Por Eric Silva.
Multiculturalismo, identidade étnica e defesa da natureza
em um cenário de fantasia e magia. Mais do que uma simples narrativa do gênero
fantasia, O Castelo das Águias, livro da autora brasileira Ana Lúcia Merege,
traz em seu bojo uma multiplicidade de temas, alguns de forma não muito
explícita, mas que vão além da costumeira atmosfera que encontramos nos livros
do gênero. São discussões que podem chamar a atenção daqueles leitores mais
antenados com questões como cultura, identidade, docência e ambientalismo, mas
que vão se mostrando subjetivamente presentes na narrativa, permeando a
construção da personalidade e da identidade de suas personagens.
Sinopse
Ambientado em um mundo mágico
onde elfos e humanos convivem sob as mesmas leis e compõem uma sociedade onde a
magia é a principal marca e o elemento de confluência entre povos tão
diferentes, O Castelo das Águias,
narra a história de Anna de Bryle, uma meio-humana criada em uma tribo de
elfos, mas que ingressava em uma das mais respeitadas escolas de magia de seu
país como Mestra de Sagas e vê sua vida mudada por completo pelas pessoas
daquele lugar tão acolhedor, mas também difícil.
Saindo pela primeira vez de
sua comunidade, Anna se sente entusiasmada com a oportunidade que lhe é dada
pelo idealizador da escola, o Mestre Camdell, mas experimenta também o peso das
diferenças culturais entre a vida a qual estava acostumada com seu povo e da
tarefa desafiadora de lecionar. Somado a essas questões, a nova professora
ainda tem que conciliar suas próprias questões com as diferentes personalidades
dos colegas, sobretudo, da imperiosa elfa Thalia e do misterioso Kieran de
Scyllix. Mas se isso já não bastasse, a moça ainda se vê envolvida com questões
político-militares do Conselho de Guerra das Terras Férteis que porão em risco
a liberdade e sobrevivência das poderosas águias guerreiras que dão nome ao
castelo.
Resenha
Primeiro livro da série
Athelgard, em Castelo das Águias, Ana
Lúcia, se preocupa em apresentar ao seu leitor o universo por ela criada. Vamos
aos poucos, pelo olhar da protagonista Anna, conhecendo a mistura étnica que
compõe a sociedade élfica e humana das Terras Férteis de Athelgard, as crenças
religiosas, os costumes culturais de cada povo, os conflitos comuns que se
davam nas fronteiras e a importância da magia naquela estrutura social.
Já dentro dos muros da escola
de magia também vamos conhecemos a estrutura das diferentes formas daquela arte
e a importância que a mente, o poder da palavra e o conhecimento das sagas dos
heróis possuem para sua realização. Diria eu, que o Castelo é mais um livro de
apresentação da série, de seu mundo e de seus personagens. Como tal ele acabou
abrindo espaço para algumas questões muito interessantes e quero pontuar
algumas delas ao longo desta resenha.
Referências
e originalidade
Quem lê o livro de Ana Lúcia de imediato percebe algumas
de suas referências, sobretudo, o universo de Harry Potter e alguns poucos
elementos de O Senhor dos Anéis. Não sei
se a autora deliberadamente se inspirou nestes livros, mas em alguns pontos as
histórias se aproximam, sobretudo na ideia de uma escola de magia e seu
singular séquito de professores, presente na série da britânica J. K. Rowling,
e as criaturas mágicas representadas pelos elfos, cuja presença é marcante no
livro de J. R. R. Tolkien.
A autora, Ana Lúcia Merege, é fluminense. Imagem: Biblioteca Nacional. |
Porém, a autora com criatividade soube demonstrar sua
originalidade ao se concentrar em um dos
mestres da escola, indo em sentido contrário ao que vemos em Harry Potter, cuja
história se encontra centrada nas experiências e aventuras de um grupo de
estudantes da escola de magia idealizada por Rowling. Mas a originalidade do
livro não para por ir e a criatividade da autora desponta, sobretudo, ao criar
um universo de convivência íntima e amistosa entre criaturas mágicas e humanos
– muito perceptível na sociedade multicultural que é formada na cidade de
Vrindavahn – e ao criar uma personagem com referências étnicas tão fortes como
as existentes em Anna.
Quem pensa, logo ao iniciar o
livro, que a história será uma reprodução de tudo que já foi visto nos livros
citados descobre o engano ao conhecer mais profundamente as personagens e a
bagagem por elas trazidas. É certo que
há muitas semelhanças, mas quero aqui ressaltar o que este livro tem de
diferente.
Multiculturalismo,
miscigenação e identidade étnica
Uma primeira marca de O
Castelo das Águias que chamou minha atenção foi o multiculturalismo presente na
sociedade idealizada pela autora. Ana Lúcia cria uma sociedade onde os costumes
e crenças de seres humanos e elfos se misturam.
Multiculturalismo, em interpretação livre do rigor
acadêmico, significa a presença de diversas culturas no seio de uma mesma
sociedade ou coexistindo em uma mesma região. No livro temos algo parecido, marcadamente na cidade de Vrindavahn.
Quando Anna chega a cidade e caminha pelas suas ruas, ela inevitavelmente tece
uma comparação entre os costumes de seu povo e os elementos que ela
empiricamente podia observar no mercado da cidade. Mas, mais do que isso, ela
destaca o quanto elementos culturais de ambos os grupos se mesclavam ali:
“As roupas das pessoas também eram diferentes, mais curtas e leves do que as usadas em Lardale. Os delicados bordados figurativos, comuns entre os elfos brilhantes, estavam nos vestidos das moças humanas, e alguns rapazes dispensavam calças e calções em favor de túnicas na altura dos joelhos. Isso era muito mais comum entre os que pareciam abastados, fazendo com que eu me indagasse se, bem lá no fundo, não desejavam ser como a nobreza élfica. Ou aquela mistura de estilos era mais uma consequência natural do convívio entre as raças?”
Nesta passagem Anna constata
a partir do vestuário a existência desta convivência de costumes e que se
miscigenam em um todo cultural, mas que em parte também se diferia da região de
onde a própria Anna vinha.
Indo mais além, essa
miscigenação cultural me pareceu existir também no campo religioso em que um
mesmo templo abriga diferentes cultos. Trata-se do Templo do Deus Único. Na narrativa, Anna explica que a religião
professada pelo templo, apesar de bastante estrita, sobretudo para magos, era,
ali em Vrindavahn, bem mais flexível quanto a magia e ao pluralismo que ali
existia. Assim, os jovens magos seguiam aquela religião por duas razões:
"A primeira: a Magia da Forma e Pensamento podia ser praticada independentemente de qualquer crença. E a segunda, muito importante para quem se propunha a conhecer as Terras Férteis: a convivência de longa data com os elfos brilhantes, ou a necessidade de partilhar o território com eles, fazia com que os preceitos do Templo fossem mais flexíveis ali do que em outras regiões".
Estrita ou não o certo é que
o templo abrigava dentro de si diferentes cultos a uma multiplicidade de deuses,
ainda que trouxesse o nome de Deus Único.
Essa foi para mim a maior prova de
multiculturalismo na história e convivência entre culturas diferentes, mas não
foi a única.
É válido ressaltar também que
esta convivência está também no ensino da Escola de Magia que não se restringe
ao estudo puro desta, mas associado às artes dos saltimbancos, músicos e
artesões humanos, em uma integração de áreas de conhecimento no qual, elfos,
meio-humanos e humanos estudam juntos elementos de ambas as culturas e com
mestres das duas raças.
Mas, em se tratando de cultura, o que mais me chamou a
atenção foi a identidade étnica muito forte trazida pela protagonista Anna.
Anna é meio-humana, o que
significa que só uma parte do seu sangue é élfico e, no seu caso, uma parte
muito pequena, mas foi criada por sua família em uma tribo élfica no coração da
floresta dos Teixos. Apesar da cautela inicial que os elfos tinham ao se
aproximar dela quando ainda era menina, Anna foi pouco a pouco sendo integrada
a vida comunitária e vista como um igual enquanto crescia envolvida pelos
costumes e tradições de sua tribo. Se isso não bastasse, a moça ainda sob
influência da prima Maryan se apaixona pelas histórias dos seus antepassados e
passa a escrever dezenas de narrativas contadas pelos mais velhos de seu povo. Essa
experiência, sem dúvida, foi crucial para que Anna se tornasse Mestre de Sagas,
mas sobretudo, para que ela criasse uma forte identidade com o seu povo, uma
identidade étnica forte que ela defende, valoriza ao passo que a define como
pessoa. Não é de surpreender que ela levasse consigo para a Escola de Magia
toda essa carga simbólica.
A identidade étnica de Anna
aparece por todo o livro, nos seus talismãs, no estranhamento que ela demonstra
em relação a algumas práticas culturais das novas pessoas que conhece, na sua
prática pedagógica, mas aparecerá mais fortemente nos capítulos 10 e 11 onde a
personagem também descobre que dentro de si nascia uma nova identificação, com
a Escola e com seu trabalho, que reforça sua identidade como Mestre de Sagas.
Considero Anna a melhor personagem do livro, uma pessoa
notável pelo seu caráter e pela sua força que se mistura a uma certa
fragilidade que a torna um personagem complexo. Mas será essa forte identidade étnica, sua
identificação com seu povo e com a vida na natureza que a tornará ferramenta
especial na luta pela preservação das águias que vivem ao redor do castelo.
Luta
pela preservação da natureza
Militarismo, política e
defesa da natureza (uso consciente e respeitoso da natureza) também são marcas
interessantes do livro.
Na floresta ao redor do
castelo vivem águias especiais que, por beberem de uma determinada fonte de
água, podem ser transformadas em poderosas águias de combate. O problema está
na impossibilidade de mantê-las por muito tempo distante da fonte, o que
invariavelmente resulta no enfraquecimento e morte das aves.
Contudo, mesmo tendo
conhecimento das implicações e do sofrimento que pode ser gerado às aves, o
Conselho da cidade militar de Scyllix envia à Vrindavahn uma comitiva
responsável por pleitear do Conselho de Vrindavahn a autorização para levar
consigo algumas das aves. Como compensação o grupo promete desenvolver uma
técnica que permitisse às mesmas sobreviverem longe da fonte e propõem guarnecer
àquela e às outras cidades com as aves guerreiras que fossem desenvolvidas pela
experiência.
De imediato, os professores
da Escola de Magia e principalmente o Mago Kieran, que outrora foi o último
Mestre de Águias de Scyllix e conhecia os riscos e as grandes chances de
insucesso do projeto, se opõem aos intentos do conselho daquela cidade e lutam
para convencer o Conselho de Vrindavahn a não ceder à proposta. É entorno desta
problemática que gira em grande parte o enredo de O Castelo das Águias.
O que me chama a atenção na problemática do livro é o seu forte cunho
de luta pela preservação da natureza, contrário aos fins militaristas que
exporiam as aves ao sofrimento e morte. É notável também a dedicação dos magos
à defesa das aves e a forma como argumentam contra um jogo militar e político
que beneficiaria alguns poucos em detrimento do bem-estar dos animais.
Trata-se de um tema importante para o nosso
mundo real, onde centenas de espécies animais e vegetais são extintos todos os
anos devido às ações predatórias do ser humano, que visa seus interesses
próprios e desrespeitam o direito natural dos animais de serem livres. Temos um
mal costume de pensar nos animais como recursos, quando estes são seres vivos
que necessitam de proteção.
Surpreendeu-me que esta temática fosse posta em um livro do gênero de O Castelo das Águias, que quase sempre
se concentram e se delineiam apenas como livros épicos ou de guerras mágicas, e
isso me fez lembrar do filme Avatar,
onde algo parecido é feito. Contudo, encaro o enredo de Avatar como ficção científica e não como fantasia, o que demonstra
mais uma originalidade do livro.
Docência
e Narrativa Autobiográfica
Por fim, o último destaque
que faço do livro está na prática docente de Anna.
Sou professor e universitário
e como tal estou envolvido em diversas questões da área. Como tal, chamou minha
atenção a prática de ensino de Anna que é condenada por uma das professoras.
Anna como professora de Sagas
valoriza as narrativas de seus alunos, dos demais povos, inclusive o seu,
valorizando a multiplicidade étnica das Terras Férteis e as narrativas
autobiográficas[1] de seus alunos. Desta
forma a mestra vai em sentido contrário aos seus antecessores que focavam
exclusivamente nas sagas élficas, e devido a isso Anna é duramente criticada.
Além disso a professora promove algumas outras mudanças na forma como as aulas
eram ministradas e isso agrada os alunos.
Considero louvável a posição
de Anna de querer trazer para a sala a multiplicidade cultural presente ali, e
valorizar a trajetória de seus alunos e das famílias destes, ainda que eu considere
que as sagas élfica deveriam ser igualmente valorizadas. Mais uma vez a personagem me cativou e por isso espero encontrá-la
novamente nos outros dois volumes da série: A
Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar.
Para quem quiser saber mais sobre a série, a autora
mantêm um blog específico sobre ela onde conta as novidades e outros detalhes
da obra: http://castelodasaguias.blogspot.com.br/.
A edição lida é de 212 e foi
cedida pela editora Draco, em formato
digital. A versão impressa da mesma editora contém 192 páginas.
Confira uma prévia do livro disponível no Google Books.
Fiquei sem fôlego aqui. Muito, MUITO obrigada por esta resenha. E, sim! A Anna protagoniza A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar, além de aparecer junto com sua tribo, aos 12 anos de idade, na aventura xamânica infantojuvenil Anna e a Trilha Secreta!
ResponderExcluirFico muito feliz que tenha gostado da nossa resenha.
ExcluirEric Silva
Sem dúvida. Gostaria que seus alunos conhecessem meu trabalho. Onde fica a escola? Ela possui uma biblioteca?
ExcluirAtualmente estou autônomo, professor particular. Porém nossa cidade tem uma biblioteca que empresta livros para os usuários, e muitos jovens da cidade pegam livros de lá. Ela pertence a nossa filarmônica: Filarmônica 30 de Junho. Infelizmente minha cidade (Serrinha-BA) não conta com muitas bibliotecas, mas o acervo da filarmônica é razoável e bem diverso.
ExcluirPois me mande um endereço com CEP e enviarei um livro infantojuvenil para a biblioteca da Filarmônica. Se preferir, mande para meu e-mail, anamerege@gmail.com. Aguardo! :)
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