Por Eric Silva para a Tag Novos Escritores
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
Na terceira resenha dessa nova tag apresento o primeiro
livro da trilogia O Amaldiçoado de
João Gabriel Leal, O Amaldiçoado e o
Príncipe das Trevas conta a história de Lucas, um menino de aparência muito
exótica que descobre ser um lobisomem, cuja missão é exterminar o mal dos vampiros que ameaçam a humanidade. Um livro de tema
um pouco batido, mas com seu próprio charme, esse é uma obra com um
protagonista cativante e com um estilo de narrativa que muito me lembrou as
histórias reunidas na Coleção Vaga-lume.
Confira a resenha.
Sobre
o autor
João Gabriel Leal tem 26 anos de idade é jornalista, baiano, e
atua na imprensa esportiva. Começou a escrever ainda criança, com apenas oito
anos de idade.
Na infância, João Gabriel escrevia histórias curtas sobre
super-heróis, porém só depois de adulto se sentiu pronto para desafios maiores
e escrever mais do que algumas folhas de caderno. Depois de assistir a um
documentário sobre lobisomens, teve a inspiração para escrever seu primeiro
livro publicado, O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas, primeiro volume de uma trilogia que já tem continuação
em O Amaldiçoado e a Tarefa dos Lunáticos,
lançado ano passado.
Atualmente, está produzindo o terceiro livro da trilogia.
Sinopse do Enredo
Eulália é uma mulher muito religiosa,
mas se casa com Arthur Lupino, um dos maiores mulherengos da pequena cidade
sulista de Vale dos Anjos. Aparentemente, aquela relação impensável dá certo
até o dia que supostamente Arthur é convocado pelo exército e só retorna nove
meses depois com um bebê nos braços. Esse bebê é Lucas, uma criança que
supostamente Arthur encontrou abandonado em um ninho de cobras e acabou
salvando-lhe a vida. Mesmo desconfiada da história e preocupada com o destino
de Lucas, Eulália aceita adotar o menino.
Um tempo depois Arthur é
assassinado por um vampiro que tenta atacar sua família. Ninguém descobre a
forma como ele morreu e consideram a morte como resultado de um suicídio.
Eulália sozinha não consegue tocar a fazenda e torna a se casar, indo morar com
Lucas na casa de seu novo marido, Pedro Antônio, e de seu filho, Édipo.
Com o passar do tempo, Lucas
vai crescendo e se tronando um menino de aparência estranha, fome descontrolada
e temperamento difícil. Está sempre metido em brigas e confusões na escola e
tem uma relação delicada e difícil com o padrasto e o enteado da mãe, o que o
coloca em situação difícil também com a mãe. O rapaz se irrita muito facilmente
e apesar de muito franzino possui uma força descomunal. Mas é quando completa
13 anos de idade que Lucas faz uma grande descoberta sobre si mesmo: um monstro
vivia dentro dele.
No dia do seu aniversário,
Lucas se desentende e acaba agredindo Édipo, mandando-o para o hospital.
Irritado consigo mesmo o garoto passa aquela noite inquieto e sente febre. Como
consequência da misteriosa febre, Lucas passa por uma transformação que o torna
num lobo faminto, destrói a janela do quarto e desaparece na noite iluminada
pela lua cheia. No dia seguinte, o garoto acorda nu no meio da floresta ao lado
dos restos de um animal morto que ele, transformado em lobisomem, havia
devorado naquela noite.
Vampiros,
lobisomens e adolescência: apreciação crítica das temáticas
Histórias de vampiros são
muito comuns e não são poucas as obras que possam ser citadas quando se fala do
tema. Contudo, histórias de lutas entre lobos e vampiros e o tema da
miscigenação entre estas raças parecem ter se tornado mais populares após obras
de grande sucesso e divulgação internacional como jogos de RPG, a série Crepúsculo e a franquia de filmes Anjos da Noite.
É possível perceber na trama
de João Gabriel influências de algumas obras, sobretudo dos jogos de RPG. Isso
não significa, porém, que o O Amaldiçoado
e o Príncipe das Trevas não seja original. Pelo contrário, se o autor
inicialmente parece se inspirar em outras obras para sua ideia base, por outro
lado esbanja originalidade ao apresentar uma proposta de narrativa
completamente distinta, nem exageradamente adulta, violenta e pouco crível como
o elétrico Anjos da Noite; nem
melosa, enjoativa e clichê como o romântico água com açúcar, Crepúsculo; e bem mais literário e
intimista do que costumam ser os jogos de RPG.
Romance de terror
infantojuvenil, puxado para o subgênero da fantasia sombria, João Gabriel oferta
ao seu leitor uma história com muitos personagens realistas e cativantes como
Lucas e seu Anselmo. Uma narrativa que
não é exageradamente infantil para ser desprovida de ação realista e mortes
reais, nem exageradamente adulta para deixar de ser recomendável aos menores
como é o caso do subgênero do terror: o vampirismo erótico.
É um livro leve sem deixar de
ser crível ou abusar do sentido de impossível. Possui mágica e elementos fantásticos
que me fizeram lembrar do universo paralelo de Harry Potter e a originalidade
de uma mente criativa que gosta de brincar com seu enredo.
O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas é um livro que me lembrou bastante as histórias e o
estilo das narrativas da Coleção
Vaga-Lume. Não apenas por seu estilo de escrita
se assemelhar com a de alguns escritores da coleção mais lida do país, mas
porque ele possui uma temática sólida por trás, e que busca discutir nas entre
linhas um aspecto da vida do leitor jovem. Não é um livro apenas para
entretenimento, sem, por outro lado, deixar de sê-lo.
Todo livro destaca ou espelha algum aspecto da vida e nos
leva a pensar a nossa realidade mesmo quando a trama é de fantasia e tem em si
uma verossimilhança unicamente interna. No caso do livro de João Gabriel esse
aspecto é a adolescência.
A adolescência é uma fase
difícil porque é marcada por uma série muito grande e complicada de mudanças
físicas, psicológicas e comportamentais. É um momento de descobertas e de
construção da personalidade, das paixões súbitas, da não aceitação do corpo e
de uma maior preocupação com a aparência e com a imagem que o outro faz de si.
Como passagem para a vida
adulta, essa é uma fase complicadíssima de muitas mudanças e incertezas, no
qual o adolescente busca desafiar-se e integrar-se com o mundo social. É um
período de formação do indivíduo que será adulto logo mais, um momento de
buscar voltar os olhos para o social, tirando-os um pouco do âmbito familiar.
Por isso, os jovens gostam de estar integrados a grupos, aos seus pares e estar
mais com os amigos e menos com a família.
Lucas está entrando na
adolescência e se sente deslocado porque se sente diferente dos demais, mais do
que isso, porque é visto como diferente, como estranho e, por isso, sofre
rejeição e bullying, e tem dificuldade de fazer amizades. Se aceitar como diferente é seu principal desafio. Mas temos o
outro lado também. Mesmo sendo um alguém
diferente, Lucas também sente dificuldades de lidar com as diferenças dos
outros. O exemplo máximo dessa assertiva é seu único “amigo”, Chico.
Francisco Redondo (um
sobrenome bem clichê para alguém gordinho) possui uma personalidade bem diferente
da de Lucas, além de ser bastante invasivo, ou “entrão”, como se diz aqui na
Bahia. Chico, assim como Lucas, é um garoto solitário e isolado socialmente e
vê no menino lobo a oportunidade fazer uma amizade. Por conta disso, Chico
tenta de todo modo forçar uma aproximação que Lucas não desejou e nem deseja.
Por seu turno, Lucas não sabe lidar com Chico porque, não forma com ele
exatamente um igual, um semelhante, e isso cria em Lucas uma certa rejeição ao
garoto e uma dificuldade de aceitá-lo como amigo.
Outro ponto desse personagem
complexo que vive o principiar da adolescência é a busca por seu lugar no mundo
e o papel que desempenhará nele. Descobrir
que é um lobisomem não só joga o peso do mundo em suas costas como lhe dá uma
missão que ele não pediu, que parece irrealizável, mas, também inescapável.
Para alguém que ainda está se conhecendo e se descobrindo, criando referência e
desenvolvendo-se a missão de proteger o mundo do retorno de uma poderosa
vampira é um fardo pesadíssimo.
Desenho de um lobisomem na floresta à noite. | Mont Sudbury. Wikimedia Commons. |
Se tudo isso não bastasse ele
também está apaixonado e tem fé que conseguirá atrair a atenção da garota que
gosta, Melissa, mas, ao mesmo tempo, está inseguro de tudo e não tem certeza de
que um dia conseguirá. Na escola as relações com os colegas e professores é um
desafio e, em casa, os atritos e brigas são constantes.
Enfim, a adolescência é uma fase de contradições e Lucas
é a própria contradição em pessoa. O livro de João Gabriel mostra com maestria
o que é ser adolescente pela perspectiva do mais estranho e deslocado de todos:
um garoto lobisomem. O livro fala de bullying, de primeiro amor, de amizades,
de amor familiar, de aceitação e por isso é diversificado e ultrapassa os
limites de uma narrativa de fantasia ou terror infantojuvenil sobre lobisomens
e vampiros.
O pequeno lobisomem e
outros personagens
Um dos pontos que mais gostei
neste livro foi a construção de seu protagonista que de tão complexo parece
real.
João Gabriel concebe um
protagonista com quem muitos facilmente se identificariam. O menino estranho
dos cabelos espetados que cheira a cachorro molhado, que vive isolado, mas que
esconde uma pequena paixão pela garota bonita da classe. Um filho que ama sua
mãe, mas que não consegue evitar de trazer-lhe desgostos. Um jovem cheio de
energia e potencial, mas que é hostilizado por um padrasto que o considera um
incômodo. O garoto diferente que é alvo de bullying do enteado da mãe e dos
valentões da escola. O rapaz que tenta entender quem ele é e qual o seu
propósito no mundo. Todos eles são Lucas Lupino.
Lucas é um garoto diferente
com uma aparência estranha (isso é fato incontestável). Tem uma fome
incontrolável e uma irritação ameaçadora que assusta muitos a sua volta. Para
muitos ele é só mais um futuro delinquente, mas intimamente ele é só um garoto
como outro qualquer, com seus medos, sonhos e paixonites. Ele também é um
monstro, perigoso, ameaçador quase incontrolável, mas também tem a pureza de
alguém que deseja ser bom e fazer o seu melhor. Enfim, Lucas é um personagem multifacetado e isso faz dele um personagem
intrigante ao mesmo tempo que cativante.
Acompanhá-lo é ver uma
criança perdida que tenta desesperadamente buscar respostas e controlar seus
ímpetos agressivos. Ele é um garoto corajoso, mas cheio de medos e indagações.
Sua instabilidade emocional o faz tão frágil quanto o faz forte e, mesmo sua
natureza biológica, ao que tudo indica, parece desafiar as próprias leis
naturais. O tipo de personagem que mais
adoro porque tem uma construção que tende a ser complexa e realista.
Acredito que todo ser humano é um universo em si complexo
e multifacetados. Não somos a mesma pessoa nem agimos igual ao tempo todo e
como cebolas (sim, cebolas, você não leu errado) somos feitos de camadas
sobrepostas de tamanhos distintos, porém, diferentes das cebolas, com tons
ligeiramente dessemelhantes.
Não gosto de personagens
planos, simples construídas em redor de uma única qualidade ou defeito, mas de
personagens complexos e contraditórios, os ditos personagens redondos. Lucas é um deles e já vale pelo livro
inteiro.
O Amaldiçoado é
uma série com um elenco vasto e muitos outros personagens perfilam pela
história. O misterioso Arthur Pedro Antônio, o padrasto burguês e hostil que só
pensa em dinheiro; seu filho, Édipo, prepotente e que pensa ser superior a
Lucas e por isso está sempre atormentando seu juízo. Chico, o “melhor” e
praticamente único amigo de Lucas, mas que passa a maior parte da história
forçando esta aproximação e amizade. Melissa, a menina bonita por quem Lucas é
apaixonado. Cito ainda Félix, o menino novo da escola que acaba criando uma
grande confusão em Vale dos Anjos e se tornando elemento-chave na narrativa.
Muitos outros personagens
secundários foram criados por João Gabriel, contudo estes alongariam demais a
resenha caso fossem citados com pormenores. Contudo, dois personagens precisam
ser destacados. O primeiro é Eulália, a mãe de Lucas, o outo seu Anselmo, que se
destaca como mestre e instrutor de Lucas.
Destaco Eulália porque foi um
personagem que me chamou a atenção e me causou estranhamento. Eulália é uma
religiosa fervorosa, descrita como uma verdadeira beata, porém a maior parte do
tempo ela não me convenceu. Achei que o personagem está demasiadamente cercado
de estereótipos por ter sido criado como uma mulher exageradamente pura,
cristianizada e correta, um exemplo de retidão e probidade só porque é
religiosa. Fora os seus momentos de irritação, quando Lucas apronta das suas,
Eulália é comparável a Virgem de tão certinha, por isso achei sua construção um
pouco caricata e fora da realidade.
Eulália é um exemplo de
personagem plano e na maior parte do tempo permanece como um – ela só mostra as
unhas uma única vez, já perto do final do livro. Como já disse não gosto de
personagens planos, porque é meio difícil de acreditar na constância moral
deles, eles não me parecem críveis ou realistas. É certo que a história esconde
um propósito para ter um personagem assim, mas isso só fica claro muito tempo
depois e é só nesse momento que Eulália ganha um pouco mais de profundidade.
Por seu turno, destaco seu
Anselmo por ser um dos personagens mais exóticos e enigmáticos da trama. Ele é
descrito como um senhor de idade, sempre portando seu chapéu panamá, e que vive
isolado na sua cabana no meio da floresta. Como Lucas ele é um lobisomem, já
tem mais de 100 anos e é na trama a chave central para entendermos o passado do
menino e suas origens. Ele cumpre o papel de mestre e mentor de Lucas, e o
ajuda em muitos aspectos, mas acho que ele poderia ter uma presença mais
intensa na trama. Ele some nos momentos mais cruciais da narrativa, mas tenho
impressão que será elemento-chave no segundo volume da série.
Para finalizar...
A escrita de João Gabriel é leve e fácil de compreender. Ele escreve bem, no entanto, a história do livro tem um
começo fraco e só ficar realmente interessante quando Lucas passa por sua
primeira transformação. A partir dali a
narrativa passa alternar entre momentos tranquilos, momentos de tensão e outros
de ação e morte. A leitura só é
cansativa nos primeiros capítulos, mas, à medida que a trama se torna mais
dinâmica e consistente, passa a fluir rapidamente e se torna mais instigante.
O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas é uma história interessante com um protagonista
cativante com o qual o leitor divide e reage aos anseios e medos do mesmo.
Lucas é um menino problemático, mas com o qual você se compadece. Só acho que a obra deveria evitar as
armadilhas de americanização da cultura brasileira. Uma cidade inteira que
comemora o dia das bruxas não é exatamente comum no Brasil. Comemorações como
estas em escolas, sobretudo particulares, são bem comuns, mas uma cidade
inteira não é ainda algo existente.
Infelizmente, O
Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas possui alguns pontos negativos, três
para ser exato. O primeiro deles já
mencionei quando falava de Eulália: essa não é uma obra livre de alguns
estereótipos inocentes, mas inegáveis e que deixam alguns personagens, como
Eulália com um certo ar caricatural.
O segundo ponto é o narrador
e suas piadas sem humor. Narrado em terceira pessoa, o livro tem um narrador
ativo na narrativa. Ele opina, se compadece dos personagens e tenta se
engraçado, mas nem sempre consegue êxito.
Mas o que mais me chamou a
atenção foi um pequeno trecho, imperceptível quase, mas destaco porque achei
muito incoerente e, até certo ponto, inadequado para um livro infantojuvenil.
Trata-se de um comentário sobre um dos personagens relacionada a questão da
autodefesa do porte de armas:
“Na sala, pegou uma lanterna
potente de fazendeiro, uma faca de caça e uma espingarda calibre doze que
deixava num armário para ocasiões como aquela. Era a favor da autodefesa. Achava que a polícia não fazia seu trabalho
direito e a segurança no país estava um caos”.
O comentário é completamente
desnecessário para o entendimento da trama e de seu personagem. Sem querer, a
passagem faz aos jovens uma espécie de apologia ao porte de armas, um
posicionamento político do personagem desnecessário a obra que, para sua faixa
etária e temática, deveria ser politicamente neutra. Na minha opinião, bastava
mencionar que ele pegava uma espingarda, arma comum entre caçadores de animais.
O desfecho é sem dúvida um dos melhores aspectos da
narrativa. Cheio de acontecimentos inesperados, mistérios e reviravoltas, a
conclusão do primeiro livro nem de perto dá um ponto final na narrativa ou
esgota suas possibilidades. João Gabriel soube o exato momento onde encerrar a
escrita de O Amaldiçoado e o Príncipe das
Trevas para deixar seu leitor curioso e ansioso pelo segundo volume da
série.
O destino de Lucas fica em aberto bem como da maioria dos
personagens. O seu futuro e o destino da humanidade ficam em suspenso e você
curioso para saber como Lucas fará para enfrentar os novos desafios que se
abrem a sua frente. Quais aliados fará nessa empresa e como seguirá em frente
em direção ao seu destino? As possibilidades são imensas, mas tudo depende de
como o autor conduzirá a segunda edição que já foi publicada sob o título de O Amaldiçoado e a Tarefa dos Lunáticos.
Esperemos pelos desfechos do próximo livro.
A edição lida é independente
e está disponível na Amazon, porém o livro já foi publicado em edição impressa
pela Editora Giostri, no ano de 2017 e possui 188 páginas.
[1]Raça
canina do tipo Collie desenvolvida na região da fronteira anglo-escocesa na
Grã-Bretanha para o trabalho de pastorear gado, em especial, de ovelhas.
(Wikipédia)
Nenhum comentário:
Postar um comentário