Por Eric Silva
“A natureza não para durante o inverno. Mesmo as plantas
ocultas sobre a neve se preparam para brotar de novo, e esse período de sono e
de recolhimento é parte do drama de toda existência. Acostumados a viver em seu
próprio ritmo, os homens muitas vezes não notam essas mudanças, que, no
entanto, ocorrem também com cada um deles. E, para os poucos que se deixam
guiar pelo ciclo da vida, elas acostumam ser percebidas a partir do primeiro
sinal”
(O Caçador, Ana Lúcia Merege)
Chegamos a 2017, o #AnoDoBrasil, e para inaugurar a
campanha que homenageará a literatura do nosso país escolhemos um livro que li
ainda em 2016, mas que é especialíssimo: O
Caçador, livro de estreia da escritora carioca Ana Lúcia Merege. Com uma
narrativa rápida, mas profunda, esta releitura do conto da Branca de Neve vai
além do conto e explora ao máximo a criatividade e o talento narrativo que são
próprios da escritora, dando vida e continuidade a história do caçador que
salvara a princesa, mas cujo destino fora esquecido pelo próprio conto que lhe
deu vida. Por ser um livro bonito e de um encanto único, que ele será o
primeiro ponto no itinerário da nossa nova campanha.
Sinopse
Solitário na floresta o
caçador só ouvia vozes humanas quando ia ao castelo entregar a carne e as peles
que caçavam para a rainha, mas mesmo em sua vida reclusa e controlada pelos
ritmos da natureza, ele vivia tranquilo e era feliz nunca tendo sentido falta
de nada que a floresta não pudesse lhe prover. Tudo muda porém quando a rainha
exige sua presença e o incube de uma tarefa tenebrosa: levar a princesa a
floresta e lá, secretamente, matá-la, trazendo como prova o coração da garota.
Mesmo tendo tentado cumprir
sua palavra com a rainha, o jovem caçador fraqueja e poupa a vida da princesa.
Em vez de levar à rainha o coração da garota entrega à bruxa o coração de um
animal da floresta e é aí que sua história de desventuras começa, em uma
caminhada errante por florestas, cidades e aldeias, entrecortando e testemunhando
histórias, as mais fantásticas, até que conheça o seu verdadeiro destino.
Resenha
Fazer releituras dos
clássicos contos de fadas é algo que vem se tornando frequente nos últimos
tempos. Seja para tornar os velhos contos em algo mais verossímil e realista
como foi o caso do filme Para Sempre
Cinderela, do diretor Andy Tennant, ou para transformá-los em algo
deslocado e que pouco tem a ver com o original, como é o caso do filme João e Maria: Caçadores de Bruxas, de
Tommy Wirkola, em que as crianças rejeitadas e abandonadas na floresta crescem
e se tornam caçadores de bruxas. Há ainda aquelas releituras que buscaram na
fusão de vários contos uma narrativa nova e as vezes a partir de um olhar que
se quer mais moderno, como vemos em A
Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman. Porém
mais do que buscar inovar, releituras são desafios que exigem do escritor
criatividade e talento narrativo, porque comparações são inevitáveis e
resistências são comuns, é aí que poucas são as fórmulas que realmente dão
certo em tornar a releitura uma história tão boa quanto o original ou até
melhor.
Por sua vez, a autora
brasileira Ana Lúcia Merege buscou seguir caminhos próprios para compor a
releitura do conto da Branca de Neve em seu primeiro livro de ficção, O Caçador. Neste livro, ao contrário de modificar profundamente a história original,
a autora buscou ampliá-la, dando destino, alma e personalidade a um personagem
cuja participação pode ser considerada central para que a história siga para
seu desfecho, mas cujo destino sempre foi ignorado: o caçador.
Acredito que todos devam
saber que, no conto original da Branca de Neve, o caçador era apenas mais um
homem que vivia de seu trabalho penoso e solitário na floresta, mas que para
seu infortúnio fora escolhido pela rainha para ser o algoz da princesa, por
quem sua majestade nutria um ódio e inveja sem limites. Porém apiedando-se da
garota o homem decide poupar a princesa e mandá-la embora para a floresta. Para
prestar contas de sua missão à rainha, o caçador leva a ela o coração de um
animal como se este pertencesse a princesa e aí termina a participação daquele
homem sem nome e sem passado.
Em O Caçador, Ana Lúcia buscou dar um rosto, um passado e um futuro a
este personagem, dotando-o de alma e sentimentos. É pegados pela mão da autora que vamos sendo guiados pela história das
desventuras do caçador de Branca de Neve, passando por cidades, aldeias e
florestas, vivendo entre os homens e os lobos, naquele que parece ser um dos
melhores livros da escritora.
O
personagem
Ana Lúcia traz para a imagem do caçador um olhar mais humanizado, sem, no entanto, negar a forte integração deste com a natureza selvagem das florestas. |
Uma coisa que me inquietou
logo no começo da leitura foi não saber a razão da autora não ter dado um nome
ao seu personagem principal, como é comum em qualquer livro. Curioso fui
perguntar diretamente a escritora. Atenciosa, Ana me respondeu no mesmo dia e
explicou que seus personagens eram arquétipos e que dar-lhes nome seria de
alguma forma reduzi-los.
Pensei um pouco naquela
resposta tentando entendê-la e foi aí que a ficha caiu: se personagens sem
nomes eram incomuns nos romances, não o eram nos contos de fada – Ana queria
preservar a natureza original do conto. Acho que, de tanto tempo que passei sem
ler os clássicos contos de Andersen e dos irmãos Grimm, já havia me esquecido
que esta era uma característica fundamental deste gênero.
Em O Caçador os príncipes não são os grandes heróis da história. |
Predileto
O Caçador é o
terceiro livro da autora que leio, o primeiro foi O Castelo das Águias e depois Anna e a Trilha Secreta, e nessas leituras uma coisa que tenho apreciado
bastante é a forma como a autora escreve, talento que O Caçador deixa explícito de forma contundente.
Ana Lúcia tem um dom todo especial de articular as
palavras, o que ela faz com maestria, narrando os fatos com beleza, segurança e
naturalidade e fazendo da leitura algo agradável e envolvente.
Assim como nos velhos contos
de fada, O Caçador é um livro de
poucas falas deixando quase exclusivamente ao narrador o papel mais importante
de nos guiar pela história. Mesmo sendo seu livro de estreia, a obra já expõe a
maturidade da autora e deixa extravasar todo o seu talento narrativo,
aliando-os a uma boa história, de enredo nem um pouco previsível e com uma narração em muitos pontos carregados
de um lirismo único como é visível na citação do começo desta resenha. Além
disso, a medida que a história do caçador vai se desenrolando, suas aventuras
vão atravessando outros contos e se entremeando por caminhos improváveis.
Estou lendo também o livro A Bela e a Adormecida, de Neil Gaiman, e
que como já afirmei também é uma releitura de contos de fadas recentemente
publicada pela editora Rocco em uma edição luxuosa e lindíssima. Mas afirmo com toda a segurança e sem
presunção, que quando confrontei o livro do autor britânico com o livro da Ana
Lúcia, achei o livro da autora brasileira de qualidade narrativa bem superior.
Ana foi cuidadosa em todos os detalhes, criou um personagem cativante e O Caçador é um livro que dificilmente se
preveria o desfecho.
A autora |
A releitura de O
Caçador está perfeita, sem excessos, com uma boa dosagem de realismo e
magia e, principalmente, deixando transparecer todo o talento da autora para a
narração.
A obra chegou a mim através de uma doação da autora para
a biblioteca da Filarmônica de minha cidade. Logo que o tive em mãos senti que
ele seria especial e a leitura só confirmou o que minha intuição disse primeiro.
Desde já O Caçador é, dentre os
livros que já li de Ana Lúcia, o meu predileto.
A edição lida é da Franco
Editora, com ilustrações de Neli Aquino, do ano de 2009 e possui 100 páginas.
Para o pessoal da Biblioteca da Filarmônica: o livro já estará acessível a
todos ainda este mês.
Quer saber mais sobre a
autora? Confira nossa postagem sobre os autores que estamos lendo na campanha (CliqueAqui).
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Muito obrigada! Uma resenha como essa é a melhor forma de começar o ano. Espero que mais pessoas procurem e curtam O Caçador, e meus outros livros também!
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirReconheço que não tenho tendencia a ler livros nacionais, mas sua resenha me deixou com vontade de ler este!
Pois leia, o livro é muito bom. Esta é minha modesta opinião. Por isso escolhi ele para abrir a campanha de 2017.
ExcluirEu queria saber qual é o gênero textual? do conto O Caçador...
ResponderExcluirPela extensão e número reduzido de personagens, uma novela.
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