quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Lágrimas na Chuva – Rosa Montero - Resenha

Por Eric Silva


“Vi coisas nas quais vocês não acreditariam. Atacar naves em chamas para além de Órion. Vi Raios-C brilharem na escuridão perto da Porta de Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. É hora de morrer.”
(Extraído do livro Lágrimas na Chuva de Rosa Montero)

Futurista, distópico, policial e também ficção científica Lágrimas na Chuva é um livro completo e incrível escrito pela espanhola Roa Montero e o quarto livro da nossa campanha do #AnoDaEspanha. Uma leitura interessante em um universo primorosamente construído pela sua autora.

Sinopse

O ano é 2109 e o mundo é bastante diferente do que se conhece hoje. O ser humano já não é mais a única criatura cognoscitiva a habitar a Terra e divide seu espaço com alienígenas e seres artificiais. Por sua vez a Terra do século XXII é um mundo marcado por conflitos, pela desigualdade e pela tensão entre espécies. Neste cenário a detetive particular Bruna Husky, uma androide, ou melhor, uma replicante como são chamados em sua época os androides orgânicos criados em laboratório, se vê implicada em um caso que ameaça a frágil paz entre humanos e androides quando um surto de assassinatos cometidos por replicantes deixa tensa a cidade de Madri dos Estados Unidos da Terra. Ao mesmo tempo os arquivos que contém a história mundial estão sendo modificados para incitar o ódio aos replicantes.

Contratada pelo Movimento Radical Replicante para descobrir o que está por trás da onda de assassinatos dos androides e da crise que aos poucos desestabiliza o governo terrícola, Bruna embarca em uma investigação que pode modificar profundamente sua vida e pôr em jogo a paz entre as espécies.

Resenha

Uma distopia de ficção científica e também um romance policial, Lágrimas na Chuva, da escritora espanhola Rosa Montero Gayo, reúne alguns dos meus gêneros prediletos em um único livro. A obra da autora é sem dúvida uma explosão de criatividade. Rosa compõem não só uma narrativa interessante como todo um mundo futurista em ricos detalhes e que vão desde a história de sua gênese aos problemas sociais ali existentes.

A Terra do século XXII é habitada por humanos, alienígenas imigrantes de seus planetas natais e também por replicantes, androides orgânicos criados através de células troncos, maturados em laboratório e quase idênticos aos seres humanos tanto na aparência quanto nas capacidades cognoscitivas. Porém este caldeirão de espécies já havia sido décadas antes o cenário de uma terrível guerra entre humanos e androides, quando estes últimos lutaram para terem seus direitos reconhecidos. Mesmo depois da conquista, a duras penas, de uma convivência pacífica entre as espécies através do reconhecimento dos direitos replicantes, muitos grupos supremacistas humanos ainda alimentavam pelos reps – como também são chamados os replicantes – um forte sentimento racista.

Mas neste universo futurista de Lágrimas na Chuva cabe ainda uma série de outras questões que vão além das tensões interespecíficas. Em sua narrativa Montero cria uma sociedade de poucos privilegiados, de desigualdade e discriminação, marcada por conflitos constantes e problemas ambientais gravíssimos. Uma “humanidade” em que o oxigênio é comercializado e para aqueles que não podem pagar pelo ar que respiram é reservada a segregação socioespacial em áreas onde a elevada contaminação do ar reduz a expectativa de vida de jovens e adultos.

A personagem de Rosa Montero, Bruna Husky, desenhado por Alejandro Valdrighi para a versão em quadrinhos de "Lágrimas na Chuva". Fonte: El País.
O avanço tecnológico permitiu as viagens intergalácticas e o desenvolvimento de vida inteligente artificial e orgânica como os replicantes. Mas as viagens intermundiais podem ser bastante perigosas e os organismos criados em laboratório além de terem uma vida extremamente curta (10 anos) morrem de uma doença brutal para a qual não existe cura ou possibilidade de prolongamento da vida: o Tumor Total Tecno.

No plano político, a Terra vive com o cenário de terrorismo e fragilidade do sistema democrático. As nações terrícolas se unem para formar um novo Estado, os Estados Unidos da Terra e outras nações se formam em grandes estruturas artificiais que orbitam o planeta. Por sua vez, toda a história da “humanidade” é catalogada e armazenada por uma única organização, o Arquivo Central dos Estados Unidos da Terra.

Rosa Montero
Trata-se de um mundo que certamente eu não gostaria de viver, mas que Rosa Montero consegue conceber com uma criatividade espantosa e, para descrevê-lo em seus detalhes, a autora não só usa inteligentemente os personagens da trama como também a transcrição de alguns dos documentos do Arquivo Central. Destas formas ficamos sabendo de forma dosada e progressiva toda a história de como aquela nova sociedade se formou, a origem de seus problemas e os avanços tecnológicos por ela alcançados.

Sobre a personagem principal posso dizer que é uma figura interessante e nada sintética. Vou explicar.

Mesmo sendo androides os replicantes são tão humanos quanto nós, são inclusive feitos de células orgânicas. Pouco os diferenciam de nós, e nos assemelhamos pelas capacidades emotivas e intelectuais, o que nos difere é uma ou outra característica física, a origem de nascimento e o fato de que estes não possuem parentes ou infância. Foram criados para tarefas pesadas e de combate mas se igualaram a nós naquilo que nos faz humanos. Com Bruna não é diferente. Ela é uma rep. forte física e emocionalmente falando, mas também consegue ser sensível. Tem suas paranoias e suas dores. É impulsiva e fala o que lhe vem à mente sem medir muito bem as suas palavras, ainda que depois ela se arrependa. Um temperamento difícil enfim. E além disso amarga a expectativa da morte certa e datada, que ela conta regressivamente, a todo o momento, em anos, meses e dias. É certamente uma pessoa oprimida pela sua condição de replicante à espera da chegada de seu TTT, a morte replicante.

Capa da edição espanhola de El Peso del Corazón
Em uma entrevista sobre o livro El Peso del Corazón, que dará continuidade a Lágrimas na Chuva – ainda sem publicação no Brasil – a autora afirma que Bruna é a personagem com quem mais se identifica por se parecer muito com ela. Fico me perguntando que traços as aproximam. Me pergunto também que tipo de pessoa seria Rosa Monteiro e isso me leva a pensar que deveríamos saber mais sobre os autores que lemos, não é mesmo?

Com certeza Lágrimas na Chuva é um livro promissor, mas que deixou um pouco a desejar com seu desfecho um tanto em aberto. O segredo é revelado, mas a forma como tudo se dá quebra um pouco do ritmo da história. A explicação é pouco convincente até mesmo para os personagens e a sensação é que a trama do livro é só a ponta do iceberg, como se a autora reservasse algo maior para outro livro. Por isso minha esperança está em El Peso del Corazón que fora classificado pela Porto Editora como o livro mais realista da autora.

Por fim, gostaria de comentar que a primeira coisa que me deixou curioso no momento em que esbarrei nesse livro durante a montagem do itinerário da campanha do #AnoDaEspanha foi o motivo de ser seu título tão singular: Lágrimas na Chuva do original em espanhol Lágrimas en la Lluvia. Esse título possui uma estética interessante que parece quase filosófico e de imediato evoca na nossa imaginação uma imagem tão bela quanto inquietante de alguém que chora embaixo da chuva. Acho que foi isso que me fez escolher este livro em lugar de outras obras de Rosa como A Louca da Casa ou Instruções para Salvar o Mundo. Foi de certo a imagem provocada pelo título. Pensei inclusive em contar aqui o motivo do título, mas não vou. Deixei apenas uma pequena pista no começo da resenha.

A edição lida é da Editora Nova Fronteira, do ano de 2014 com 368 páginas e tradução de Celina Portocarrero.

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