Um filme baseado em três contos de Manuel
Rivas
Por Eric Silva
“La lengua de la mariposa es
una trompa enroscada como un muelle de reloj. Si hay una flor que la atrae, la
desenrolla y la mete en el cáliz para chupar. Cuando lleváis el dedo humedecido
a un tarro de azúcar, ¿a que sentís ya el dulce en la boca como si la yema
fuese la punta de la lengua? Pues así es la lengua de la mariposa”.
(La Lengua de las Mariposas.
In: Rivas, Manuel. ¿Qué me quieres, amor?)
A infância é um momento de descobertas. O período da vida
em que um mundo cheio de mistérios se abre para nós. Mistérios que são
revelados um após o outro de diferentes maneiras, através da escola, da
observação dos adultos, do contato com os amigos e com a própria natureza. É o
momento de experimentar os primeiros amores e as primeiras dores, de conhecer o
significado da amizade e da perda. Uma viagem que nunca fazemos só.
Filme de José Luis Cuerda e baseado na obra de Manuel
Rivas, La Lengua de las Mariposas
narra a história de amizade e aprendizado entre o pequeno Mocho e seu professor
Don Gregorio nos meses que antecedem a Guerra Civil
Espanhola. Conta como aluno e mestre constroem uma relação de
aprendizagem através da escuta e do estabelecimento de laços de respeito,
admiração, cumplicidade e amizade, em uma época de grande instabilidade
política e no qual os métodos de ensino ainda eram baseados na violência.
Resenha
Foi em abril desse ano que
após fazer a leitura do livro A Sombra do Vento
do espanhol Carlos Ruiz Zafón
que decidi começar aqui no blog a campanha do #AnoDaEspanha. Hoje,
oficialmente, vou encerrá-la para que ano que em 2017 possamos homenagear um
novo país, uma nova literatura e um novo séquito de bons autores. E para
finalizar aquela que para mim foi a campanha mais especial de 2016, escolhi
fazer o segundo 7ª Arte com um filme espanhol especialíssimo que me emociona
muito pela delicadeza com que trata o tema da infância e da educação, mas que
infelizmente nunca vi em versão dublada para o português.
Moncho, interpretado por Manuel Lozano. |
Dirigido pelo diretor,
escritor e produtor de cinema espanhol José Luis Cuerda, La Lengua de las Mariposas (A Língua das Mariposas) é um drama que
conta a história de como surgiu a amizade de Moncho (Manuel Lozano) com seu
professor Don Gregorio (Fernando Fernán Gómez) e de como o menino superou seu
medo da escola. O enredo se passa no ano de 1936, às vésperas da Guerra Civil Espanhola
que mudaria os rumos da história do país e também dos personagens da trama.
Desse modo o filme perfila a vida cotidiana de uma pequena comunidade galega,
os posicionamentos políticos de alguns de seus moradores e os primeiros
movimentos dos grupos nacionalistas de extrema direita contra os esquerdistas
republicanos.
Personagem central da trama,
Moncho era um menino esperto e muito ativo apesar de sua asma. Vivia com seus
pais e o irmão em uma pequena vila rural da Galícia. O pai, Ramón (Gonzalo
Martín Uriarte), era um alfaiate muito ligado a Frente Republicana Espanhola e
durante o período em que esteve adoente ensinou o filho caçula a ler. A mãe,
Rosa (Uxía Blanco), por sua vez, era uma dona de casa desvelada e bastante
religiosa que vivia preocupada com o posicionamento político do marido.
Enquanto que o irmão, Andrés (Alexis de los Santos), era um rapaz aprendiz de
saxofonista e que mantinha uma boa relação com o irmão caçula.
Moncho e sua família reunidos durante a ceia |
No ano de 1936, quando se
desenrola a trama narrada pelo filme, o único medo de Moncho era ir para a
escola, onde as crianças costumavam apanhar de seus professores. No primeiro
dia de aula, quando foi chamado por seu novo professor, para que se
apresentasse aos colegas de turma, o menino apreensivo e com medo urinou-se e
fugiu para o bosque onde passou a noite escondido, deixando a todos
preocupados. Contudo, Don Gregorio estava longe de ser o professor que Moncho e
imaginava. Ao contrário era um senhor bonachão e um intelectual republicano em
vias de se aposentar do ofício da docência. Por isso, preocupado com a atitude
do novo aluno, Don Gregorio vai pessoalmente a casa da família para
desculpar-se com o menino e tranquilizá-los, pois ao contrário dos demais
docentes da época, o velho professor tratava seus alunos com complacência e
buscava usar uma metodologia de ensino pautada no respeito, na não-violência e
na formação de sujeitos livres. Assim, pouco a pouco, com sua inteligência e
seu método de ensino, o velho professor vai conquistando a confiança e a
atenção do pequeno que via um mundo novo desabrochar-se para ele.
É também em 1936, ora na
companhia de seu amigo Roque, ora na de seu irmão, que Moncho vai descobrindo
coisas do mundo dos adultos como a arte, o amor e o que é o sexo, através das
histórias e do convívio com as pessoas da região, como Carmiña, uma garota que
vivia isolada com sua mãe e seu cachorro Tarzan, mas que se encontrava às
escondidas com um rapaz da vila. Encontros que furtivamente Moncho e Roque
espiavam.
Uma das aulas ao ar livre do Don Gregorio (centro), quando este fala da língua das mariposas (borboletas). |
Ao longo daquele ano, o pardal, como Moncho era chamado por su maestro, ao mesmo tempo que desfrutava a liberdade de sua infância, das brincadeiras e
da escuta das aulas e palavras de seu professor, o menino vai acompanhando a
vida dos moradores, os primeiros progressos da carreira de saxofonista do irmão
e o aumento do fervor dos republicanos à medida que as notíciais dos embates
políticos com os nacionalistas vinham de Madri. Contudo, 1936 não seria para Moncho apenas um momento de novas
descobertas, seria também o ano em que conheceria a dor, o ódio e novos medos
trazidos pelos prenúncios de tempos terríveis de guerra. Coisas complicadas e
irracionais demais para que o menino pudesse compreender.
La Lengua de las Mariposas é uma história singela e tocante, uma narrativa contada a
partir de pequenas cenas do cotidiano que nos vão falando de seus personagens,
dos ideais, do medo e da luta pela sobrevivência. Um calidoscópio da vida, da
infância, do amor, da política e da educação do início do século XX na Espanha,
às vésperas do conflito que marcaria a vida, a literatura e o cinema espanhol
até os dias atuais. Um enredo que foi composto por Cuerda a partir de três
contos distintos do livro ¿Qué me
quieres, amor?, obra do também espanhol Manuel Rivas e que infelizmente,
até onde consegui pesquisar, não possui tradução para a língua portuguesa.
Com grande sensibilidade
criativa o diretor costurou entrono do enredo do conto principal, que dá nome
ao filme, as histórias de outros dois contos: Un saxo en la niebla e Carmiña.
Para tanto o diretor espanhol vai ligando os personagens dos diferentes contos
e associando-os através da figura de Moncho e de sua família, que originalmente
eram personagens apenas de La Lengua de
las Mariposas.
Não tenho prática com o
espanhol, mas depois de dar uma olhada nos três contos consegui separá-los e
entender algumas conexões realizadas pelo diretor do filme. Percebi inclusive
que somente um telespectador muito atencioso, ou aquele que já tem conhecimento
dos três contos de Rivas, atenta para o fato de que duas outras histórias
correm paralelas ao enredo principal, isso porque o cineasta utiliza-se de
vários personagens de uma e de outra história em um emaranhado que vai desde as
associações familiares inexistentes na obra original a colocar um personagem em
lugar de outro. Este último é o caso de Andrés que toma emprestado para si o
papel do saxofonista de Un saxo en la
niebla e, em uma viagem com a banda da Orquestra Azul, se apaixona por uma
bela garota de traços orientais, mas que era casada com um homem bem mais
velho.
O contexto histórico é um dos
pontos altos da história, e peça fundamental de seu desfecho. Porém os atritos
políticos entre os dois grupos políticos da época (nacionalistas e
republicanos) é desnudado muito aos poucos, primeiro de uma forma discreta,
aqui e ali, sugerido em um comentário, no título de um livro, em um cartaz
pendurado na parede, nas convicções do professor. Mas a medida que a história
segue seu curso o tema vai ganhando espaço e contorno, numa discussão no bar,
em uma festa do partido e, sobretudo, no desfecho surpreendente e inesperado.
Todavia tenho segurança para dizer que os temas infância e educação possuem
mesmo ou maior peso na narrativa e povoa toda a extensão da história.
O cenário campestre é muito presente ao longo de todo o filme |
Os cenários para mim foram os mais fabulosos porque
exploraram a simplicidade do que é rústico e campestre, a história de
construções austeras de um lugar de existência secular e a natureza dos bosques
e das borboletas do norte da Península Ibérica. Cenários que falavam de seus personagens e de seus
estilos de vida. Mas uma de minhas partes prediletas são as fotos de campesinos
e citadinos da época que são mostradas logo no início da película. Nesse momento do filme a música de fundo me
lembra a nostalgia de um passado que vai ficando longínquo, cada vez mais
perdido no tempo, como se dissesse de um tempo em que fomos felizes, mas as
circunstâncias fizeram com que se desse lugar a outro tempo diferente e
melancólico.
A imagem antiga de crianças campesinas é uma das fotografias que iniciam a película. |
Por fim, o desfecho da
história é o momento mais comovente e o maior dos clímax da história, capaz de
revoltar e dividir a opinião dos espectadores diante de algumas das atitudes
tomadas por alguns personagens. Inclusive, a cena mais inquietante e comovente
é a última fala do ator Manuel Lozano que interpreta Moncho, e que parece
deixar uma mensagem cifrada e aberta a interpretação de quem assiste. Um filme até o fim delicado, profundo em
sua simplicidade e sublime em sua mensagem.
La Lengua de las Mariposas
entrou em cartaz pela primeira vez no ano de 1999, na Espanha. A película é uma produção dos estúdios do Canal+ España
em parceria com Las Producciones del Escorpión, Sociedad General de Televisión
(Sogetel), Televisión Española (TVE) e Televisión de Galicia (TVG) S.A. Tem
duração de 96 minutos.
Abaixo você pode conferir o
trailer do filme em sua versão dublada para o inglês (Butterfly):
Trailer
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