Por Eric Silva
Soldados de
Salamina é uma narrativa que consegue misturar realidade e ficção
de tal forma que se torna impossível separar aquilo que é real daquilo que é
apenas ficcional. É desta forma que Javier Cercas, quinto escritor lido na
campanha 2016 #AnoDaEspanha, nos conta um pouco da história da Guerra Civil
Espanhola ocorrida na década de 1930. Neste livro, o autor, que também figura
como um dos personagens da narrativa, nos conta a trajetória de Rafael Sánchez
Mazas, um dos importantes nomes que contribuíram para a entrada do fascismo na
Espanha e a consequente ascensão do ditador Franco ao poder. Uma narrativa e
também um relato real, Soldados de
Salamina é mais um livro a falar de um dos períodos mais conturbado e
sombrio da história espanhola.
Sinopse
Javier Cercas é um escritor e
jornalista que após se desiludir com sua carreira literária resolveu retornar
ao jornalismo. Porém tudo muda para Javier depois que em uma confusa entrevista
com Rafael Sánchez Ferlosio este lhe conta a história de como seu pai, Rafael
Sánchez Mazas, um dos membros fundadores da Falange espanhola[1],
havia conseguido sobreviver a seu fuzilamento já nos últimos dias da Guerra
Civil Espanhola e fugido das últimas tropas republicanas que se encaminhavam
para as fronteiras da Espanha com a França. Inquieto com a forma como a
história de Mazas se desenrola, Javier decide investigar a fundo e escrever
sobre aquele acontecimento que não era apenas mais um dos muitos ocorridos no
momento mais funesto da história espanhola, como também foi contributivo para a
legitimação do arbitrário e ditatorial governo franquista que viria em seguida.
Resenha
É impossível falar de Soldados de Salamina, livro do espanhol
Javier Cercas e quinto da nossa campanha do #AnoDaEspanha, sem que se fale
antes do que foi a Guerra Civil Espanhola, um dos maiores e mais importantes
conflitos ocorridos em solo espanhol e que jogou o país em um regime ditatorial
fascista de quase quatro décadas (1939 a 1976). Por isso começaremos com um resumo muitíssimo breve e até simplista dos
fatos históricos (nos dedicaremos melhor a eles em outro momento) e depois
falarei do livro.
Um
pouco de história
Barricada montada pelas ruas das cidades foram comuns durante o conflito |
A Espanha da década de 1930
passava por grandes dificuldades econômicas em decorrência da depressão gerada pela
crise de 29. Em meio ao cenário econômico muito pouco favorável, sobretudo,
para as classes mais pobres da população, o panorama político se encontrava
dividido e ao longo desta década dois grupos contrários emergem no cenário
ideológico e político espanhol: ao lado dos Nacionalistas, a Falange Espanhola,
representada por grupos conservadores da elite defensores de um regime
totalitário de cunho fascista no país, e, do lado dos Republicanos, a Frente
Popular, composta por líderes socialistas, anarquistas e comunistas desejosos
de uma mudança social mais profunda.
Em 1936 a esquerda sob ao
poder com Manuel Azaña Díaz, que teve como primeiro-ministro Largo Caballero,
conhecido político socialista espanhol[2]
que tentara implantar seu projeto de reforma agrária e trabalhista. Logo é
crescente a insatisfação dos setores conservadores da sociedade espanhola
(monarquia, grandes proprietários de terras, membros da Igreja Católica e o
Exército) e que levou os falangistas, apoiados pelo Exército insurgente sob o
comando do general Franco[3],
a tentarem um golpe de Estado que, no entanto, fracassou, mas que deu início a
guerra civil[4].
No combate que se inicia em
36, de um lado os nacionalistas com as tropas do Exército sob o comando de
Franco iam sistematicamente dominando grandes parcelas do país a exemplo de
Navarra, Castilha, Galícia, partes da Andalucía e Aragon, enquanto os
republicanos se entrincheiravam nas regiões de Madri, Valencia e Barcelona,
mais ricas, industrializadas[5] e onde o movimento
sindical era mais forte e organizado.
Contudo, em 1939, os
nacionalistas que além do Exército, contavam com o apoio da Alemanha Nazista e
da Itália Fascista vencem os Republicanos, cujas tropas resistentes eram
composta em sua maioria pelos trabalhadores organizados pelos sindicatos.
Findada a guerra Franco instaura um regime ditatorial que perdurará até mesmo
após sua morte.
Por sua vez, os momentos
finais da batalha foram marcados por muitos episódios de fuzilamentos em massa
de inimigos políticos cometidos tanto pelos republicanos como pelos
nacionalistas, estes últimos bastante citados em outra obra resenhada aqui no
blog: A
Sombra do Vento, de Zafón,
e cujo cenário da trama é a Barcelona franquista, ou seja, posterior ao fim do
conflito. Porém, diferentemente, o foco da narrativa de Javier Cercas se centra
no episódio de um dos fuzilamentos cometidos pelos republicanos.
O
Livro
Fotografia de Rafal Sánchez Mazas, um dos fundadores da Falange espanhola. |
Soldados de Salamina situado
nos tempos atuais vai, através da investigação jornalística de Javier Cercas –
que além do autor do livro é também seu personagem principal –, recriar os
conturbados momentos finais da guerra através da aventura de Rafael Sánchez
Mazas, um dos fundadores da Falange que escapa de ser fuzilado pelos
republicanos.
Mazas era um literato, um
escritor oriundo de uma família espanhola tradicional que inspirado pelas
ideias fascistas que conhecera na Itália ajudou na fundação da Falange
Espanhola e trabalhou ativamente para a difusão de suas ideias, tomando parte
no conflito civil que se desenrolou anos depois. Em 1937, Sánchez Mazas foge da
embaixada chilena, onde se encontrava refugiado, com o objetivo de tentar
atravessar a fronteira francesa, mas acaba por não fazê-lo e passa a liderar um
destacamento dos Nacionalistas. Contudo, pouco depois é preso e levado ao barco
Uruguay que se encontrava atracado em Barcelona sob o poder dos Republicanos.
Em 39, com outros presos
políticos é levado ao santuário de Santa Maria de del Collell, onde se dá o
episódio do fuzilamento do qual Mazas escapa por quase milagre e pela omissão
de um soldado republicano que não o mata e nem o entrega aos seus superiores após
encontrar o fugitivo em um bosque. É graças aquele inesperado e inexplicável ato
do soldado republicano que de fato Sánchez Mazas consegue escapar da morte. Dali
o falangista foge sem rumo pela região, conta com a ajuda de desertores locais
que o encontram e sobrevive. Contudo muito pouco se sabia do que acontecera
entre o momento de sua fuga do fuzilamento e o dia em que Sánchez se reuniu aos
nacionalistas.
Santuário de Santa Maria del Collell onde Sánchez Mazas ficou preso até o fuzilamento. Imagem de Olga Gairin |
Após ouvir toda essa história
do próprio filho de Mazas, Javier fica obcecado pelo que teria acontecido ao
falangista durante o tempo em que ele ficara vagando pelos bosques da região de
Cornellà de Terri. Movido pelo desejo de restituir os passos do falangista e
narrá-lo através de um relato real, o jornalista é levado a uma complicada
busca por informações e pelas pessoas que ajudaram Sánchez Mazas e vivenciaram
com ele aqueles momentos confusos.
Soldados de
Salamina é daqueles livros que não possui um grande mistério, nem
muita ação, ou um caso chocante, nem é mesmo uma narrativa filosoficamente
complexa. Todavia, o valor intrínseco da
narrativa está naquilo que ela te ensina sobre um momento histórico importante
que marcou um país e cujos desdobramentos podem ser sentidos até hoje. Por isso é daqueles livros que falam sobre
a aventura humana de viver, sobretudo, em sociedade.
Por tratar de um personagem real, com uma história que realmente
aconteceu é um tanto complicado no livro saber o que é real e o que é ficcional
porque ambos se misturam. Se isso não bastasse outros personagens também são
reais e centrais na trama a começar pelo autor da obra, Javier Cercas, e de seu
amigo, o também escritor Roberto Bolaño.
Foto da região de Cornellà del Terri, por onde Sánchez Mazas vagueia por alguns dias. A cachoeira da imagem é Salt de Can Figa e não aparece na narrativa. Fotografia de Carme Musquera |
O livro é dividido em três
grandes capítulos. No primeiro somos apresentados a Javier Cercas que além de
falar de sua malsucedida carreira literária nos explica como chegou a Sánchez
Mazas e, ao longo do capítulo, vamos acompanhando as suas investigações do
passado do falangista. Na segunda parte do livro, o jornalista segue narrando
suas descobertas nos dando detalhes da vida e da trajetória de Mazas durante os
conturbados anos da guerra. Porém insatisfeito com o resultado e sentindo que
seu relato está incompleto, Javier nos conduz ao terceiro e último capítulo no
qual emerge um outro personagem,
Miralles, um anônimo, ao contrário de Sánchez Mazas, mas que dava rosto aos
muitos que corajosamente combateram os fascistas, ajudaram a escrever a
História, mas foram por ela esquecidos. É neste último capítulo que aos
pouco vamos nos dando conta de que o objetivo de Javier não era de fato relatar
a aventura vivida por Sánchez Mazas, mas compreender porque o soldado que o
encontrou no bosque logo após sua fuga não o matou ou o delatou aos seus
oficiais.
Mesmo o livro tendo tudo para ser chato não o achei,
muito provavelmente porque estou muito envolvido com tudo que diz respeito à
Espanha, mas também porque é a obra de um autor cujo talento é bastante reconhecido.
Minha curiosidade sobre a
Guerra Civil Espanhola já era evidente porque este importante momento da
história espanhola já havia perpassado outras leituras, como já mencionei.
Também foi durante a Guerra Civil que Garcia Lorca, um dos autores que li
durante a campanha [vide],
perdeu sua vida sendo mais um dos que engrossou as fileiras de prisioneiros
fuzilados durante o conflito. A guerra civil e o posterior regime ditatorial
marcou a vida e a literatura da Espanha, isso para mim é mais do que evidente e
com Soldados de Salamina pude
conhecer um pouco mais o cenário da época, fechando um ciclo que se iniciou com
a Sombra do Vento.
Javier Cercas é escritor e tradutor espanhol. Soldados de Salamina é considerado seu magnus opus. |
Além do mais, a história de
Mazas é curiosa porque oportuniza ao leitor conhecer mais de perto quem foram
aqueles que irresponsavelmente alimentaram uma das doutrinas políticas mais
sádicas e desprezíveis da história, o nazifascismo, e que conduziu a história
da Europa para um dos seus momentos mais soturnos. Ao mesmo tempo o livro traz um importante ensinamento que o leitor só
encontrará já no final do terceiro capítulo.
Através de Miralles Javier
desperta para algo que é fundamental na vida humana, mas que toma contornos
mais nítidos em tempo de guerra quando muitas vidas são estupidamente
interrompidas e depois esquecidas, virão números, baixas: só morremos de fato quando não resta quem se lembre de nós. Isso é
algo que já refleti muito, principalmente quando penso nos milhões de seres
humanos que nos precederam, mas que apenas um pequeno punhado até hoje são
lembrados. Aqueles de fato já estão
mortos, porque para a História eles já não possuem rostos ou nomes.
Recomendo o livro para quem gosta de história, para quem
quer conhecer mais da Espanha, mas para os que buscam apenas mais uma
distração, advirto que Soldados de
Salamina pode não ser o melhor dos livros para isso. Por fim, o livro foi adaptado para o cinema em 2003 pelo diretor David Trueba.
A edição lida é da Editora
Asa Edições, do ano de 2002 e possui 176 páginas.
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[1] Organização política
espanhola inspirada no fascismo italiano fundado no ano de 1933.
[2]
http://historiadomundo.uol.com.br/idade-contemporanea/guerra-civil-espanhola.htm
[3] Francisco Franco Bahamonde
foi um militar, chefe de Estado e ditador espanhol, principal líder da revolta
nacionalista que deu origem a Guerra Civil Espanhola.
[4] http://www.infoescola.com/historia/guerra-civil-espanhola/
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