Por Eric Silva
24 de janeiro de 2021, Ano da Itália
“A solidão traça estranhos
labirintos”
(Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro)
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Capa da edição brasileira. Suma das Letras, 2013. |
Confira a resenha de mais uma obra do escritor
barcelonês resenhada para o Especial Zafón.
Sinopse
do enredo
Normandia, verão de 1937.
Após perder o marido e
passar por dificuldades financeiras para sustentar a si e a seus dois filhos,
Simone Sauvelle encontra num pequeno vilarejo na costa da Normandia uma
oportunidade irrecusável para trabalhar como governanta de um imponente
casarão. O salário era generoso e seu empregador, Lazarus Jann, também oferecia
a possibilidade de se instalarem numa modesta residência construída no vértice
do cabo do pequeno vilarejo, a Casa do Cabo. Mesmo que precisassem abandonar
Paris, aquela era uma luz de salvação que permitiria a Simone garantir o
sustento dos filhos, mas que também mudaria para sempre a vida de sua família.
Em meados de junho, Simone
e seus filhos, Irene e Dorian, partem para Baía Azul, uma pequena comunidade
pesqueira onde vivia o excêntrico inventor que empregaria Simone. Naquela costa
Lazarus construíra um grande casarão repleta de máquinas e autômatos bizarros e
maravilhosos e a qual dera o nome de Cravenmoore. Ali o inventor vivia recluso
com sua esposa enferma e ao lado de sua fábrica de brinquedos fechada vários
anos antes.
O vilarejo era tranquilo e
a comunidade hospitaleira e, por isso, os Sauvelle não encontram dificuldades
para se adaptar nem a casa nem ao lugar, sobretudo com a ajuda da animada e
faladeira Hannah, a jovem cozinheira de Cravenmoore e que logo faz amizade com
Irene e vai com ela a toda parte falando (até os mínimos detalhes) sobre tudo e
sobre todos do lugar. É também através de Hannah que Irene conhece o primo da
moça, o jovem Ismael, e seu veleiro, Kyaneos, com o qual o rapaz foge para o
mar sempre que tem vontade.
Não demora muito para que
os dois jovens se encantem um pelo outro e Ismael leve Irene para conhecer o
farol e a costa em seu veleiro. Contudo, o clima de felicidade e de romance de
verão dura pouco quando, numa certa manhã, Hannah é encontrada morta no bosque
próximo à casa de Lazarus em circunstâncias misteriosas. Decididos a descobrir
o mistério por trás da morte da moça os dois jovens acabam por desenterrar o
passado assombrado e trágico de Cravenmoore e seus habitantes.
Resenha
Último livro da Trilogia da Névoa, série de
livros juvenis independentes escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, As Luzes de Setembro é pouco mais do que a repetição das
fórmulas empreendidas pelo autor nos dois romances que o antecederam.
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A Trilogia da Névoa em ordem cronológica de publicação. |
Assim como O Príncipe da Névoa e O Palácio da
Meia-noite este é mais um livro
que explora não somente as temáticas
góticas e de mistério comuns a toda a obra do autor como também traz novamente
o sobrenatural como elemento definidor da trama (uma criatura feita de sombras,
um casarão imenso com inúmeros cômodos e cheio de autômatos sinistros). O plot do livro em
essência segue a mesma fórmula dos demais da trilogia, mas resgata sobretudo
aquela usada em O Príncipe da Névoa:
-
Uma localidade
pequena e litorânea cuja principal marca é a presença de um farol;
- Um casal
adolescente recém-formado (ele apaixonado pelo mar, ela forasteira que acabara
de mudar-se e com a família e um irmão menor que também protagoniza na
história);
- Um mistério
tenebroso e trágico que envolve o passado de um morador da localidade e que
emerge para pôr os protagonistas em risco de vida;
-
Um punhado de
jovens inteligentes e proativos;
-
Lugares
arruinados, amaldiçoados ou bucólicos;
-
O verão local
como marca temporal e romântica (amor de verão);
-
Grandes cenas
cinematográficas;
- Uma criatura
quase mitológica que tem sua origem em uma comunidade suburbana paupérrima da
infância pobre de um dos personagens.
-
[ALERTA DE SPOILER] e um desfecho trágico.
Tantas semelhanças entre
os plots dos três livros – mas sobretudo com o primeiro deles
– é explicado pelo próprio autor que chegou a afirmar que As Luzes de Setembro foi uma
forma de “solucionar alguns elementos que não havia resolvido do jeito que
gostaria em O Príncipe da Névoa”.
De fato, ambos os livros são compostos com marcas temporais, atmosferas e
cenários parecidos, além de uma mesma referência a névoa que dá nome a
trilogia.
O que vai diferenciar esse
roteiro dos demais são as circunstancias em que cada fato se dá. Os períodos
históricos são um destes elementos. Muito próximos (1943, 1932 e 1937,
respectivamente), mas em momentos um tanto distintos (período entre guerras e
2ª Guerra Mundial), mudando sensivelmente no caso do segundo livro por conta do
seu deslocamento geográfico da Europa para o subcontinente asiático.
Mudam na trama também o
passado dos personagens, o tipo de natureza do vilão principal bem como suas
motivações e poderes, a função de alguns elementos dentro da narrativa (com
destaque para o farol), a composição dos grupos familiares dos protagonistas e
a função e destaque que cada um deles têm na trama com maior ou menor
protagonismo. Além disso, nesta história a pequena comunidade litorânea que
serve de ambientação ganha um nome e uma localização espacial um pouco mais
definida.
Mas uma marca distintiva
entre os romances que mais me chamou a atenção está no fato de que em As Luzes de Setembro o autor reforça ainda mais o caráter de
terror da trama. Trata-se de algo que ele inicia em O Palácio da
Meia-noite, porém já nos últimos capítulos. Ao
contrário, em As Luzes de Setembro o
terror e a tensão estão presente em mais da metade da peça, se insinuando tanto
em pequenas coisas – a exemplo do pequeno autômato[E1] em forma
de anjo que se move sozinho e cujos olhos brilham na escuridão ao lado da cama
do garoto Dorian –, até em momentos maiores como nas cenas de perseguição
bastante cinematográficas e cheias de “efeitos especiais” envolvendo o casal
jovem da trama. Além disso, os elementos de terror vão mudando aos poucos: de
gatos estranhos, névoa e navios afundados, o autor segue para espetáculos
incendiários, trens fantasmas e colossais estações ferroviárias arruinadas, e
por fim, retorna à névoa acrescida de criaturas mecânicas que se movem sozinhas
e doppelgänger.
Os personagens de As Luzes de Setembro seguem também quase as mesmas fórmulas com
as quais foram construídos os protagonistas e personagens secundários dos dois
livros anteriores. Por isso não sinto nenhuma vontade de alongar a resenha
falando deles. Cito apenas que vejo em Ismael uma cópia quase idêntica de
Roland de O Príncipe da Névoa; em Irene,
uma Alicia que ganha protagonismo, que é mais família, mais sociável, madura e
mais comunicativa, e, por fim, vejo em Dorian um Max que perde o faro
investigativo, a força e o relevo na trama para concedê-los à irmã (troca de
papéis), mas sem ficar de todo destituído do seu protagonismo. Quanto aos
demais, acho-os tão fracos que não quero me deter neles.
A primeira aparição de Andreas Corelli?
Mas algo que me causou
surpresa foi a participação (rápida, mas decisiva) em As Luzes de Setembro de um
personagem do universo de O Cemitério dos Livros
Esquecidos: o diabólico arcanjo Andreas Corelli[E2] .
![]() |
Interpretação artística do personagem Andreas Corelli. Artista: Bertus Dokter. |
Corelli é um editor dotado
de uma áurea e aparência sobre-humana e que gosta de fazer pactos com artistas
malditos. Ele aparece pela primeira vez na série d’O Cemitério em seu segundo
livro, O Jogo do Anjo, cuja trama é tão intrincada que nos faz duvidar da
real existência de Corelli.
As razões da minha surpresa ao encontrar este personagem na trama do terceiro
juvenil de Zafón são, na verdade, duas.
A primeira delas é que este foi um fato atípico na trilogia. Em nenhum dos
outros dois volumes Zafón faz com que enredos de séries diferentes se
entrecruzem ou mesmo que um personagem transite entre os dois universos. O
primeiro caso de fato não acontece em nenhum dos livros, mas o segundo acontece
neste. Ainda assim, achei bastante coerente a inserção do personagem ao se
levar em consideração sua natureza sobrenatural e que combina muito mais com a
atmosfera fantástica, sobrenatural e de terror da Trilogia da Névoa. Muito mais do
que com os livros de O Cemitério
dos Livros Esquecidos, que tem uma pegada mais realista – mesmo
em o Jogo do Anjo que nos faz crer
ser Corelli uma alucinação do protagonista.
A segunda razão de minha surpresa está ligada a origem
do personagem. Achava eu que Corelli,
enquanto personagem, havia nascido em O
Jogo do Anjo (2008) e depois transportado para outras tramas, a exemplo do
conto El Príncipe de
Parnaso. No entanto, tendo sido As Luzes de Setembro uma obra de 1995 – uma diferença temporal de 13 anos entre os dois livros – fica
evidente que O Jogo do Anjo não foi a
primeira aparição do personagem na obra de Zafón. Talvez o autor aproveitou no
livro de 2008 um personagem de grande
potencial, mas que fora pouco explorado em 1995. Digo talvez, porque há a
possibilidade de que Corelli tenha aparecido em algum outro conto mais antigo
do autor e isso só poderei comprovar quando tiver a oportunidade de ler La Ciudad de Vapor, ainda sem tradução no Brasil.
Um enredo mediano muito bem escrito
No que diz respeito a escrita, Zafón continua
impecável. Linguagem leve, mas elegante. Texto fluido e bem estruturado.
Prosaico até onde precisa ser, sem destituir o texto de poética e das
construções estilísticas (metafóricas) corriqueiras em sua obra.
Na narração ele aproveita
a estatura narrativa de O Palácio da
Meia-noite alternando entre
narradores-personagens – que se manifestam em cartas trocadas entre o casal da
trama após a ocorrência dos fatos narrados e que ajudam a dar uma noção de
continuidade –, e um narrador predominante em terceira pessoa. Assim como no
caso supracitado, os narradores-personagens possuem uma nostalgia quase poética
em seus brevíssimos discursos (apenas dois, um para iniciar – Ismael – e outro
para encerrar o livro – Irene).
O livro foi para mim uma
experiência bem mediana e nada em particular me chamou a atenção para que eu
gostasse um pouco mais da trama ou do enredo em geral.
No que diz respeito as ideias do autor para o enredo
do livro, achei-as bem medianas, mas talvez porque eu esperasse muito mais de
Zafón do que ele de fato entregou nesta obra e nas demais que compõe a série.
Essa minha queixa já é antiga.
Apesar de gostar e achar original a inserção dos
autômatos na trama, algo que até
então só havia visto no filme A Invenção
de Hugo Cabret (2011) e sem o elemento de terror, não achei As Luzes de Setembro tão criativo, mas uma junção de elementos
já nas obras do autor, somado a algumas histórias já muito exploradas pela
literatura em geral: amores de verão, artistas (cientistas)
loucos, doppelgänger,
diários/escritos deixados por pessoas já mortas e/ou desconhecidas, problemas
familiares trágicos na infância, etc.
O que eu
vejo ganhar força neste livro são os conhecidos elementos cinematográficos que
autor explora bastante em O Palácio da Meia-noite e que parecem
ter fechado um pouco os buracos deixados pela leve sensação de falta de enredo
que o livro me deixou.
As construções
cinematográficas são boas e Zafón não se perde nesta que é uma das mais
destacadas marcas de seu trabalho literário e que, acredito eu, é resultado e
influência dos anos em que o autor trabalhou como roteirista (o autor ainda
conta no prefácio que escreveu As Luzes
de Setembro tendo a sua janela a vista da Melrose Avenue bem como das letras de Hollywood em sua colina).
Quanto aos pontos
negativos, acho que eu resumiria da seguinte maneira: um enredo mediano muito
bem escrito, que não empolga, que é bastante previsível em algumas partes e que
no final você nem gosta nem desgosta. Em outras palavras, o fim da descida que
começara em O Príncipe da Névoa.
Isso, no entanto, não me surpreende muito, porque é comum que sagas – mesmo
aquelas de livros independentes – percam fôlego com o avanço dos volumes porque
vão se esgotando os recursos ou as temáticas.
E o que dizer do desfecho?
Basicamente o mesmo que já disse no parágrafo a cima: mediano. Não surpreende
porque já era previsível, mas é um pouco menos trágico (sem deixar de sê-lo, no
entanto). Acredito que o que dá um up no
fim do livro é a carta de Irene à Ismael que dá uma noção de continuidade na
narrativa selando de vez o enredo.
A edição lida é da Editora
Suma das Letras, com tradução de Eliana Aguiar. Do ano de 2013 e possui 232
páginas. O título original em espanhol é Las Luces de Septiembre.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro
disponível no Google Books.
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