Por Eric Silva
14 de março de 2021, Ano da Itália
“Cedo ou tarde, o oceano do tempo nos
devolve as lembranças que enterramos nele”.
(Carlos Ruiz Zafón, Marina)
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Sinopse
do enredo
Barcelona, setembro de
1979. Óscar Drai é apenas um menino solitário de 15 anos que vê seus dias
transcorrerem na penumbra das galerias do internato onde seus pais o colocaram,
mas seria naquele final de ano, percorrendo as ruelas do decadente bairro de
Sarrià que sua vida mudaria para sempre.
Tudo começa quando, em uma
de suas deambulações pelas ruas do bairro, ele se depara com um casarão
aparentemente abandonado. Tomado pela curiosidade, o garoto aventura-se para
além dos portões da propriedade e lá dentro é atraído pelo som de uma bela voz de
mulher acompanhada pelo som de um piano. O indescritível som partia de uma
galeria envidraçada onde cem velas bruxuleavam um brilho tênue.
Hipnotizado e sem se dar
conta de sua imprudência, Óscar adentra o recinto e nele se depara com outro
objeto enfeitiçado que lhe chama a atenção: ao lado do megafone que reproduzia
aquela canção, repousava um relógio de bolso quebrado e muito antigo. Mas, subitamente,
o encantamento se quebra quando o garoto se dá conta de que durante todo aquele
tempo não esteve sozinho naquele lugar. Assustado com a presença inesperada,
ele foge, mas por reflexo leva consigo o relógio.
Dias depois, ao retornar à
casa para devolver o objeto roubado, Óscar conhece Marina, a jovem de olhos
cinzentos que seria a chave para uma revolução nos dias monótonos do rapaz.
Marina era filha de Germán, proprietário do casarão, e ainda que fosse tão
jovem quanto Óscar, já carregava nos ombros a responsabilidade de cuidar do pai
idoso na imensa e descaída propriedade, onde viviam com o espectro de uma
felicidade passada que se deteriorou após a morte da mãe da garota. Ainda assim,
o calor e a amorosidade daquelas duas pessoas enleiam o garoto que não consegue
mais deixá-los, fugindo do internato sempre que possível para a casa daquela
pequena família.
É convivendo com Marina
que Óscar passa a aventurar-se pelos mistérios do passado de Barcelona, e em
uma dessas aventuras, os dois presenciam uma cena estranha num antigo cemitério,
onde uma mulher coberta por um manto negro visita uma sepultura sem nome,
sempre à mesma data, à mesma hora. Em um
ímpeto imprudente, os dois se lançam ao desconhecido, passando por palacetes e
estufas abandonadas, lutando contra manequins vivos e se defrontando diversas
vezes com o símbolo de uma mariposa negra, numa busca desesperada por
solucionar um mistério antigo e envolto em perigos que remontam aos anos de
1940.
Resenha
O último livro de Zafón
que me restava resenhar, Marina é um
livro de transição dentro da obra do escritor barcelonês e com ele me despeço
definitivamente de meu querido autor. Depois desse texto resta-me apenas
algumas postagens de análise de sua obra e encerrarei enfim esse
longo projeto que se arrasta já há alguns
anos (desde 2017).
Marina, como
disse agora a pouco, é um livro de transição que demarca uma fronteira tênue
entre o estilo narrativo inicial de Zafón que remonta as suas histórias
infanto-juvenis de terror e povoa as páginas dos livros da série Trilogia
da Névoa, e o estilo que se desenham na sua
série mais famosa, O
Cemitério dos Livros Esquecidos, com a qual
ficou conhecido e foi consagrado como um dos maiores escritores espanhóis da
história recente. Marina é um livro
de transição, porque agrega em si o terror e as criaturas sombrias e macabras das
primeiras narrativas do autor com a transformação de Barcelona em
cidade-personagem, desterro de passados sombrios e trágicos no bom estilo
investigativo de A Sombra do Vento.
Óscar Drai ainda não é um
Daniel Sempere (vive no tempo futuro deste último e não tem um passado prévio que
se misture simbioticamente ao passado da cidade), mas em muitas passagens do
texto parece ser seu eco, seu alter ego.
Ainda assim, Marina prenuncia a
atmosfera sombria, decadente e antiga da cidade catalã envolta em brumas e vapor.
O livro revira o passado de seus habitantes, exuma seus cadáveres, revolve o pó
de seus palacetes para ouvir o eco de tragédias esquecidas, e nisso tudo faz
lembrar o magnum opus de seu criador,
como se fosse esta obra o epílogo de uma imersão na cidade mais goticamente
hipnotizante da Catalunha. Claro que em 1999, quando foi publicada na Espanha,
ninguém suspeitava destas coisas, porque de fato Marina foi o marco
final dos textos infanto-juvenis de terror ao estilo de O Príncipe da Névoa e O Palácio da Meia-Noite com suas criaturas demoníacas. Cidades permeadas de
segredos e um par ou mais de jovens investigando o passado das mesmas, na
tentativa de saírem vivos da confusão para a qual – involuntariamente – são
arrastados. Depois dessa obra Zafón só preservaria os conceitos investigativo e
de cidade permeada de segredos e desgraças.
Marina preserva
características que a aproximam bastante de As Luzes de Setembro, sobretudo na estética de seu terror pautado em
criaturas mecânicas que diabolicamente possuem vida própria. No entanto, inicia
lentamente a fórmula de A Sombra do Vento marcada por personagens mais complexos e pelo estilo
gótico, histórico-investigativo que mergulha nas brumas de Barcelona,
descortinando a cidade, nos fazendo vivê-la, percorrê-la, senti-la como se
fosse nossa, como se fosse parte de seus personagens, como se fosse ela mesma a
maior e a principal protagonista do enredo: tudo vem da história de Barcelona e diz respeito a ela. Descortinar
os segredos por trás da mulher de preto e da marca da mariposa negra é antes de
tudo descortinar o passado da cidade, entrar em sua intimidade.
Assim
como os demais escritos de Zafón (contos, romances e novelas) Marina foi escrito de forma
cinematográfica. É uma narrativa que propicia ao leitor imaginar grandes cenas
como se estas fossem resultado do enquadramento de uma câmera. Cenários, a
movimentação dos personagens, a forma como as marionetes se movem e atacam,
tudo é tão bem descrito que você é capaz de “ver” a cena se desenrolar como se
acompanhasse os personagens ao longos dos becos, ruas, ramblas e palacetes arruinados de Barcelona. Os mais imaginativos
talvez consigam até mesmo crer que sentem o ar frio da noite barcelonesa.
A
escrita do autor é aqui tão impecável quanto já seria nos seus livros
posteriores. Estão lá as construções estilísticas, o texto instigante e
elegantemente escrito, bem como as descrições muito bem construídas e com
detalhes que ajudam a construir toda a atmosfera da trama sem ser econômico nem
excessivo.
Quando
se trata de mistério, Marina não é
tão intrincado ou complexo quanto as obras que o sucederam, mas está um pouquinho além do que vemos nos
livros que o antecedem. A história envolve mais
personagens, mais histórias; é necessário acompanhar pistas e testemunhas são
deixadas pelo meio do caminho. Mas quando se trata de terror, para mim, ela
está no mesmo patamar de As Luzes de Setembro e suas repulsivas
criaturas mecânicas (os de Marina me
pareceram piores). Não sei se a razão seja pelo fato de eu odiar bonecas, mas
achei tenebrosas as criaturas que povoam as páginas de Marina e, por isso, tenho para mim que – dos seus romances – este é
o que contém o terror mais bem-acabado e desenvolvido. Contudo eu avaliaria
melhor se gostasse e lesse com maior frequência o gênero terror. Prefiro o thriller
e o suspense.
Mas
a verdade é que Marina – sobre o fundo
de uma trama de mistério e terror – é mais uma narrativa sobre perdas,
separações, loucura, genialidades deturpadas, intrigas, ambições, família e
amor juvenil, temas que foram caros a Zafón. A pesar de ser uma narrativa muito
mais fantástica do que real, ela aborda o quanto são frágeis a sanidade e a
vida humana.
Ademais,
não conseguirei perscrutar muitos detalhes sobre os personagens, porque quase
um ano separa a minha leitura do livro (fevereiro de 2021) e a escrita desta
resenha (janeiro de 2022), contudo achei que a grande lacuna do livro é o
passado de Óscar.
O
rapaz a pesar de ser o principal personagem da trama – ao lado, é claro, de
Marina –, está bem distante do foco da narrativa. Quase nada da sua vida antes
e depois de Marina é abordado e isso é – com toda a certeza – intencional.
Marina é o elo que une direta e
indiretamente todas as peças da trama. Sem ela Óscar nunca teria seu caminho
cruzado pela mulher de preto, nem vivido uma aventura arriscada e tenebrosa. É
ela junto com o “furto” do relógio os dois grandes acontecimentos que fazem a
trama mover-se. Também bem pouco ou nada Óscar teria feito. Foi a passagem dela
pela vida do rapaz que o impele a narrar toda a história. Sem Marina seus dias haveriam transcorrido
como de costume e é por isso que ele narra essa história quinze anos após os
fatos terem ocorrido. É ela também o personagem de quem melhor me recordo.
Marina
é inteligente, corajosa e sagaz, misteriosa e de humor um tanto mutável. Há
nela uma aura sedutora, travessa, zombeteira, mas que por vezes oscila para
algo um tanto fadigado e envelhecido. Por vezes ela é séria, melancólica e
reservada. É notável que pesa em suas costas uma grande responsabilidade, mas
você sempre tem a sensação de que há algo a mais.
Germán,
por sua vez, ao bom estilo zafoniano, é um homem envelhecido e doente que vive
com os olhos voltados para os fantasmas de seu passado. Mas também lembro pouco
sobre seu perfil psicológico.
Enfim,
Marina me cativou bem mais do que os
livros da Trilogia
da Névoa, porque se assemelha bem mais as
obras posteriores de Zafón do que os seus três primeiros livros – ainda que, na
essência, eu classificaria Marina
como um “quarto” livro desta coleção.
O
desfecho da trama de mistério não me surpreendeu muito, mas o destino dos
protagonistas me pegou de surpresa. Mas acostumado como estou com Zafón – enfim
li toda a sua obra – aceitei bem o desfecho de tudo.
Ademais,
gostei bastante da obra porque para mim foi um retorno a Barcelona, mas também
porque entrevi nela o Zafón que conheci primeiro em A Sombra do Vento, o que me deixou bastante satisfeito.
Infelizmente é o último Zafón que me restava ler, e doí-me saber que não haverá
outro nem para mim nem para nenhum dos milhões de leitores que este barcelonês
sério e meio misterioso cativou e fez seu fã. Com essa resenha – um pouco
fraquinha, lamento – me despeço de um dos meus autores favoritos e espero que,
no futuro, eu seja novamente cativado por alguém de igual ou maior valor.
À Zafón, o meu adeus.
A edição lida é da Editora
Suma, do ano de 2011 e possui 192 páginas. Tradução de Eliana Aguiar. Título
original: Marina.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro
disponível no Google Books.
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Rosa de Fuego (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
Zafón tinha o dom de despertar o bom e velho saudosismo em seus leitores.
ResponderExcluirwww.sramaia.blogspot.com
Concordo plenamente. Obrigado pelo comentário.
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