Por Eric Silva
Nota: todos os termos
com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da
postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Com a chegada das Desventuras em Série na Netflix e vendo
o entusiasmo de um dos meu alunos quando este decidiu começar a leitura da
série de Lemony Snicket (ou Daniel Handler) resolvi retornar a minha própria leitura
da série que estava parada desde março do ano passado. Na sequencia o próximo
livro que deveria ler era A serraria
Baixo-Astral, quarto livro da série que narra as desventuras dos irmãos Baudelaire
com um novo e péssimo tutor que os poriam em mais uma situação complicada e
perigosa. Para mim uma leitura com um enredo bastante previsível e com muitas
fraquezas, mas que ao mesmo tempo trouxe à tona o tema da exploração do
trabalho infantil e a delicada questão da dignidade humana do trabalhador.
Sinopse
Depois dos trágicos
incidentes ocorridos às margens do lago Lacrimoso que terminaram com o fim de
mais um tutor dos irmãos Baudelaire e uma nova fuga do desprezível Conde Olaf, Sr.
Poe conduz os jovens irmãos para mais um novo tutor, Senhor, o dono de uma
serraria na cidade de Paltryville. Em Paltryville os irmãos Baudelaire conhecem
a fatigante e explorada vida dos trabalhadores da serraria Alto-Astral e são
forçados pelo seu tutor a trabalharem na perigosa profissão, sob o regime
autoritário do sádico capataz Flacutono em troca de serem mantidos longe das
investidas do Conde Olaf.
Resenha
Desde março de 2016 que eu
não pegava nos livros de Desventuras em Série para dar continuidade a minha
leitura que havia parado com os três
primeiros livros da série que correspondiam ao
roteiro da versão fílmica da série. Mas depois que Reinaldo, um dos meus alunos
e leitor voraz antenado com o mundo geek e pop, começou a ler a série e a
Netflix anunciou uma nova série baseada nos livros de Snicket, resolvi retornar
aos livros de Desventuras. E só para constar, tenho minhas desconfianças de que
a série da Netflix possa dar mais alma a narrativa das desventuras dos irmãos Baudelaire
do que os próprios livros de Snicket.
No quarto livro da série,
titulado nos Estados Unidos como The
Miserable Mill (algo como O Miserável Moinho em tradução livre) e traduzida
no Brasil como A Serraria Baixo-Astral, os
irmãos Baudelaire são entregues na cidade de Paltryville a um novo tutor.
Senhor, como é chamado o novo
tutor uma vez que ninguém conseguia pronunciar seu verdadeiro nome, era
sócio-diretor da serraria Alto-Astral e decide que a condição para que ele
mantivesse os irmãos em segurança era os mesmos trabalharem na serraria na
condição de empregados. Sem saber dessas condições (ou talvez não, quem sabe)
Poe envia os irmãos para Senhor e os jovens Baudelaire são obrigados a se
submeter a condições precárias de um trabalho inadequado para crianças (se é
que existe um trabalho adequado para crianças) sob o comando de um capataz sádico
e cruel.
Na serraria Violet, Klaus e
Sunny descobre os árduos afazeres e as lamentáveis condições de trabalho dos
funcionário da Alto-Astral que, além de viverem amontoados em beliches de um dormitório
sem janelas, só recebiam chicletes no almoço e tickets como pagamento. Contudo
o mais desesperador para as três crianças é a eminente possibilidade do aparecimento
inesperado de Olaf e de seus compassas que poderiam surgir a qualquer momento com
mais um de seus planos diabólicos.
Bem, não sou bem um fã da
série, mas admiro algum de seus principais aspectos: o seu estilo gótico, a
escrita sincera do autor, as paisagens incríveis em cenários surreais e os
personagens exóticos e absurdos {se
quiserem conferir a resenha dos outros três livros link aqui}. Além disso a versão da história no filme estrelado por
Jim Carrey é muito boa – a verdade é que comecei a ler por conta do filme. Por outro lado, em muitos momento Desventuras
em Série assume uma monotonia e uma repetição da lógica dos acontecimentos que
me incomodam e tornam a história muito previsível à medida que vamos avançando
de um volume para outro. Mas falemos do quarto volume que é o primeiro dos
livros da série que não fizeram parte do roteiro da versão para o cinema.
Começando pelos pontos
negativos, achei que A Serraria
Baixo-Astral além de possuir uma história de pouca complexidade, também traz
para o leitor da série um enredo fraco e bastante previsível. À parte algumas
coisas que irei discutir a seguir sobre o livro, a narrativa do quarto volume não
tem muitas emoções, ou muito movimento. [SPOILER em itálico] Logo no início Lemony nos chama a atenção
para uma casa em particular que possui o grotesco formato de um olho – a marca
de Conde Olaf – e essa decisão, de cara, nos entrega boa parte da trama, bem
como a localização do Conde. Além
disso, fica óbvio, desde o começo, que o capataz era o próprio ou tinha
relações com o Conde Olaf. Isso já minou boa parte do meu interesse.
Mais à frente somos
apresentados aos dramas dos trabalhadores da serraria, à personalidade
exploradora do tutor e ao capataz intransigente e de péssima índole, porém as
complicações que daí se seguem e que acabam levando os irmãos ao Conde – [SPOILER
em itálico] e aqui eu me refiro aos
eventos relacionados aos incidentes com os óculos de Klaus e de sua consequente
hipnose – foram fraquíssimas, na minha opinião. Ademais, o livro de Snicket
continua apostando na já desgastada fórmula de que os adultos só passam a
acreditar nos irmãos quando tudo se complica e o Conde mostra sua cara. Se isso
não bastasse ainda tem a cansativa e completa falta de tato por parte do Sr. Poe
que sempre deixa o Conde fugir quando finalmente o tem encurralado.
Porém o livro não foi de todo
ruim. Em primeiro lugar porque partes do desfecho, ainda mais macabro do que no
terceiro livro, compensa um pouco as fraquezas da narrativa, entretanto alguns
pontos extremamente inverossímeis meio que enfraquecem essa parte da história e
por isso o desfecho também não é o ponto alto do livro na minha opinião. O ponto alto está no mistério que envolve
uma de suas personagens e no valor social da narrativa que, mesmo não sendo
esse o objetivo, nos faz pensar em algumas questões como o trabalho análogo à
escravidão e o trabalho infantil.
O primeiro ponto que me
deixou curioso na história foi o novo tutor e pergunto-me porque o autor fez
questão de ocultar completamente a sua identidade. Senhor é retratado na
história como um homem baixo e cujo rosto sempre ficava oculto por trás da
nuvem de fumaça que vinha de seu charuto. Uma caricatura dos empresários
magnatas que obtém seus lucros da exploração do trabalho e da destruição da
natureza. Contudo, a insistência de
Lemony de esconder sua identidade por trás de um nome impronunciável e de um
rosto encoberto pela fumaça inverossímil de um charuto é no mínimo intrigante.
Será Senhor uma futura peça-chave da série?
Mas o tutor dos infortunados
irmãos ainda o mais estranho e distante de todos os anteriores, é também um
homem autoritário e explorador que impõe aos jovens um regime de trabalho ainda
mais cruel e perigoso do que aquele imposto por conde Olaf no primeiro livro,
Mau Começo. Além de incapaz de demonstrar qualquer afeição pelas crianças ele dispensa
aos Baudelaire o mesmo tratamento grosseiro que dava aos seus empregados e encara
a presença dos irmãos na serraria como apenas mais uma transação de negócios em
que ele oferecia uma suposta proteção em troca de trabalho não remunerado.
Tamanho era o desprezo e
indiferença que Senhor tinha pelas crianças, considerando-as um estorvo, que
chega ao ponto de decidir que as entregaria a uma estranha que conhecera em um
almoço, apenas porque esta manifestara em seu dialogo o desejo de adotar
crianças. Se isso já não bastasse, o sócio de Senhor, Charles, demonstra maior
consciência e até tenta ajudar as crianças da sua maneira, mas seu temor em
irritar o sócio é tão grande que, num ato de covardia, o mesmo acaba se
submetendo a vontade absoluta de Senhor e é conivente com os excessos e a
exploração que ocorre no estabelecimento.
Mas com certeza o aspecto mais importante e interessante
que encontrei neste livro é o que parece ser uma denúncia nas entrelinhas do
trabalho infantil e do trabalho análogo a escravidão.
Polícia Federal Brasileira em operação de fiscalização para combate ao trabalho escravo ou análogo à escravidão. Imagem: Portal/MTe. |
Algo que é de conhecimentos
de poucos, infelizmente, é que a escravidão não desapareceu completamente do mundo,
e mesmo no Brasil ela ainda existe, contudo, não mais nos mesmos modos que
correra no tempo dos negros. Apenas seu modus
operandi se modificou, bem como a categoria escravo.
Hoje no nosso país a
escravidão, ou melhor, o trabalho análogo a escravidão é entendido assim como
está disposto no artigo 149 do Código Penal Brasileiro: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a
trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalhando, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Ou seja, trabalho escravo é
toda atividade em que o patrão impõe aos seus trabalhadores: trabalho forçado, obrigando-o “a se submeter a condições de trabalho em que
é explorado, sem possibilidade de deixar o local seja por causa de dívidas,
seja por ameaça e violências física ou psicológica”; jornada exaustiva “que vai
além de horas extras e coloca em risco a integridade física do trabalhador, já
que o intervalo entre as jornadas é insuficiente para a reposição de energia”,
servidão por dívida e condições degradantes como alojamento
precário, falta de assistência médica, péssima alimentação, falta de saneamento
básico e água potável, maus-tratos (incluindo humilhações verbais) e uso de
violência[1].
As condições de trabalho na
serraria Alto-Astral a que somos apresentados não fogem muito ao que a lei,
pelo menos a brasileira, entende como trabalho escravo. Primeiro, o alojamento
onde TODOS os empregados da serraria de Senhor vivem não possui uma única
janela para garantir nem ventilação nem a iluminação natural do lugar, o que
deixa o ambiente constantemente com o cheiro de mofo. Em segundo lugar, os
operários da serraria não recebem salário pelo seu trabalho, em lugar disso são
pagos com tickets absurdos como “vinte por cento de desconto num xampu no Salão
de Cabelereiro do Sam”, ou tickets que valiam chá gelado, ou ainda pior,
“compre dois banjos e ganhe um de graça”. Em terceiro lugar, a longuíssima jornada
de trabalho começa sem o desjejum e ao som do panelaço e das ofensas do capataz.
A primeira refeição acontece apenas ao meio-dia quando cada um recebe um
chiclete como almoço e cinco minutos para fazerem a refeição antes de
retornarem ao trabalho. A única alimentação mais substancial que os empregados
recebem é o jantar ao fim do expediente e que consiste, em geral, em carne com
legumes cozidos. É preciso dizer mais alguma coisa?
Mas se isso não bastasse,
Senhor obriga os irmãos Baudelaire a trabalhar junto com os adultos em tarefas
como operar máquinas perigosas, lidar com instrumentos afiados de decorticação
(processo de retirada da casca, córtice ou cortiça de árvores, arbustos etc.),
carregamento de peso, no caso toras de madeira, e o trabalho com a serra que
transformava a tora em tábuas. Trocando
em miúdos, trabalho infantil, insalubre e perigoso.
Todas estas situações absurdas
me levaram a crer que um dos objetivos do autor seja denunciar, ao seu modo e
nas entre linhas de sua narração, bem como na fala de alguns poucos personagens,
a exploração do trabalho que beira ao estado de escravidão, e, principalmente,
denunciar o trabalho infantil, ambas realidades muito contrastantes com o
propalado discurso dos direitos humanos. Inclusive, a cena em que Sunny, a
menor dos irmãos, por não ter como manusear decorticador passa a retirar a
casca das toras com os próprio dentes é a mais revoltante.
Enfim, A Serraria
Baixo-Astral é um livro que não me agradou muito por sua narrativa em
muitos momentos fraca e previsível, mas que, por outro lado, possui um peso
social considerável por nos fazer pensar que, à parte os absurdos e exageros caricaturais
que são a marca registrada da série, no mundo do trabalho ainda existe uma
série de injustiças e crimes que são cometidos contra a dignidade humana e
contra o direito à infância.
A edição lida é da Editora Companhia
das Letras, do ano de 2002 e possui 176 páginas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário