sexta-feira, 15 de maio de 2020

A Alma Trocada – Rosa Lobato de Faria – Resenha


Por Eric Silva
30 de março de 2020

“So if I'm losing a piece of me
Maybe I don't want heaven
(Troye Sivan)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.


“Sim, eu era cobarde. Reconheço que era, que sou cobarde. Desenhava miniaturas, com vergonha de me expor. Parecia que a timidez de um desenho pequenino escondia o essencial do desenho. Uma forma subjectiva de prolongar a adolescência. Tudo em ponto pequeno. Só um desenhozinho. Uma brincadeira. E dizem que desenho bem. Já me convidaram para expor mas nunca aceitei porque todos iam perceber quem eu sou, um homem à procura de palavras jamais encontradas hidranja, plátano, arrabil, phisalis, um homem escondido atrás de si próprio, da mãe autoritária, da noiva feia.

[...]

E aqueles anos todos da adolescência à procura de mim, na angústia de perceber quem sou, a olhar os rapazes mais velhos às escondidas, a sentir-me diferente, a ter sonhos eróticos com as mãos do Tinito, a fingir conversas machas com os colegas, em busca da minha alma trocada.

Cobarde.”

Sinopse do enredo

Penúltimo livro publicado em vida pela escritora portuguesa, Rosa Lobato de Faria, A Alma Trocada (2007) conta a história de Teófilo, um rapaz português já feito homem e formado como professor de francês, mas que enfrenta o difícil processo de aceitação de sua própria orientação sexual e de si mesmo.

Nascido em uma família cheia de regras e demagogias, mas sem nenhum afeto sincero, Teófilo sempre se sentiu deslocado e que algo lhe faltava, que sua alma havia sido trocada. Foi ainda adolescente, com o Tinito, afilhado de sua avó, que Teófilo descobriu que se sentia diferente em relação aos outros rapazes e mal imaginava que daquele dia em diante Tinito seria sua maior fraqueza.

Contudo, a descoberta da sua sexualidade só trouxe a Teófilo angústias e sofrimento. O peso do preconceito dos pais e sobretudo da mãe, que desconfiava, o fizera covarde, “um homem escondido atrás de si próprio” e, por conta disso, escondia-se de si mesmo, olhando os outros rapazes sempre às escondidas, fingindo-se heterossexual para os colegas e evitando aqueles que julgava ter sua mesma opção sexual, ainda que desejasse com eles trocar sentimentos, descobertas, mágoas e desesperos. Desse modo Teófilo foi crescendo, completamente incompatível com seus pais, a procura de entender a si mesmo, achando que uma parte de si foi lhe arrancada, e se deixando levar pelas decisões autoritárias da mãe, até quando se descobriu noivo de Raquel, uma espécie de afilhada da mãe, que além de rica era órfã.

No entanto, tudo muda na vida do rapaz quando ele conhece Hugo, e farto de tudo decide assumir-se e desfazer o noivado. É neste exato momento de sua vida que Teófilo passa a percorrer o trecho mais penoso do seu caminho.

Resenha

Infográfico com resumo da nossa resenha. Clique para ampliar.
Elaboração: Eric Silva
Orientação sexual não é uma escolha, porque, se fosse ninguém escolheria o caminho mais difícil”. Essa é uma frase tirada da sinopse oficial do livro, mas que bem resume a ideia central deste que foi um dos últimos livros escritos por Rosa Lobato.

Por mais aberta que tenha se tornado a sociedade moderna, a orientação sexual ainda é um tabu para muitas pessoas e a homofobia é ainda a causa mortis de milhares de pessoas do grupo LGBTQ+. Contudo, são as violências silenciosas as que mais deixam marcas nessa parcela da população. Sentimento de inadequação, preconceito, humilhação, negação, falta de apoio e rejeição familiar são realidades vividas por milhões de homens e mulheres que se reconhecem como tendo uma orientação sexual diferente do heterossexualismo. Por isso, não ser heterossexual é das coisas mais difíceis que um ser humano pode enfrentar na vida. Assumir-se não precisaria ser, mas é um ato de bravura.

Mas a frase citada acima, revela algo que é bastante ignorado pela maioria das pessoas: não existe “opção sexual”, porque ninguém escolhe por quem sente atração, e orientação sexual é exatamente isso: a direção ou a inclinação do desejo afetivo e erótico de cada pessoa[1]. Ela é resultante de um conjunto de influências de ordem bio-psico-socio-culturais[2] pelo qual todos nós passamos (sejamos héteros, homos, bis, etc.) e que acaba por nos inclinar para esta ou aquela orientação sexual. Por isso, não existe opção. Ninguém escolhe sexualidade. É justamente o que acontece com Teófilo, o protagonista e narrador de A Alma Trocada.

O menino Teófilo era um garoto sem muita orientação e sem muito afeto vindo dos pais, porque deles só conhecia regras e proibições. Cresce sem entender quem é, sem entender suas preferências, acreditando estar incompleto, que há algo de errado consigo, que quando nasceu sua alma foi trocada pela de outra pessoa (daí vem o título do livro). Para tudo isso contribuiu a personalidade dos pais e em certa medida também a convivência com a agregada, Raquel.

A mãe, cheia de melindres e falsos pudores, era hipócrita, autoritária e abusiva. Queria determinar a vida do filho em todos os aspectos, casá-lo antes que alguém percebesse suas inclinações homossexuais. Na visão traçada pelo narrador, ela o odiava ou ao menos o desprezava, porque, segundo conta, morria de remorso pelo filho ter sido concebido no exato momento que, no Alentejo[3], morria o avô da futura criança.

Como o meu avô se passou desta para melhor com a sua segunda pataleta à meia-noite e quinze, é de supor que a minha mãe, tão cumpridora dos seus deveres de esposa, estivesse de perna aberta a receber no seu casto seio a semente de mim na hora em que seu pai desencarnou.

Contudo, dona Generosa, como se chamava, tinha particular amor por Raquel, a menina rica que ficara órfã depois de um acidente automobilístico e só tinha aqueles dois amigos dos pais para abrigá-la. Raquel passou a viver com a família desde então, tornou-se quase filha de Generosa, que por sua vez “cozinhou” o casamento dela com seu filho.

Raquel não era apaixonada por Teófilo e nem tinha muita estima por ele também, mas era feia e só tinha ao seu favor a fortuna deixada pelos pais. Aturava Teófilo, mas contraditoriamente soube ser vingativa após este desfazer o noivado.

O pai, economista, foi outro que não deu a devida atenção que Teófilo precisava para resolver seus conflitos internos. Simplesmente era indiferente ao filho e já o considerava “arquivo morto”, como se refere o próprio Teófilo, ou envergonhava-se de não ter um filho “viril” e por isso o ignorava.

“O meu pai reduz-se ao silêncio. Nem responde a estes desabafos da minha mãe. Já me deve ter arrumado no arquivo morto. Quando contribuiu para a compra do apartamento, das duas, uma: ou teve esperança que essa minha decisão de comprar casa fosse um sintoma das atitudes viris que se seguiriam ou viu nela uma forma de me afastar da família. Vá lá ser paneleiro para o raio que o parta, deve ter pensado. E artista e escritor e a puta que o pariu, desculpa Generosa, mas já que dizes que ele não é teu filho...”

Quando enfim Teófilo se assume, o pai é o primeiro a escorraçá-lo da família, com tanto ou mais desprezo que Generosa:

“[...] Quase duas semanas depois a Raquel telefonou-me a dizer que o meu pai queria falar comigo. No escritório. É claro que não ia querer que eu conspurcasse o sacrossanto lar onde se fornica de luz apagada. (Uma vez por ano? Duas? Nenhuma?) Lá fui.
Foi uma conversa suja. Não exactamente uma conversa, mais um monólogo em que me proibia de entrar lã em casa, de tentar ver a minha mãe que estava de cama na sequência de um ataque cardíaco e sobretudo quis deixar bem claro que o dinheiro que pusera na compra do meu apartamento passava a ser um empréstimo, do qual exigia um pagamento mensal. ”

Mas voltando ao protagonista e narrador...

Paisagem típica da região do Alentejo, Portugal,
onde se passa parte da narrativa. Wikimedia Commons.
O Teófilo adulto é poético, mas confuso e vacilante. Ainda procura se conhecer e se entender, ainda acredita ter tido uma parte de si furtada e que suas relações são pecados. A falta de apoio e amor familiar lhe fez se tornar avesso aos pais e sobretudo a Raquel. Afeto ele só encontra em Hugo, o tranquilo e paciente namorado que Teófilo no início da história insiste em manter em segredo por medo de se assumir; na avó materna, a amorosa e compreensiva Jacinta, única que abre sua casa para abrigar o neto em sua fase mais difícil; na empregada da mesma, Maria, sempre muito solícita e dedicada aos patrões; e em Tinito, o afilhado e empregado (espécie de faz-tudo) de Jacinta, descendente de ciganos, abandonado pelos pais ainda criança, mas que se tornou um homem atraente, sem-vergonha e xucro, além da principal perdição de Teófilo.

Rua típica da região do Alentejo, Portugal,
onde se passa parte da narrativa. Wikimedia Commons.
É só com o tempo e com os impulsos da vida (empurrões, na verdade) que Teófilo vai se emancipando. Revela sua orientação sexual para a noiva, desfazendo o noivado, e rompe com os pais que não aceitam sua posição. Abandona a casa, o que lhe causa um alívio imediato, e vai se redescobrindo na vida com Hugo e nas idas ao monte[4] (propriedade rural) da avó na região do Alentejo , onde Tinito atormenta seus dias. Passa também a se dedicar a escrita de um livro e a aproveitar a vida tranquila ao lado de Hugo. É essa nova fase que toma a maior parte do enredo da narrativa, é nela também uma série de complicações e até situações aflitivas e conflitivas começam a aparecer.

A Alma Trocada foi o meu primeiro contato sério com a literatura portuguesa. Achei que o faria com Saramago, mas ainda estou adiando esse encontro. E para minha surpresa meu primeiro contato com a literatura lusitana foi com um romance moderno e atual, que aborda uma importante questão contemporânea e que convida a reflexão acerca dos desafios e tabus que os grupos LGBTQ+ de todo o planeta enfrentam diariamente em suas vidas particulares, em um mundo que ainda resiste à diversidade.

O trabalho linguístico de Rosa Lobato neste livro não é dos mais fácil de ler. Os pensamentos e comentários do narrador se misturam as descrições e narrações dos fatos tornando confusa algumas passagens – principal crítica negativa que vi nas poucas resenhas disponíveis na internet. Somam-se a esses fatores: a barreira da língua (o português lusitano consegue ser bem distinto do nosso em muitos momentos) e abarreira cultural, haja vista que o livro faz referências a muitas tradições lusitanas e a outros elementos de variados gêneros que são desconhecidos dos brasileiros. Isso acaba por tornar a leitura um tanto cansativa, principalmente em partes mais paradas ou monótonas do enredo.

Os personagens são bem ecléticos. Em sua maioria bem descritos e aprofundados pelo narrador. Outros são marcantes e intenso como Tinito. Há também os mais coadjuvantes como Hugo e Maria, além da família vizinha do casal gay que se integra não só à trama como também à vida dos protagonistas.

O livro é pequeno (188 páginas), mas a leitura não se faz muito fluida e rápida pelo trabalho linguístico já citado. Contudo é uma obra que alterna momentos intenso e monótonos, deixando a coisa bastante equilibrada em alguns momentos, e mais arrastada em outros.

Sugiro a leitura para quem gosta da temática e para quem quer saber um pouco mais sobre os desafios enfrentados pela comunidade LGBTQ+. Mas mais do que isso esse é um livro sensível que fala sobre identidade, sobre a busca da definição de uma identidade, a de Teófilo, identidade essa que, obviamente, excede e não se limita a sua orientação homossexual.

Acredito que você leitor também será desafiado, em primeira instância, pela linguagem lusitana e pela escrita de Rosa Lobato. Em segunda instância, desafiado a repensar muito do que sabe ou imagina saber sobre a comunidade gay. Eu, da minha parte, estou às voltas para conseguir Os Pássaros de Seda, outro livro de Rosa com temática bem distinta, mas que atiçou a minha curiosidade.

A edição lida é da Editora ASA, do ano de 2007 e possui 188 páginas.

Sobre o autor

Rosa Maria de Bettencourt Rodrigues Lobato de Faria nasceu em Lisboa, Portugal, em 20 de abril de 1932. Foi uma atriz, escritora, romancista, poetisa, contista, dramaturga e guionista de novelas e séries portuguesa.

Depois de ter sido dona de casa e empregada numa loja de eletrodomésticos, teve a sua primeira experiência como atriz por volta dos 40 anos, quando participou no filme Perdido por Cem... (1973).
Na escrita, ganhou projeção como letrista de canções, depois de obter, já nos anos 90, o primeiro lugar no Festival RTP da Canção com Amor de Água Fresca (1992), interpretado por Dina.

Foi também nos anos 1990 que surgiu como autora de romances — estreou-se com O Pranto de Lúcifer (1995), seguindo-se, a um ritmo de uma publicação por ano, os títulos Os Pássaros de Seda (1996), Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), Romance de Cordélia (1998), O Prenúncio das Águas (1999) — ganhador do Prêmio Máxima de Literatura em 2000 — A Trança de Inês (2001) e, subsequentemente, O Sétimo Véu (2003), Os Linhos da Avó (2004) e A Flor do Sal (2005).

Faleceu em Lisboa, no dia 2 de fevereiro de 2010, aos 77 anos, vítima de uma anemia,

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.




[1]Disponível em: <http://www.adolescencia.org.br/site-pt-br/orientacao-sexual>. Acesso em: 30 de março de 2020.
[2]ABDO, Carmita. Não é opção, é orientação. O Globo: São Paulo, 2014. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/nao-opcao-orientacao-13546739>. Acesso em: 30 de março de 2020.
[3]Região do centro-sul de Portugal.
[4]Monte é um regionalismo português que significaria uma propriedade rural na região do Alentejo. (O mesmo que HERDADE), ou ainda o conjunto das casas de uma herdade no Alentejo, geralmente numa elevação, onde se situa a moradia e outras dependências. (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens populares

Conhecer Tudo