domingo, 28 de fevereiro de 2021

[Especial Zafón] La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

 Por Eric Silva

28 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“Bienvenido a un nuevo libro – desgraciadamente el último – zafoniano”

(Émile de Rosiers Castellaine, La Ciudad de Vapor)

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Livro póstumo de Zafón, La Ciudad de Vapor em sua edição original. 

Reunião de todos os contos escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) traz onze breve narrativas que resgatam as origens de personagens da quadrilogia que se inicia com o livro A Sombra do Vento, ampliando o universo literário da saga. Traçando uma linha histórica da cidade catalã de Barcelona, a cidade feita de vapor, desde a antiguidade até um futuro incerto e apocalíptico, a coletânea reúne narrativa carregadas de melancolia, tragédia e maldição, com personagens taciturnos, desgraçados e malditos, compondo um caleidoscópios de narrativas góticas, de formação, fantásticas, históricas e mesmo de terror, escritas com o melhor do estilo cinematográfico, poético e metafórico de Zafón.

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês, penúltima a ser resenhada para o Especial Zafón e última a ser publicada no mundo.

Sinopse do enredo

La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) é uma coletânea que reúne onze contos de Carlos Ruiz Zafón, três deles inéditos e os demais publicados de forma dispersa em diferentes publicações entre os anos de 2002 e 2012. Contos que ampliam o universo literário de sua mais importante obra, a quadrilogia d’O Cemitério dos Livros Esquecidos, além de apresentar personagens novos que não figuram na série e personagens reais cujas vidas são recriadas pela pena gótica e trágica do escritor barcelonês.

O conto que inaugura a obra, Blanca y el adiós, nos dá vislumbres da difícil infância de David Martín, um dos muitos gênios malditos e desafortunados da Zafón, no caso um escritor, que é também personagem principal do livro O Jogo do Anjo. Neste conto até então inédito, Zafón narra como o pequeno David conheceu a menina Blanca, uma garota rica que experienciava a dor causada pelos problemas familiares entre seus pais e que, pelo acaso de um encontro fortuito no calçadão de uma livraria, acaba conhecendo David e se tornando, mais tarde, a primeira musa inspiradora das narrativas fantásticas do garoto.

Além de Blanca y el adiós, no livro, Zafón dedica ainda um segundo contos ao personagem de O Jogo do Anjo. No desconcertante Sin nombre, o autor narra a história sombria e misteriosa do nascimento de David, bem como nos apresenta as várias incógnitas que giram entorno da identidade de sua mãe, uma garota desesperada que vaga pelas ruas cobertas de neve de uma Barcelona indiferente enquanto sente as dores do parto e busca auxilio.

Em Una señorita de Barcelona, Zafón conta a história soturna de Eduardo Sentís, um fotografo arruinado que herdara as dívidas de um negócio falido de seu patrão e que encontra como recurso de vida sua própria filha e o talento da menina para encarnar personalidades de pessoas mortas para dar pequenos golpes em familiares e amantes desesperados e enlutados.

Já em Rosa de Fuego, o escritor dá um recuo no tempo e retorna ao século XV para contar as origens da família Sempere e principalmente do Cemitério dos Livros Esquecidos, a colossal biblioteca secreta e importante personagem dos livros da série que leva seu nome. Neste conto, resenhado individualmente aqui no blog em dezembro de 2020, Zafón narra a história da chegada do hacedor de laberintos, Edmond de Luna, a uma Barcelona arrasada pela febre e de como o regresso do desfortunado engenheiro seria responsável por uma tragédia ainda maior que “habría de teñir el cielo de la ciudad de fuego y sangre”.

A temática das origens dos Sempere e do grandioso palácio de livros têm continuidade no quinto conto da coletânea, El Príncipe de Parnaso, também resenhado individualmente aqui no blog. Nesse conto Zafón avança pouco mais de um século em relação a Rosa de Fuego e recria de forma trágica, gótica e romântica a história da juventude de Miguel de Cervantes, escritor real e expoente da literatura clássica espanhola, para contar como este cai nas garras diabólicas de Andreas Corelli, outro personagem fundamental do livro O Jogo do Anjo.

Por sua vez, Leyenda de navidad toma emprestada a temática do natal para contar mais uma história (esta muito breve) de terror e de maldição. Em outro contexto, o tema frio e obscuro de um dia natalino na cidade catalã é novamente resgatada na história seguinte, Alicia, al alba, que narra o encontro de um jovem empregado de um bazar com uma misteriosa moça que tenta penhorar uma preciosa guirlanda de perolas e safiras durante os bombardeios da Guerra Civil Espanhola.

Na sequência, Hombres de gris, avança para o momento histórico espanhol seguinte, ou seja, para o contexto do regime franquista, e narra a história de um assassino de aluguel que retorna a Barcelona que abandonara muitos anos antes, a fim de cumprir a mais difícil de suas missões e salvaguardar a estrutura que sustenta o regime ditatorial de Franco.

Por fim, as três últimas narrativas são breves e versam sobre temas muito distintos entre si.

Na curtíssima narrativa de La mujer de vapor, Zafón fala de como um ex-detento não tendo onde morar passa suas noites em praça pública até ser convidado por uma moça para viver em um dos muitos apartamentos abandonados de um prédio condenado, e lá encontra a felicidade em meio a bons e improváveis vizinhos. Enquanto isso, em Gaudí em Manhattan, Zafón volta aos grandes personagens históricos da Espanha para contar sobre o misterioso projeto de um hotel planejado pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí que deveria ter ser construído na ilha de Manhattan, o que jamais chegou a ser concretizado.

Por fim, La Ciudad de Vapor se encerra com a mais breve das narrativas da coletânea, Apocalipsis en dos minutos, no qual o narrador conta seus últimos momentos de vida antes do fim do mundo.

Resenha

Livro póstumo de Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor é também o último a ser publicado do autor barcelonês cuja obra literária conta agora com nove livros. A coletânea reúne narrativas curtas de um Zafón maduro e fortemente influenciado pela atmosfera com a qual ele revestira A Sombra do Vento, e cada vez mais distante daquele Zafón que escrevera a cinematográfica porém infantil Trilogia da Névoa.

Os contos reunidos em La Ciudad de Vapor não só resgatam as origens dos principais personagens da tetralogia como também recriam a Barcelona – desde sempre antiga – de A Sombra do Vento. Recriam a melancolia e a frieza de uma cidade ora mergulhada em neblina, ora recoberta de neve e gelo, mas sempre indiferente e impassível em relação aos dramas, às violências e às tragédias vividas por seus filhos. Uma cidade que abriga emudecida as muitas histórias que se interpõem e compõem o teatro e o palco do drama humano encenado por muitas vidas anônimas e públicas, mas todas elas marcadas pela dor, pela perda, pela miséria e, sobretudo, pela tragédia.

Não há um só conto desta obra que não carregue as marcas da tragédia, da crueldade ou então da decadência humana, tendo algumas poucas almas um fulgor que acalenta os perdidos, os malditos e os desgraçados que perfilam nas páginas do livro. Não é à toa que os cenários são quase sempre soturnos, noturnos, decadentes, cobertos de névoas, de neve e gelo ou chuvosos.

Como disse, neste conto a decadência e a corrupção humana estão por todo o livro, mas destacadamente em Una señorita de Barcelona. Nele Zafón relata o declínio de um pai que pouco hesita – em troca de dinheiro – em submeter sua única filha, ainda pequena, a fazer o papel de substituta da menina morta de uma família abastarda e enlutada. Mais tarde, o mesmo pai também não hesita em prostituir a filha feita moça e fazer dela seu ganha-pão. Uma garota que passa a viver narrativas que ela mesmo cria para iludir e roubar homens consumidos pela dor e pela perda, e que no processo se dilui na identidade de pessoas mortas como forma de preencher os vácuos e os vazios de sua própria vida.

Mas, mais do que um conto trágico, Una señorita de Barcelona também resgata, em escala menor, um estilo de escrita zafoniana que cria um caleidoscópio de histórias e tragédias pessoais que se cruzam e se entremeiam a partir do encontro de várias pessoas com passados melancólicos e desgraçados. Trata-se de um caleidoscópio de narrativas que Zafón explora intensamente em Marina e sobretudo na quadrilogia do Cemitério.

Dos contos, os mais breves são precisamente os mais potentes, surpreendentes e impactantes. É o caso de Sin nombre, o mais desconcertante de todos, o mais sombrio, cru e perfeito de toda a obra. Nele Zafón traz a vilania e podridão humana tenebrosamente potencializada por um elenco de personagens incógnitos e dentre os quais somente a criança recém-nascida possui um nome. Feroz, este é o melhor dos contos da obra e o anonimato de seus personagens amplifica seu caráter sombrio, porque aquilo que não tem nome a mim me parece também não ter rosto, o que é ainda mais sombrio.

Forte é também o desfecho surpreendente de La mujer de vapor bem como as cenas descritas nos parágrafos que encerra o enigmático Alicia, al alba. Este último é também outro conto melancólico, envolto em mistérios, em brumas e neves, o que ressaltou em mim a impressão de que Zafón tinha atração não só pela tragédia, mas pela falta de calidez do inverno, pelo não dito e pelos mistérios de um rosto feminino perdido no passado e marcado pela tristeza silenciosa.

Por fim, dos contos mais curtos, o menor de todos, Apocalipsis en dos minutos, é exatamente o que seu título anuncia: uma narrativa com um tempo narrativo tão curto e escrito em linhas tão breves que o próprio texto pode ser lido em dois minutos.

Digo que em conjunto são contos que, como elucida o editor Émile de Rosiers Castellane, trazem elementos de muito gêneros literários: os livros de formação (aprendizagem), os históricos, as obras góticas, os thrillers – sobretudo de terror –, as histórias românticas e o caleidoscópio de narrativas do qual falamos, ou, nas palavras de Castellane, “el relato dentro del relato”. Ao mesmo tempo, eles criam uma linha do tempo da história da mais importante cidade catalã, indo dos finais da Idade Média no trágico e fantástico Rosa de Fuego até o futuro impreciso porém igualmente trágico e (agora) apocalíptico de Apocalipsis en dos minutos.

O estilo cinematográfico e as construções metafóricas e estilísticas que tanto caracteriza a fase madura de Zafón estão lá também e representaram para mim – que li a obra em seu idioma materno – um desafio de tradução e compreensão linguística, semântica e metafórica. Através destas construções metafóricas e cinematográficas Barcelona se veste com mantos de fogo, de cinzas e de neve, neblina e vapor, justificando o título da coletânea e resgatando uma vez mais os cenários e contextos prediletos de um autor que flertava com o trágico e com o gótico e que gostava de desnudar as misérias humanas em narrativas repletas de aventuras, História, poesia e mistério.

Uma vez mais me despeço de meu escritor predileto, de suas tramas carregadas de mistérios e melancolias. Falta agora resenha apenas o livro Marina, e terei resenhado toda a sua obra.

Enfim, sigo ansioso pela publicação de La Ciudad de Vapor em português para que ele ocupe, junto aos seus irmãos, o espaço que lhe é de direito na minha estante.

A edição lida é digital da Editora Grupo Planeta, do ano de 2020 e possui, em sua edição física, 224 páginas.

***

Nota: os leitores que não foram iniciados no labiríntico e caleidoscópio universo do El Cementerio de los Libros Olvidados sugiro que leia primeiro a quadrilogia que começa com A Sombra do Vento e encerre com La Ciudad de Vapor. As narrativas farão mais sentido com estas referências.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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