domingo, 24 de janeiro de 2021

[Especial Zafón] As Luzes de Setembro - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

Por Eric Silva para o Especial Zafón

24 de janeiro de 2021, Ano da Itália

“A solidão traça estranhos labirintos”

(Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Capa da edição brasileira. Suma das Letras, 2013.

Uma bela comunidade litorânea da Normandia, um romance juvenil de verão e as sombras de um passado macabro e marcado pela dor e pela destruição.  As Luzes de Setembro (Las Luces de Septiembre) é o terceiro e último livro juvenil de Carlos Ruiz Zafón que integra a Trilogia da Névoa. Um romance para jovens com um enredo mediano, mas muito bem escrito, que como outros livros do autor é bastante cinematográfico, mas que também repete muitas fórmulas já exploradas nos dois livros que o precedem.

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês resenhada para o Especial Zafón.

Sinopse do enredo

Normandia, verão de 1937.

Após perder o marido e passar por dificuldades financeiras para sustentar a si e a seus dois filhos, Simone Sauvelle encontra num pequeno vilarejo na costa da Normandia uma oportunidade irrecusável para trabalhar como governanta de um imponente casarão. O salário era generoso e seu empregador, Lazarus Jann, também oferecia a possibilidade de se instalarem numa modesta residência construída no vértice do cabo do pequeno vilarejo, a Casa do Cabo. Mesmo que precisassem abandonar Paris, aquela era uma luz de salvação que permitiria a Simone garantir o sustento dos filhos, mas que também mudaria para sempre a vida de sua família.

Em meados de junho, Simone e seus filhos, Irene e Dorian, partem para Baía Azul, uma pequena comunidade pesqueira onde vivia o excêntrico inventor que empregaria Simone. Naquela costa Lazarus construíra um grande casarão repleta de máquinas e autômatos bizarros e maravilhosos e a qual dera o nome de Cravenmoore. Ali o inventor vivia recluso com sua esposa enferma e ao lado de sua fábrica de brinquedos fechada vários anos antes.

O vilarejo era tranquilo e a comunidade hospitaleira e, por isso, os Sauvelle não encontram dificuldades para se adaptar nem a casa nem ao lugar, sobretudo com a ajuda da animada e faladeira Hannah, a jovem cozinheira de Cravenmoore e que logo faz amizade com Irene e vai com ela a toda parte falando (até os mínimos detalhes) sobre tudo e sobre todos do lugar. É também através de Hannah que Irene conhece o primo da moça, o jovem Ismael, e seu veleiro, Kyaneos, com o qual o rapaz foge para o mar sempre que tem vontade.

Não demora muito para que os dois jovens se encantem um pelo outro e Ismael leve Irene para conhecer o farol e a costa em seu veleiro. Contudo, o clima de felicidade e de romance de verão dura pouco quando, numa certa manhã, Hannah é encontrada morta no bosque próximo à casa de Lazarus em circunstâncias misteriosas. Decididos a descobrir o mistério por trás da morte da moça os dois jovens acabam por desenterrar o passado assombrado e trágico de Cravenmoore e seus habitantes.

Resenha

Último livro da Trilogia da Névoa, série de livros juvenis independentes escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro é pouco mais do que a repetição das fórmulas empreendidas pelo autor nos dois romances que o antecederam.

A Trilogia da Névoa em ordem cronológica de publicação.


Assim como O Príncipe da Névoa e O Palácio da Meia-noite este é mais um livro que explora não somente as temáticas góticas e de mistério comuns a toda a obra do autor como também traz novamente o sobrenatural como elemento definidor da trama (uma criatura feita de sombras, um casarão imenso com inúmeros cômodos e cheio de autômatos sinistros). O plot do livro em essência segue a mesma fórmula dos demais da trilogia, mas resgata sobretudo aquela usada em O Príncipe da Névoa:

-        Uma localidade pequena e litorânea cuja principal marca é a presença de um farol;

-     Um casal adolescente recém-formado (ele apaixonado pelo mar, ela forasteira que acabara de mudar-se e com a família e um irmão menor que também protagoniza na história);

-       Um mistério tenebroso e trágico que envolve o passado de um morador da localidade e que emerge para pôr os protagonistas em risco de vida;

-        Um punhado de jovens inteligentes e proativos;

-        Lugares arruinados, amaldiçoados ou bucólicos;

-        O verão local como marca temporal e romântica (amor de verão);

-        Grandes cenas cinematográficas;

-    Uma criatura quase mitológica que tem sua origem em uma comunidade suburbana paupérrima da infância pobre de um dos personagens.

-        [ALERTA DE SPOILER] e um desfecho trágico.

 

Tantas semelhanças entre os plots dos três livros – mas sobretudo com o primeiro deles – é explicado pelo próprio autor que chegou a afirmar que As Luzes de Setembro foi uma forma de “solucionar alguns elementos que não havia resolvido do jeito que gostaria em O Príncipe da Névoa”. De fato, ambos os livros são compostos com marcas temporais, atmosferas e cenários parecidos, além de uma mesma referência a névoa que dá nome a trilogia.

O que vai diferenciar esse roteiro dos demais são as circunstancias em que cada fato se dá. Os períodos históricos são um destes elementos. Muito próximos (1943, 1932 e 1937, respectivamente), mas em momentos um tanto distintos (período entre guerras e 2ª Guerra Mundial), mudando sensivelmente no caso do segundo livro por conta do seu deslocamento geográfico da Europa para o subcontinente asiático.

Mudam na trama também o passado dos personagens, o tipo de natureza do vilão principal bem como suas motivações e poderes, a função de alguns elementos dentro da narrativa (com destaque para o farol), a composição dos grupos familiares dos protagonistas e a função e destaque que cada um deles têm na trama com maior ou menor protagonismo. Além disso, nesta história a pequena comunidade litorânea que serve de ambientação ganha um nome e uma localização espacial um pouco mais definida.

Mas uma marca distintiva entre os romances que mais me chamou a atenção está no fato de que em As Luzes de Setembro o autor reforça ainda mais o caráter de terror da trama. Trata-se de algo que ele inicia em O Palácio da Meia-noite, porém já nos últimos capítulos. Ao contrário, em As Luzes de Setembro o terror e a tensão estão presente em mais da metade da peça, se insinuando tanto em pequenas coisas – a exemplo do pequeno autômato[E1]  em forma de anjo que se move sozinho e cujos olhos brilham na escuridão ao lado da cama do garoto Dorian –, até em momentos maiores como nas cenas de perseguição bastante cinematográficas e cheias de “efeitos especiais” envolvendo o casal jovem da trama. Além disso, os elementos de terror vão mudando aos poucos: de gatos estranhos, névoa e navios afundados, o autor segue para espetáculos incendiários, trens fantasmas e colossais estações ferroviárias arruinadas, e por fim, retorna à névoa acrescida de criaturas mecânicas que se movem sozinhas e doppelgänger.

Os personagens de As Luzes de Setembro seguem também quase as mesmas fórmulas com as quais foram construídos os protagonistas e personagens secundários dos dois livros anteriores. Por isso não sinto nenhuma vontade de alongar a resenha falando deles. Cito apenas que vejo em Ismael uma cópia quase idêntica de Roland de O Príncipe da Névoa; em Irene, uma Alicia que ganha protagonismo, que é mais família, mais sociável, madura e mais comunicativa, e, por fim, vejo em Dorian um Max que perde o faro investigativo, a força e o relevo na trama para concedê-los à irmã (troca de papéis), mas sem ficar de todo destituído do seu protagonismo. Quanto aos demais, acho-os tão fracos que não quero me deter neles.

A primeira aparição de Andreas Corelli?

Mas algo que me causou surpresa foi a participação (rápida, mas decisiva) em As Luzes de Setembro de um personagem do universo de O Cemitério dos Livros Esquecidos: o diabólico arcanjo Andreas Corelli[E2] .

Interpretação artística do personagem Andreas Corelli.
Artista: Bertus Dokter.


Corelli é um editor dotado de uma áurea e aparência sobre-humana e que gosta de fazer pactos com artistas malditos. Ele aparece pela primeira vez na série d’O Cemitério em seu segundo livro, O Jogo do Anjo, cuja trama é tão intrincada que nos faz duvidar da real existência de Corelli.

As razões da minha surpresa ao encontrar este personagem na trama do terceiro juvenil de Zafón são, na verdade, duas. A primeira delas é que este foi um fato atípico na trilogia. Em nenhum dos outros dois volumes Zafón faz com que enredos de séries diferentes se entrecruzem ou mesmo que um personagem transite entre os dois universos. O primeiro caso de fato não acontece em nenhum dos livros, mas o segundo acontece neste. Ainda assim, achei bastante coerente a inserção do personagem ao se levar em consideração sua natureza sobrenatural e que combina muito mais com a atmosfera fantástica, sobrenatural e de terror da Trilogia da Névoa. Muito mais do que com os livros de O Cemitério dos Livros Esquecidos, que tem uma pegada mais realista – mesmo em o Jogo do Anjo que nos faz crer ser Corelli uma alucinação do protagonista.

A segunda razão de minha surpresa está ligada a origem do personagem. Achava eu que Corelli, enquanto personagem, havia nascido em O Jogo do Anjo (2008) e depois transportado para outras tramas, a exemplo do conto El Príncipe de Parnaso. No entanto, tendo sido As Luzes de Setembro uma obra de 1995 – uma diferença temporal de 13 anos entre os dois livros – fica evidente que O Jogo do Anjo não foi a primeira aparição do personagem na obra de Zafón. Talvez o autor aproveitou no livro de 2008 um personagem de grande potencial, mas que fora pouco explorado em 1995. Digo talvez, porque há a possibilidade de que Corelli tenha aparecido em algum outro conto mais antigo do autor e isso só poderei comprovar quando tiver a oportunidade de ler La Ciudad de Vapor, ainda sem tradução no Brasil.

Um enredo mediano muito bem escrito

No que diz respeito a escrita, Zafón continua impecável. Linguagem leve, mas elegante. Texto fluido e bem estruturado. Prosaico até onde precisa ser, sem destituir o texto de poética e das construções estilísticas (metafóricas) corriqueiras em sua obra.

Na narração ele aproveita a estatura narrativa de O Palácio da Meia-noite alternando entre narradores-personagens – que se manifestam em cartas trocadas entre o casal da trama após a ocorrência dos fatos narrados e que ajudam a dar uma noção de continuidade –, e um narrador predominante em terceira pessoa. Assim como no caso supracitado, os narradores-personagens possuem uma nostalgia quase poética em seus brevíssimos discursos (apenas dois, um para iniciar – Ismael – e outro para encerrar o livro – Irene).

O livro foi para mim uma experiência bem mediana e nada em particular me chamou a atenção para que eu gostasse um pouco mais da trama ou do enredo em geral.

No que diz respeito as ideias do autor para o enredo do livro, achei-as bem medianas, mas talvez porque eu esperasse muito mais de Zafón do que ele de fato entregou nesta obra e nas demais que compõe a série. Essa minha queixa já é antiga.

Apesar de gostar e achar original a inserção dos autômatos na trama, algo que até então só havia visto no filme A Invenção de Hugo Cabret (2011) e sem o elemento de terror, não achei As Luzes de Setembro tão criativo, mas uma junção de elementos já nas obras do autor, somado a algumas histórias já muito exploradas pela literatura em geral: amores de verão, artistas (cientistas) loucos, doppelgänger, diários/escritos deixados por pessoas já mortas e/ou desconhecidas, problemas familiares trágicos na infância, etc.

Um automato é uma máquina ou robô desenvolvido para operar automaticamente. A maioria deles possuem estruturas mecânicas sofisticadíssimas e que lhes permitem realizar uma tarefa simples. Na foto, o automato desenhista do filme A Invenção de Hugo Cabret, 2011.


O que eu vejo ganhar força neste livro são os conhecidos elementos cinematográficos que autor explora bastante em O Palácio da Meia-noite e que parecem ter fechado um pouco os buracos deixados pela leve sensação de falta de enredo que o livro me deixou.

As construções cinematográficas são boas e Zafón não se perde nesta que é uma das mais destacadas marcas de seu trabalho literário e que, acredito eu, é resultado e influência dos anos em que o autor trabalhou como roteirista (o autor ainda conta no prefácio que escreveu As Luzes de Setembro tendo a sua janela a vista da Melrose Avenue bem como das letras de Hollywood em sua colina).

Quanto aos pontos negativos, acho que eu resumiria da seguinte maneira: um enredo mediano muito bem escrito, que não empolga, que é bastante previsível em algumas partes e que no final você nem gosta nem desgosta. Em outras palavras, o fim da descida que começara em O Príncipe da Névoa. Isso, no entanto, não me surpreende muito, porque é comum que sagas – mesmo aquelas de livros independentes – percam fôlego com o avanço dos volumes porque vão se esgotando os recursos ou as temáticas.

E o que dizer do desfecho? Basicamente o mesmo que já disse no parágrafo a cima: mediano. Não surpreende porque já era previsível, mas é um pouco menos trágico (sem deixar de sê-lo, no entanto). Acredito que o que dá um up no fim do livro é a carta de Irene à Ismael que dá uma noção de continuidade na narrativa selando de vez o enredo.

A edição lida é da Editora Suma das Letras, com tradução de Eliana Aguiar. Do ano de 2013 e possui 232 páginas. O título original em espanhol é Las Luces de Septiembre.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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