domingo, 3 de janeiro de 2021

[Em Poucas Linhas] Soul – Resenha 7ª Arte

 

Por Eric Silva para a tag 7ª Arte


SINOPSE

Joe Gardner é um professor de música do ensino médio que sonhava em ser um músico de jazz, e finalmente teve a chance depois de impressionar outros músicos durante um ensaio aberto no Half Note Club. No entanto, um acidente faz com que sua alma seja separada de seu corpo e transportada para a “Escola da Vida”, um centro no qual as almas se desenvolvem e ganham paixões antes de serem transportadas para um recém-nascido. Joe deve trabalhar com almas em treinamento, como 22, uma alma com uma visão obscura da vida depois de ficar presa por anos na Escola da Vida, a fim de retornar à Terra

(Fonte: Wikipédia.org – modificado).

***

A Pixar novamente mostrou que apesar de ter sido absorvida pela Disney ainda contém em seu cerne alguma identidade própria, algo de original, de seu.

Soul é uma animação filosófica, existencialista e inspiradora. Foi criado para crianças, mas sua temática tão abstrata, questionadora e existencialista extrapola o mero propósito de entretenimento e resgata um questionamento fundante sobre o qual muitos filósofos e religiosos já se debruçaram: qual o significado (propósito) da vida?

Joe Gardner passou toda a sua vida obcecado com a ideia de que o seu propósito na vida era tocar piano como musicista de jazz, algo para o qual ele realmente tinha talento, mas que por diversas vezes fora recusado e nunca conseguira uma oportunidade concreta de viver de música e se tornar famoso. Quando finalmente a sorte parece lhe sorrir ele morre e tem seu sonho abortado. Extremamente frustrado por ter perdido a chance de realizar seu sonho ele faz de tudo para voltar a vida e vê em 22 – uma alma ainda não nascida, mas extremamente inteligente, instruída, autêntica, crítica e cética – a oportunidade de voltar à vida.

22 não via motivos para vir ao mundo e viver uma vida nele, porque não via significado nisso, nem nada que lhe atraísse, por isso que sempre que alguma alma (as mais brilhantes que já passaram pela Terra) tentava inspirar nela o que era necessário para que esse desejo de viver nascesse, era frustrada pela pequena alma.

Não estamos neste mundo por um propósito, diz o filme, estamos neste mundo para viver a vida. Este é o único e indiscutível propósito da vida: viver, nada mais. É algo no mínimo desesperador, mas, ao mesmo tempo, libertador. Contudo, Soul abre muitas portas para a divagação (assim como qualquer obra filosófica) e nos ajuda a questionar o nosso mundo. Esse mundo louco movido pelas leis do mercado que nos impõe como propósito de vida: viver para consumir, consumir para viver. Porque Soul explora – de forma ainda muito ingênua – um terreno perigoso e que nos inspira a ir além dele mesmo e dizer o que ele não disse: nos consumimos e nos destruímos de diferentes modos para obter e produzir coisas sem significado e valor intrínsecos (damos nosso tempo de vida em troca de coisas sem valor real).

Como assim?

Bem, nesse instante em que minhas ideias ainda estão caóticas em mim e se assentam pouco a pouco, o melhor exemplo que posso dar é a questão do trabalho.

O trabalho no mundo humano há muito que deixou de ser uma tarefa tão só para garantir ao corpo o que ele necessita para continuar vivendo, e se tornou a nossa própria vida. Não vivemos, trabalhamos.

Contudo, não trabalhamos unicamente para viver, mas para consumir ilusões. Ilusões que foram criadas para sustentar outras ilusões, ilusões de outras pessoas (poder, riqueza, fama, etc.). Vivemos em um mundo do ilusório, onde damos o nosso tempo – limitado e irrecuperável – não apenas para garantir a integridade de nossos corpos e assim continuar vivendo, mas para alimentar ilusões que são nossas ou que foram criadas para nós.

Vivemos para consumir e possuir objetos que na verdade não são necessários e só já muito tarde nos damos conta que nada daquilo que tanto perseguimos tinha um propósito em si mesmo, uma razão em si mesma. Somos nós que lhes damos significados (ou reproduzimos os significados dados por outrem), e somente nós podemos alterá-los.

O filme convida a pensar que cada um de nós temos paixões, talentos e objetivos, mas não devemos nos cegar por eles e deixar que eles tomem conta de nossas vidas, nos esquecendo do propósito real da vida (vivê-la).

Eu inverto a ideia dizendo que nossas paixões, talentos e objetivos são muitas vezes sufocados porque vivemos em um mundo que nos exige muito para viver nele, e, no final, não temos tempo para viver realmente.

Um mundo que categoriza a utilidade e o valor de cada talento destrói pessoas como Joe Gardner. Um mundo que torna o trabalho de cada um em algo sufocante, pesado e exaustivo mesmo quando você faz algo de que gosta também destrói vidas. Um mundo no qual mesmo a ideia de “viver realmente” se tornou uma coisa, um objeto mercadológico e voltado para o consumo, enfraquece (e empobrece) o viver. Viver é consumir, sugere a propaganda capitalista.

Enfim, eu viajei com o filme dirigido por Pete Docter que dá destaque a um personagem negro e determinado ao mesmo tempo que explora a cultura afrodescendente norte-americana, o mundo do jazz e do próprio soul (o título é uma brincadeira com os significados da palavra que é ao mesmo tempo “alma” e um gênero musical criado por essa mesma comunidade afro-americana).

Fala de temas bastante abstratos como vida pós-morte e “pré-vida” e brinca com isso, colocando no lugar dos anjos da cultura cristã, outros seres administradores e burocráticos de forma abstrata e curvilínea num estilo inspirado nos movimentos artísticos cubistas e de arte abstrata em geral (talvez com forte influência de Picasso), com identidades próprias e compartilhadas (todos, exceto um, se denominam com o mesmo nome) e que têm origem não mágico-mitológica, mas como “materialização” de forças naturais.

O mundo pré-vida de Soul com suas criaturas abstratas, seus tons tranquilos e formas simplificadas.


Os cenários exploram formas simples, com muitas cores em tons de azul, de lilás, de branco e de preto, e o mundo terreno em cores mais quentes e terrosas (tranquilidade e caos).

Como já era de se esperar, o filme explora bastante o jazz, o estilo musical pelo qual Gardner é apaixonado e traz peças musicais de muita originalidade, mas que causa estranhamento aos brasileiros desacostumados ao ritmo, como eu.

Em suma, um filme complexo, que flerta com o metafisico e que desafia o público infantil e também o adulto (que terá que responder perguntas difíceis sobre a morte, sobre a alma e a pós-vida). Melancólico em muitos aspectos e com personagens que tem passagens breves, mas que ainda assim foram muito bem definidos e com personalidades desenhadas de forma bem demarcadas. Um filme que também fala da escolha entre perseguir sonhos ou estabilidade e segurança, e que expõe os medos de uma mãe negra, preocupada e temerosa porque com seu salário de costureira teve que alimentar dois sonhadores: o esposo e o filho.

Enfim, a lição de soul é esta: a vida não tem significado em si mesma, somos nós que lhe damos um. Talvez você não enxergue no filme muita coisa do que eu disse aqui, mas pouco me importa. Soul é o tipo de filme que te provoca a ir muito além dele, e daqui eu retirei outra lição que ele não ensinou: o mundo que vivemos é criação humana e nós podemos recriá-lo se quisermos dar à vida significados melhores.

4 comentários:

  1. Mais um super produção Pixar! já está anotado para assistir.

    www.sramaia.blogspot.com
    A pensadora

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    Respostas
    1. Sim, o estúdio sempre foi muito bom e criativo, não é a toa que a Disney abocanhou antes que perdesse terreno para ela. Gostaria que a Pixar tivesse continuado independente.

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  2. Não vejo a hora de assistir a esse filme! Sua resenha me deixou com ainda mais vontade. ♡

    www.almaantiga.blogspot.com

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