quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

[Especial Zafón] O Jogo do Anjo – Carlos Ruiz Zafón – Resenha


Por Eric Silva

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“Só aceitamos como verdadeiro aquilo que pode ser narrado”.
(O Jogo do Anjo, Carlos Ruiz Zafón)

Ano passado lancei no Conhecer Tudo um especial sobre o escritor barcelonês Carlos Ruiz Zafón, onde pretendo ler e resenhar todos os livros publicados pelo autor. Alguns meses após ter relido A Sombra do Vento volto a série do Cementerio de los libros olvidados (Cemitério dos Livros Esquecidos) com a leitura de seu segundo volume, O Jogo do Anjo.

Um livro de forte atmosfera gótica e carregado de mistérios, O Jogo do Anjo explora com mais intensidade o talento de Zafón para escrever sobre o sobrenatural sem deixar de lado o misterioso e temas como a loucura e a solidão. Um livro muito bem escrito no mais autêntico estilo do escritor espanhol.

Confiram a resenha do segundo livro do Especial Zafón.

Sinopse

Em O Jogo do Anjo, voltamos à Barcelona, nos anos de 1920, para conhecer David Martín, um jovem e talentoso escritor perseguido por desgraças desde a infância. Com uma doença terminal e vendendo barato o seu talento para editores oportunistas, David vive o seu pior momento e nenhuma perspectiva de futuro. É nesse momento que surge Andreas Corelli, um misterioso editor estrangeiro que trazia consigo uma proposta irrecusável: o restabelecimento da saúde de David e uma pequena fortuna em troca de escrever um livro que influenciaria milhões de pessoas. Contudo, a medida com que prossegue o trabalho com Corelli, David descobre-se enredado a segredos perturbadores e a um rastro de sangue e mortes que vai surgindo em seu caminho..

Resenha

O enredo

Barcelona, les Rambles 1920.
Narrado em primeira pessoa, O Jogo do Anjo introduz um novo personagem ao universo de escritores malditos do Cemitério dos Livros Esquecidos, e recua no tempo até a década de 20 para contar a história de David Martín, um jornalista barcelonês que sob o pseudônimo de Ignatius B. Samson se torna um conhecido escritor de histórias policiais.

David, assim como a maioria dos personagens de Zafón, teve uma infância solitária e conturbada. Seu pai era um ex-combatente que retornou da guerra miserável e desiludido, e que logo depois foi abandonado pela esposa que nunca mais quis saber nem dele nem do único filho. Um homem truculento e envergonhado com sua condição analfabeta, que nunca conseguiu reconhecer as potencialidades do filho e não se contentava com o seu interesse pelos livros, atividade que considerava uma perda de tempo. O pouco afeto que o pequeno David encontraria seria a do livreiro Sempere (avô de Daniel de A Sombra do Vento). O velho Sempere sempre lhe presenteava com um novo livro e anos mais tarde o levaria para conhecer a colossal e secreta biblioteca de livros esquecidos.

Sozinho no mundo após a morte repentina do pai, David encontra apoio e incentivo na caridade de Pedro Vidal, milionário excêntrico e escritor boêmio que o ajuda na fase mais difícil de sua vida. Através de Vidal David conseguiria um trabalho no jornal La Voz de La Industria e conheceria Cristina, a filha do motorista de seu benfeitor.

No La Voz o rapaz se torna jornalista e depois escritor de novelas policiais que publicava ali mesmo no periódico. Após conseguir alguma fama com as histórias que escrevia para o jornal e novamente com a ajuda de Vidal, David consegue dois editores, Barrido e Escobillas, para quem passa a publicar com exclusividade.

O jovem escritor abandona o trabalho no La Voz e com o dinheiro do acordo editorial aluga um antigo casarão com fama de assombrado, onde passa a viver enclausurado em seu escritório, dedicando-se a cumprir os prazos ridículos previstos em seu contrato.

A rotina incessante de trabalho, o desejo de escrever uma obra que levasse seu nome e o pouco cuidado com a própria saúde levam o escritor a uma situação desesperadora. Mas é quando tudo a sua volta parecia ruir que David recebe uma tentadora proposta que mudaria o seu destino.

Em troca de uma pequena fortuna, Andreas Corelli, um misterioso e sombrio editor francês, propõe a David escrever um livro que mudaria o mundo. Mesmo relutante David aceita aquilo que parecia uma tarefa impossível, mas que na verdade o enreda em uma ciranda de acontecimentos, na qual estaria sempre a ponto de resvalar em um poço negro e sem fundo.

Ao longo da narrativa os mistérios entrono de Andreas Corelli se tornam cada vez mais intrincados e sombrios. Desconfiado dos reais intensões de Corelli David decide investigar a nebulosa vida do editor, enquanto um rastro de sangue vai sendo deixado pelo caminho.

Personagens importantes
Universidade de Barcelona. 1920-1930.
Muitos personagens aparecem na trama de O Jogo do Anjo e ocupam cada qual em seu momento um papel de destaque. Sendo impossível falar de todos, destacarei só os principais, que marcadamente se diferem dos encontrados no primeiro volume da série, principalmente, quando analisamos o seu narrador.
O desesperançado David é bem mais velho e maduro do que Daniel, protagonista de A Sombra do Vento, e por isso, com ele, a narrativa perde o ar de juventude que Daniel imprime no primeiro livro. Os dissabores de sua vida difícil tornaram David irônico e sarcástico, além de sínico, e essas características se tornam a armadura de defesa do personagem. Também desapaixonado e desiludido com o mundo, o protagonista só consegue se demonstrar afetuoso com os Sempere e com Cristina, sua paixão mal resolvida. Em muitos momentos da narrativa temos dúvidas sobre a sanidade do personagem e de até onde os fatos contados por ele são de fato reais ou produto de uma mente convalescente.
Em contraste a David, temos a determinada, solícita e igualmente irônica Isabella a personagem mais jovem da trama que se torna assistente do protagonista e futuramente a mãe de Daniel Sempere. De tordo os personagens ela é a mais viva e vibrante e por isso a identificação com ela é imediata. O que contrasta bastante também com altivez e inconstância de Cristina e com a timidez e continência de Sempere Filho. Em relação a este último, o futuro pai de Daniel, possui na trama presença bem mais apagada na narrativa do que no primeiro livro. O Jogo do Anjo nos mostra um Sempere mais novo, mas desde já trabalhador, cauteloso, sério e até melancólico.
A grande surpresa é o avô de Daniel, denominado apenas como Sr. Sempere. Este, ao contrário do filho, é muito mais espontâneo e vivo. Um homem bonachão e muito afável e que preenche a carência paterna e afetiva de David, defendendo-o até o fim.
Mas de todos os personagens o mais inquietante é Corelli. Figurando como um personagem central da narrativa e o principal elo que liga todos os fatos ocorridos com David, o editor francês é um homem muito bem-vestido que traz na lapela de seu paletó a figura de um anjo. Sinistro e de presença sombria, Corelli parece na trama alguém revestido de sobrenaturalidade e é, dos personagens, o mais bem construído, com vida e existência quase própria.  Sarcástico e crítico, Corelli ainda possui uma visão muito fria e clínica da vida, do homem e da humanidade o que revela nele também uma personalidade que beira a racionalidade fria e calculista dos psicopatas.
 Mais gótico e focado no sobrenatural
O Jogo do Anjo é sem dúvidas um bom livro e uma obra genuína ao estilo já consagrado do escritor espanhol, mas dentro do conjunto da série Cemitério dos Livros Esquecidos ele se difere em vários aspectos em relação A Sombra do Vento, livro que abre a coleção.
A história de O Jogo do Anjo se passa 30 anos antes dos acontecimentos narrados em A Sombra do Vento, numa Barcelona diferente daquela vivida por Daniel e anos antes de estourar a Guerra Civil Espanhola que culminaria com a instauração do regime franquista. Por conta disso, a Barcelona descrita por Zafón em O Jogo do Anjo dista bastante em relação ao primeiro livro.
O Jogo do Anjo é essencialmente mais gótico do que A Sombra do Vento e flerta muito mais com o sobrenatural. A loucura e o desalento são bem mais fortes na vida de seus personagens e por isso contrasta com a melancolia e o sentimento de perda que é bem mais forte no séquito que povoa o primeiro livro. Por essas características que eu diria que O Jogo do Anjo seria um livro mais “noturno”, mais sombrio. Acho que devido a isso que, nesse livro, Barcelona se reveste de uma áurea bem mais soturna e pesada do que no primeiro.
Se, em A Sombra do Vento, Barcelona é ao mesmo tempo misteriosa e bela, em O Jogo do Anjo ela se carrega com o peso de sua existência secular e demonstra-se ainda mais hostil e sombria, gótica e antiga, uma cidade cheia de seus segredos e de dramas silenciosos.

Parque Güell em imagem de 1900-1910, autor desconhecido. Esse é um dos principais cenários de O Jogo do Anjo.Era próximo ao parque criado pelo arquiteto catalão Antonio Gaudí que se situava um dos principais pontos de encontro entre David e Corelli.

Outra distinção está na organização da obra. Muito diferente de A Sombra do Vento, onde o livro era dividido em anos que acompanham o crescimento de Daniel e o desenvolvimento desse personagem, em O Jogo do Anjo, Zafón divide a trama em três grandes atos como se assistíssemos a uma tragédia gótica.

No primeiro deles, A Cidade dos Malditos, conhecemos a fundo a história e a personalidade do narrador enquanto ele nos conta sua infância conturbada ao lado de um pai violento e intransigente, sua vida regrada e sem brilho de jornalista de pouco sucesso, a ascensão de sua carreira como escritor de histórias policiais, sua paixão desencontrada por Cristina e nos apresenta aos principais personagens que o orbitarão ao longo de toda a narrativa. Mas é nesse ato também que o mais tenebroso dos personagens do livro tem suas primeiras aparições e acompanhamos como gradualmente a vida e a saúde de David vão se deteriorando.

A partir do segundo ato, Lux Aeterna, também o mais longo, a trama vai ganhando corpo e se complexifica. Novos personagens emergem e a existência de uma teia de mistérios que envolvem Corelli e seu último escritor vão se tornando mais evidentes, porém cada vez mais sombrios e difíceis de deduzir.

Ainda assim, de todos os atos, o último e que leva o mesmo nome da obra, é de longe o mais intenso. Nele O Jogo do Anjo ganha gradativamente mais ritmo e, até alcançar os últimos capítulos, o desenvolvimento da trama ganha celeridade.

Zafón preserva nesse livro o que há de melhor em sua escrita: o magnetismo e a originalidade que marcadamente brinca com as palavras e faz construções de grande beleza estética.

A escrita de Zafón é o que acho de mais precioso no conjunto de sua obra. Ela é muito bem estruturada e flui muito bem sem nunca ser cansativa. Por vezes ela parece se aproximar do poético sem deixar de ser gótica, mas sempre segue um fluxo contínuo e compassado que me embala e me faz esquecer do que acontece no meu entorno. Mesmo quando o narrador é irônico e desapaixonado como David, ela se sobressai como algo intrínseco e muito próprio do escritor. Ainda que se mescle com a personalidade individual de cada narrador, em cada livro, a marca do autor é evidente, porque Zafón domina a arte de escrever bem.

Em conclusão

Foto: Eric Silva. Fevereiro de 2018.
O livro não produziu em mim o mesmo fascínio e arrebatamento que A Sombra do Vento porque achei que houve uma inversão na proposta inicial do primeiro tomo da série. Enquanto A Sombra do Vento é um livro realista com um enredo que flerta com o sobrenatural, O Jogo do Anjo é um livro a respeito do sobrenatural, mas com ares de realista quando nos faz duvidar muitas vezes da sanidade do narrador e logo também da pretensa natureza supra-humana de Corelli.

A solidão, a descrença, a ironia e a quase insanidade de David influencia o tom da obra, são os reflexos de sua personalidade e os principais sentimentos presentes na obra. Se A Sombra do Vento é povoado pelo sentimento da solidão e da perda, O Jogo do Anjo tem muito disso e mais a acidez da ironia de David tornando ainda mais rica a escrita originalíssima de Zafón.

Não gostei mais de O Jogo do Anjo porque havia lido A Sombra do Vento antes. Os estilos, como já disse, diferem um pouco e me deixaram confuso em relação ao que esperar dos próximos volumes: O prisioneiro do Céu e O Labirinto do Espíritos. Mas algo que me chamou a atenção é como os personagens de O Jogo do Anjo, sobretudo Corelli, parecem tão vivos, tão reais e quase palpáveis. Nunca havia ficado ansioso e desconfortável com um personagem como fiquei a cada nova aparição do editor francês. Isso mostra como a escrita do barcelonês evoluiu de um livro para o outro. Por isso fico imaginando se encontrarei um Zafón ainda mais maduro nos dois livros que se seguirão.

Contudo, mesmo os bons livros possuem pontos fracos. Em O Jogo do Anjo, o principal deles é a desproporção de velocidade entre a maior parte da narrativa e o seu desfecho. Em todo o Primeiro e Segundo Ato encontramos um desenvolvimento despreocupado com o tempo e dedicado a contar com calma e riqueza de detalhes os lances da narrativa. Porém, na segunda metade do Terceiro Ato a história ganha uma velocidade muito grande que se apodera do leitor. Por vezes somos induzidos a ler cada vez mais rápido como se quiséssemos acompanhar a celeridade do desenvolvimento do desfecho. A trama só vai retomar seu ritmo normal nas últimas páginas quando são descritos os destinos de cada personagem e o grande mistério da trama é por fim (e acredito eu, parcialmente) revelado.

Enfim, o autor repete a fórmula de uma história completa, ou seja, de enredo com desfecho fechado, o que aumenta as expectativas em relação ao volume seguinte da série, mas de um jeito diferente. A expectativa não é com o que acontecerá em seguir, mas como a história dos dois primeiros livros vão se ligar aos demais. Estou ansioso para saber como tudo se dará, mas, sinceramente, estou mais ansioso é por reencontrar Daniel e Firmino.

A edição lida é da Editora Suma de Letras, do ano de 2008 e possui 410 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia da última edição do livro disponível no Google Books.

Preview do Google Books



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6 comentários:

  1. Parabéns pela sua resenha. Já li A Sombra do Vento, O Jogo do Anjo e também O Prisioneiro do Céu. A minha opinião sobre o estilo de Zafón é idêntica à sua. Estou ansiosa por ler O Labirinto dos Espíritos.
    Mais uma vez, Parabéns!

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  2. PARABÉNS pela resenha, concordo integralmente contigo. Achei o desfecho confuso, pois parcialmente revelado. A história é envolvente, mas a relação de Corelli, Marlasca, e os personagens relacionados a estes, pareceu-me que ficou em aberto.

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    1. Obrigado. Esse livro é o mais intrigante e o menos claro. Senti - até mesmo depois de ler toda a série - que algumas coisas ficaram em aberto, infelizmente para sempre.

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  3. Excelente resenha! Me identifiquei com cada impressão que teve. Algumas vezes, senti vontade de ler de dia, mas a pegada do livro pedia um clima noturno para ser mais envolvente! De qualquer maneira, espero que "O Prisioneiro do Céu" possa ajudar a elucidar um pouco alguns pontos que ficaram em aberto nesse livro.

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