O menor número de livraras físicas também
aumenta as compras online em lojas virtuais acrescentando aos encargos a
despesa (quase sempre elevada) com frete, o que desestimula o consumo por parte
de muitas pessoas.
O aumento do preço de capa por conta da taxação proposta
aumentaria consideravelmente o valor despendido pelo consumidor, desestimulando
o consumo, tornando mais grave a crise do setor.
Reitero ainda que, sendo o governo federal um dos maiores
compradores de livros, caso haja cortes ou redução de verbas para aquisição de
didáticos, a situação se tornará mais grave.
Se vivemos em um momento econômico delicado, considero
estranho e até irracional (para variar!) sufocar um mercado que já estava
demasiadamente comprometido e em situação difícil há vários anos.
Além de tudo o que mencionei, há que se lembrar que a
proposta de CBS com alíquota de 12% feita pelo governo incide sobre bens, mas
também sobre serviços. Disto feito, se o preço do frete for ajustado para cima
pelas transportadoras, comprar pela internet se tornará ainda mais oneroso, o
que afetaria, por um lado, os varejistas que apostaram no e-commerce e, de
outro, os leitores (como eu) que moram em cidades pequenas do interior
desassistidas de sebos, livrarias e até de bibliotecas públicas.
O CENÁRIO PODE SER AINDA PIOR?
Não sou economista, mas venho tentando entender outra
proposta dentro da reforma tributária do governo que, no meu entendimento,
contribuirá também para agravar o cenário já descrito: a criação de uma nova
CPMF. Como o assunto vem sendo discutido à parte do tema da taxação dos livros,
não tenho muitas referências que respondam minhas dúvidas e conjecturas, por
isso, a partir de agora o que farei será mais um exercício de indagações
lógicas do que de afirmações em si.
Além da alíquota de 12% de CBS, Guedes vem falando também em
um imposto sobre transações financeiras eletrônicas, que, segundo reportagem da
DW[10]
incidiria, por exemplo, sobre compras de bens em sites e sobre transações
bancárias digitais – o que incluiria uma série de formas de pagamentos digitais.
O objetivo do governo seria arrecadar fundos para a folha de
pagamento do Estado e também financiar o novo programa social do governo que
substituirá não só o Bolsa Família como vários outros programas sociais, e que
vem sendo chamado de Renda Brasil.
Sobre este novo imposto em que Guedes vem insistindo, lanço
alguns questionamentos no campo do mercado editorial e livreiro.
Se essa proposta (ainda obscura) de tributação sobre
pagamentos incidirá sobre operações financeiras digitais, não significa que
teremos que pagar mais um imposto sempre que fizermos uma compra online? Não
seria também tributado um pagamento feito por via digital por meio de cartões,
boletos e transferências diretas? Partindo daí: comprar livros por meio de livrarias online não se tornará ainda mais
caro quando somado a isso a taxação já discutida? O e-commerce não ficaria
ainda mais custoso tanto para adquirir livros físicos quanto e-books?
E já que citei os polêmicos e-books: em geral quem compra
esta modalidade de publicação o faz porque dispensa a necessidade de transporte
(logo de pagamento de frete), pela rapidez com o qual tem a leitura em mãos,
por economia ou ainda por falta de espaço físico em casa. Mas ainda valeria a
pena comprá-los pelo primeiro motivo? Penso que não, porque pesam contra eles o
fato de que a diferença de preço entre livros físicos e digitais costuma não
ser grande (as vezes nem compensa) e, além disso, eles também serão reajustados
com a taxação dos 12%.
Enfim, quem compra livros online pagará pela taxação de CBS
no preço de capa, pagar impostos pela compra em meio eletrônico e também no
pagamento realizado por meio de alguma transação financeira digital. Estou
equivocado?
OS POBRES NECESSITAM DE MAIS DO QUE SOMENTE PÃO!
Por fim, o posicionamento do governo acerca da relação entre
pobreza e consumo de livros me inclina a pensar que nossos dirigentes
consideram que os pobres não carecem de acesso à leitura, que livros não são
necessários a eles, à construção de sua cidadania e do intelecto dos mesmos. Faz
pensar, sobretudo, que não sendo “essenciais” não figurariam como necessidades
reais para os mesmos. Um discurso
falacioso e que alimenta não só a ignorância como contribui para a manutenção
de uma ampla massa de manobra iletrada, inculta e perfeita para ganhos
eleitoreiros.
Parto do princípio de que os pobres não costumam ler mais do
que leem (sim, nós lemos, caro ministro!) principalmente por conta de dois
fatores. O primeiro é porque não há
estímulo e disso advém muitas razões:
1. As
políticas no sentido de estimular a leitura são poucas, de pequeno alcance e em
geral pouco eficientes;
2. As mídias
audiovisuais como cinema e televisão exigem menor esforço e são vistas como
mais atraentes;
3. Nas escolas
o hábito da leitura não é cultivado apropriadamente. Lê-se por obrigação e
quase exclusivamente obras cuja linguagem exige um capital cultural
elevadíssimo e escasso entre os jovens, ainda mais quando se trata daqueles
provenientes das camadas mais humildes da população. O incentivo e consolidação
do habito de leitura exige um avanço gradativo no grau de complexidade tanto
linguística como temática que quase nunca é respeitado;
4. A taxa de
analfabetismo ainda é expressiva no Brasil, cerca de 6,6%, em 2019[11]. Se
não bastasse, entre os que oficialmente são considerados alfabetizados há os
analfabetos funcionais, ou seja, não compreendem o que leem, são meros
“decodificadores de palavras”. Em 2018, segundo o Indicador do Alfabetismo
Funcional (Inaf), 29% da população brasileira era formada por analfabetos
funcionais[12].
Majoritariamente, os dois grupos (analfabetos de fato e analfabetos funcionais)
são formados por pessoas das classes mais humildes;
5. O habito de
leitura sofre forte influência familiar e se ninguém no núcleo familiar tem
este hábito, torna-se mais difícil que os filhos o adquiram.
A outra
questão que limitam o número de leitores entre as classes mais pobres é o
acesso. Livros são caros para que os mesmos adquiram com frequência;
não são custeados pelo governo – exceto os didáticos das escolas públicas –, e
o número de bibliotecas públicas é pequeno e mal distribuído. Soma-se a isso o
pequeno poder aquisitivo frente aos gastos essenciais primários.
Somo a estes dados outra questão: grande parte da tributação no Brasil é sobre o consumo, isso
significa que pagamos impostos em cada produto ou serviço seja ele essencial ou
não. Isso encarece, por exemplo, a cesta
básica. Segundo a Valor Investe[13], em
2019, 17,24% do valor cobrado no preço do feijão era referente a impostos, o
mesmo para o Arroz (17,24%) e um valor próximo para o Pão Francês
(16,86%). As contas de água e energia
elétrica possuíam porcentagens ainda maiores: 24,02% e 48,28%, respectivamente.
O que sobra aos mais pobres para comprar livros, mesmo entre aqueles assistidos
pelos benefícios de programas de transferência de renda como o Bolsa Família?
Pouquíssimo!
A leitura é
importante para formação dos indivíduos e deveria ser estimulada, pois ajuda a
desenvolver o cognitivo sobretudo dos jovens, a compreensão da semântica e a
ampliar o vocabulário. Ela ainda estimula a imaginação, a criatividade, inspira
e politiza, e é uma porta de acesso à informação e à cultura nacional e
universal. Todos estes elementos são amplamente benéficos e mais, ajudam na
formação crítica e intelectual dos indivíduos preparando-os para vida.
Por estes fatores, digo que os pobres não têm só fome de pão, mas igualmente de acesso à cultura
que vem histórica e sistematicamente sendo negado aos mesmos. Entre os
mais empobrecidos que compreendem a importância da leitura (fiz parte deste
grupo até o início do ano de 2019 quando finalmente me tornei assalariado) são,
por força dos fatores que elenquei, impedidos de saciar sua fome intelectual.
Já os outros, os que não chegaram a valorizar o habito da leitura, expressiva
maioria não foi iniciada ou devidamente incentivada a adquirir o costume de
ler.
A título de conclusão afirmo ainda que a proposta proferida
pelo ministro da economia Paulo Guedes afetam a todos, mesmo os mais pobres,
haja vista que, como já expliquei, a maior parte da tributação no Brasil incide
sobre o consumo, um tipo de tributação regressiva, ou seja, que desconsidera as
condições sociais do contribuinte, tributando igualmente ricos e pobres, o que
já é um custo mais elevado para estes últimos em termos relativos – uma
porcentagem maior de sua renda é comprometida ao adquirir bens, mesmos os mais
básicos como alimentos. As novas
tributações são também sobre o consumo e onerarão ainda mais – e de forma
indiscriminada – ricos e pobres.
O governo usa como contra-argumentação frases e lógicas
sínicas e cheias de demagogia como a que inicia esse texto e que fora proferida
por Guedes. Ela encerra em si a ideia de que a fome de cultura é coisa que só
dá em ricos e que aos pobres basta o alimento e alguns livros doados pelo
governo. Mesmo nesse último ponto, levanto ainda outra questão: em um governo de posição ideológica tão
inflexível e reacionária, que tipo de livros seriam doados aos mais carentes?
Qual seria o seu conteúdo?
Tudo o que consigo enxergar nesta neblina das operações
complexas que compõem o sistema tributário, de sua reforma, dos jogos de poder
e de interesses eleitoreiros, é que as consequências para o mundo das letras
não serão nada boas. E como os leitores não se cercearão do acesso aos livros,
prevejo ainda mais uma consequência negativa para o mercado editorial: o
aumento considerável da pirataria de e-books, já amplamente praticada nos
últimos dez anos e que ajudará a afundar mais alguns centímetros o mercado
editorial.
Nesse país
onde o Estado vem histórica e sistematicamente negando o acesso à cultura, para
os mais pobres, este acesso vem sendo cada vez menor, insatisfatório, ilegal ou
nulo. As consequências, no fim, é uma população empobrecida não só de bens
materiais como também de conhecimento, servindo de massa de manobra ou de bode
expiatório para discursos demagogos e para pretensões que só beneficiam aqueles
que se encontram no poder.
Postagens relacionadas
Nós e a literatura brasileira: até quando
acharemos que o que é de fora é melhor?
[1]
“Relação entre o total dos tributos arrecadados pelo governo de um país e o
produto interno bruto (PIB)” (CARGA
TRIBUTÁRIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation,
2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Carga_tribut%C3%A1ria&oldid=53152958>.
Acesso em: 29 ago. 2020).
[2] MONGUILOD, Ana Carolina. [Entrevista
concedida a] Juliana Rangel. UM BRASIL. O Complexo Sistema Tributário
brasileiro. 2019. (32 m 22 s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Fy90D1jgjaA. Acesso em: 29 ago. 2020.
[3] FUNDAÇÃO INSTITUTO DE
ADMINISTRAÇÃO. Reforma Tributária: Tudo que você precisa saber. Fundação
Instituto de Administração, [s. l.], [s/d]. Disponível em:
https://fia.com.br/blog/reforma-tributaria/. Acesso em: 30 ago. 2020.
[4] MOTA,
Camilla Veras. Como a reforma tributária pode afetar seu bolso. São Paulo, BBC,
6 ago. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53617286.
Acesso em: 30 ago. 2020.
[5] PIS/PASEP.
In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020.
Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=PIS/PASEP&oldid=58998429>.
Acesso em: 30 ago. 2020.
[7]REIS,
Thiago. Brasil tem uma biblioteca pública para cada 33 mil habitantes. G1, São
Paulo, 02 nov. 2014. Disponível em:
http://g1.globo.com/educacao/noticia/2014/11/brasil-tem-uma-biblioteca-publica-para-cada-33-mil-habitantes.html.
Aceso em: 01 set. 2020.
[8]
MARIA, Bárbara. O número de bibliotecas no Brasil é baixo comparado a outros
países. Educa+ Brasil, [s.l.], 16 jul 2018. Disponível em:
https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/noticias/o-numero-de-bibliotecas-no-brasil-e-baixo-comparado-a-outros-paises.
Aceso em: 01 set. 2020.
[9]
HARTMANN, Marcel. MEC decide congelar R$ 348 milhões em compra de livros para
escolas. Gauchazh, [s.l.],
07/08/2019. Disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2019/08/mec-decide-congelar-r-348-milhoes-em-compra-de-livros-para-escolas-cjz1kw1u6006a01qm00pzpi3s.html#:~:text=Obrigado%20no%20fim%20de%20julho,para%20escolas%20da%20educa%C3%A7%C3%A3o%20b%C3%A1sica.
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