domingo, 26 de dezembro de 2021

2021 #AnoDaItália: Os autores que lemos na Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo (CALCT)


Italo Calvino

Italo Calvino nasceu em Santiago de Las Vegas, Cuba, em 15 de outubro de 1923, e foi para a Itália logo após o nascimento. Formou-se em Letras e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, tendo atuado muitos anos como militante e membro do Partido Comunista Italiano, até que se desfilou-se em 1957. 

Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX e sua primeira obra foi Il sentiero dei nidi di ragno (A trilha dos ninhos de aranha), publicada em 1947. Uma de suas obras mais conhecidas é Le città invisibili (As cidades invisíveis), de 1972. 

Morreu em Siena, em 19 de setembro de 1985.

Livros dele no blog: Se um Viajante numa Noite de Inverno ( de janeiro)

Elena Ferrante

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que prefere manter sua identidade em segredo sob a justificativo poder escrever com liberdade, e para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma imagem pública. Especula-se que seja uma tradutora, Anita Raja, que nasceu em Nápoles e que seja casada com o também escritor Domenico Starnone.

A autora concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e intermediadas pelas suas editoras italianas. A única certeza sobre ela é que escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance, L'amore molesto, livro resenhado nesta postagem.

Livros dela no blog: Um Amor Incômodo (7 de fevereiro)

Niccolò Ammaniti

Niccolò Ammaniti nasceu em Roma e é um dos mais conceituados autores italianos da atualidade. Os seus livros são sucessos de vendas internacionais e estão publicados em quarenta e quatro países. Escreveu os romances BranchieTi prendo e ti porto via e Não tenho medo, além da antologia de contos FangoComo Deus Manda recebeu o prêmio Strega, mais importante e disputado da literatura italiana. A Festa do Século, seu livro seguinte, demonstra todo o talento do autor por meio de uma crítica tão criativa quanto impiedosa à sociedade. Com Eu E Você, Ammaniti comprova a versatilidade literária que o levou a ser traduzido para mais de quarenta idiomas.

Livros dele no blog: Eu e Você (7 de março)

Referências

https://pt.wikipedia.org/wiki/Italo_Calvino
https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00077
https://pt.wikipedia.org/wiki/Elena_Ferrante
https://en.wikipedia.org/wiki/Niccol%C3%B2_Ammaniti




domingo, 7 de março de 2021

Eu e Você – Niccolò Ammaniti – Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

7 de março de 2021, ano da Itália

“O mimetismo batesiano se verifica quando uma espécie animal inócua, aproveitando sua semelhança com uma espécie tóxica ou venenosa que vive no mesmo território, consegue imitar a cor e os comportamentos dessa última. Assim, na mente dos predadores, a espécie imitadora é associada à perigosa, o que aumenta suas possibilidades de sobrevivência”.

(Niccolò Ammaniti, epígrafe)

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Um livro que explora a natureza humana quando esta é forçada a se adequar ao meio e que aborda a transição da adolescência para a idade adulta, Eu e Você, do italiano Niccolò Ammaniti, é um livro sensível que aborda as dificuldades de um garoto calado e antissocial em interagir de forma honesta e sincera com o mundo, mas que é confrontado pelo destino e posto à prova quando forçado a conviver, mesmo que temporariamente, com sua meia-irmã problemática e viciada em narcóticos.

Confira a resenha do terceiro livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.

Sinopse do enredo

Roma, fevereiro de 2000. Munido de comida, bebida, livros e jogos, Lorenzo Cuni está escondido no porão de seu prédio, rodeado de objetos empoeirados de uma condessa morta, esperando que a semana branca (settimana bianca) acabe e ele possa enfim retornar para o andar de cima e contar para a mãe o quão divertido foi passar aqueles dias esquiando nos alpes italianos com seus amigos.

Mentir e esconder-se ali era a única opção depois que ele inventou uma viagem que não existia com amigos que ele nem se quer conhecia. Uma maneira louca de fugir da perseguição dos pais que queriam que ele tivesse amizades.

Tudo parecia dar certo. Ele conseguiu enganar os pais em relação a viagem, e conseguiu despistar a mãe quando esta queria levá-lo ao ponto de encontro com os tais amigos. Depois disso, conseguiu se instalar secretamente em seu refúgio sem grandes esforços. Apesar disso, ele não contava que um segundo elemento se introduziria em seus planos: a meia irmã Olivia, com a qual Lorenzo quase não teve nenhum contato e que era viciada em drogas.

Naquele justo momento, Olivia aparece em busca de algumas coisas pessoais no porão da casa do pai, de algum dinheiro e de um lugar para “ficar limpa”, ou seja, para esperar passar o tempo de abstinência dos narcóticos que usava. Sob coerção, Lorenzo se vê obrigado a “hospedar” a irmã em seu refúgio secreto e, por vários dias, conviver com ela, uma quase desconhecida. É assim que Olivia se soma a equação de Eu e Você, e à vida do jovem Lorenzo.

Resenha

Quando comprei Eu e Você, em 2019, de planos fazer naquele ano a quarta edição da CALCT, fiquei um tanto receoso porque a capa e o título sugerem mais um daqueles romances de amor adolescente e dramático. Todavia o livro de Niccolò Ammaniti vai para um caminho totalmente oposto, e se ainda assim Eu e Você (no original, Io e Te) seja um tanto dramático, é um livro sem muito romantismo, cheio de originalidade e que conseguiu me agradar com seus personagens, sua narrativa e sua leitura ágil e descomplicada.

Li numa resenha que este livro promete pouco e entrega pouco, mas para mim, esse “pouco” foi mais do que o suficiente. É claro que Eu e Você não explora as belas paisagens italianas ou os cenários romanos seculares, mas, por outro lado, explora um pouco da natureza humana daqueles que são deslocados. O próprio protagonista e narrador é daquelas almas egocêntricas que preferem a solitude de estar em sua própria companhia porque considera que não há nenhuma outra associação melhor, mas que se vê – por atrito – forçado a amadurecer. A outra protagonista é uma pessoa destruída pelo desprezo de seus pares e pelo vício das drogas. Alguém desajustado, que mesmo não estando à espera de que alguém lhe estenda a mão, luta com suas próprias forças para encontrar um caminho.

Ammaniti parece gostar dos romances dramáticos e de família, a exemplo do seu elogiado Como Deus Manda (Come Dio Comanda), onde os dois protagonistas, pai e filho, vivem uma relação baseada na violência e no conflito. Eu e Você é mais suave, mas possui seus próprios tons dramáticos. A temática sobre as drogas já se tornou corriqueira – afinal, mais do que nunca, o uso de drogas se tornou um fato universal –, mas está em perfeito equilíbrio com a proposta e nível do livro. Ainda assim, ele foi bom o suficiente para garantir uma adaptação para o cinema realizado em 2012 por Bernardo Bertolucci e que rendeu várias indicações para o Prêmio David di Donatello.

A escrita de Ammaniti é ágil, leve e sucinta sem deixar de ser descritiva e bem escrita. É prosaica, mas não destituídas de alguma poesia. Há um equilíbrio entre diálogo e narração, e o narrador, por sua personalidade individualista é irônico e opinativo. Mas o interessante nesse livro é o choque existente entre duas gerações de irmãos tão distintos entre si. Ele amado e mimado, ela ovelha negra, perdida, indesejada. Desse choque nasce uma novela interessante, ainda que limitada. Mas o que quero mesmo é destacar seus personagens muito bem-feitos.

Lorenzo é um personagem tão peculiar quanto interessante. Ele é um ator nato e o meio termo entre um adolescente esnobe e malcriado, mas sensível, e o futuro projeto de um manipulador taciturno, antissocial e calculista, mas que não se concretiza. Observador, inteligente, e egocêntrico, mas pouco dado a conversar com aqueles que não faziam parte de seu círculo familiar. Só a mãe, o pai e a avó lhe importavam.

Os pais se preocupam com a pouca sociabilidade do filho. Quando era pequeno, Lorenzo só respondia aos estranhos com “sim, não, e não sei”, e se insistissem, dizia aquilo que eles queriam ouvir. Quando “os outros” não o deixavam em paz, se tornava agressivo e, por isso, os pais preocupados o mandaram para um psicólogo, que o menino tratou logo de tentar enganar, fazendo-se passar por um “menino normal”. Contudo o diagnóstico não poderia ser ao mais exato: Lorenzo era “incapaz de sentir empatia pelos outros”, “[...] tudo que está fora de seu círculo afetivo não existe, não lhe suscita nada” e “acredita que é especial e que apenas pessoas especiais como ele podem compreendê-lo”.

Os pais, obviamente, desacreditaram deste diagnóstico e tiraram o menino do tratamento. Para eles, o filho era “afetuoso”, “um menino normal”. No entanto, aquela decisão foi a chave para que Lorenzo aprendesse a dissimular, fingir ser quem não era para que as pessoas o deixassem em paz. Se misturava com os outros jovens numa distância segura o suficiente para que eles e os pais pensassem que ele era um “deles”, que tinha amigos, e longe o suficiente para não ser importunado. Como um inseto havia aprendido a mimetizar.

“Eu me misturava como uma sardinha em um cardume de sardinhas, me mimetizava como um bicho-pau entre ramos secos”.

Contudo, ao entrar no liceu[1] público a técnica deixa de ser eficiente e ele se torna alvo de bullying. O que lhe resta é evoluir, não como pessoa, mas como imitador, e é através da imitação das práticas e trejeitos dos mais temidos da escola que ele consegue afastar todo os indesejáveis. Ele passava a ser uma mosca que imitava as vespas.

“Em algum lugar, nos trópicos, vive uma mosca que imita as vespas. Tem quatro asas, como todas as de sua espécie, mas mantém uma sobre a outra, e assim parecem apenas duas. Tem listras amarelas e pretas no abdome, antenas, olhos protuberantes e até um ferrão de mentira. Não faz nada, é boazinha. Mas, vestida como uma vespa, é temida pelas aves, pelas lagartixas, até pelos seres humanos. Pode entrar tranquilamente nos vespeiros, um dos lugares mais perigosos e vigiados do mundo, e ninguém a reconhece.

Eu tinha errado tudo.

Era isso que eu devia fazer.

Imitar os mais perigosos”.

 

Desse modo, Lorenzo continuava sozinho e isolado. Sentia-se feliz sozinho, mas ao lado dos outros tinha que representar, o que chegava a amedrontá-lo. Além disso, inventava mentiras e casos engraçados da escola para deixar os pais tranquilos. Foi nesse círculo interminável de mentiras e dissimulações que ele acabou por inventar que alguns amigos haviam o convidado para esquiar e teve que buscar uma maneira de sustentar sua mentira. Nesse ponto começa de fato a história do livro.

[ALERTA DE SPOILER]. Olivia por sua vez é pintada pelo narrador sob as cores da irmã-mistério, desconhecida, inoportuna, indesejada, inteligente e boa mentirosa, mas, ao mesmo tempo, objeto de uma curiosidade pouco confessada e que ao olhar do irmão vai pouco a pouco se transformando, pela força da convivência forçada, como alguém em mutação.

[ALERTA DE SPOILER]. Ela, por sua vez, oscila da indiferença a curiosidade, das pequenas implicâncias a solidariedade fraternal que quebra lentamente o iceberg em que Lorenzo estava preso. Na maioria do tempo padece dos efeitos da abstinência, mas, nas suas falas, é possível perceber o ressentimento que nutria do pai e da madrasta.

É interessante notar que Olivia na história funciona como o ponto de pressão de Oliver, forçando-o a abandonar seu egocentrismo para ajudá-la em um momento em que ela se encontra extremante vulnerável e doente.

[ALERTA DE SPOILER]. Eles dois não conviveram, mal se conheciam, e se viram em pouquíssimas oportunidades, mas a relação irmão e irmã, com seus altos e baixos, birras e solidariedades está ali, explícita, palpável. E desse modo aquele breve tempo juntos acaba por impulsionar o lado mais humano do garoto e contribui para seu crescimento e amadurecimento por forçá-lo a deixar de olhar para si, para olhar para o outro. Uma temporada breve, mas significativa ao ponto de levar o menino a ampliar seu círculo afetivo outrora tão estreito.

Enfim, o desfecho é singelo e muito sensível, sem deixar de ser, até certo ponto, realista e verossímil. O livro como um todo não é um clássico, e rapidamente caiu no esquecimento, mas tem qualidade e te prende, sendo, em parte, até comovente.

A edição lida é da Editora Bertrand Brasil, do ano de 2013 e possui 160 páginas.

Sobre o autor


Niccolò Ammaniti nasceu em Roma e é um dos mais conceituados autores italianos da atualidade. Os seus livros são sucessos de vendas internacionais e estão publicados em quarenta e quatro países. Escreveu os romances Branchie, Ti prendo e ti porto via e Não tenho medo, além da antologia de contos Fango. Como Deus Manda recebeu o prêmio Strega, mais importante e disputado da literatura italiana. A Festa do Século, seu livro seguinte, demonstra todo o talento do autor por meio de uma crítica tão criativa quanto impiedosa à sociedade. Com Eu E Você, Ammaniti comprova a versatilidade literária que o levou a ser traduzido para mais de quarenta idiomas.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano.

Saiba mais sobre os autores que estão sendo lidos na Campanha no link: autores.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: mapa.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.


domingo, 28 de fevereiro de 2021

[Especial Zafón] La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

 Por Eric Silva

28 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“Bienvenido a un nuevo libro – desgraciadamente el último – zafoniano”

(Émile de Rosiers Castellaine, La Ciudad de Vapor)

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Livro póstumo de Zafón, La Ciudad de Vapor em sua edição original. 

Reunião de todos os contos escritos pelo barcelonês Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) traz onze breve narrativas que resgatam as origens de personagens da quadrilogia que se inicia com o livro A Sombra do Vento, ampliando o universo literário da saga. Traçando uma linha histórica da cidade catalã de Barcelona, a cidade feita de vapor, desde a antiguidade até um futuro incerto e apocalíptico, a coletânea reúne narrativa carregadas de melancolia, tragédia e maldição, com personagens taciturnos, desgraçados e malditos, compondo um caleidoscópios de narrativas góticas, de formação, fantásticas, históricas e mesmo de terror, escritas com o melhor do estilo cinematográfico, poético e metafórico de Zafón.

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês, penúltima a ser resenhada para o Especial Zafón e última a ser publicada no mundo.

Sinopse do enredo

La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) é uma coletânea que reúne onze contos de Carlos Ruiz Zafón, três deles inéditos e os demais publicados de forma dispersa em diferentes publicações entre os anos de 2002 e 2012. Contos que ampliam o universo literário de sua mais importante obra, a quadrilogia d’O Cemitério dos Livros Esquecidos, além de apresentar personagens novos que não figuram na série e personagens reais cujas vidas são recriadas pela pena gótica e trágica do escritor barcelonês.

O conto que inaugura a obra, Blanca y el adiós, nos dá vislumbres da difícil infância de David Martín, um dos muitos gênios malditos e desafortunados da Zafón, no caso um escritor, que é também personagem principal do livro O Jogo do Anjo. Neste conto até então inédito, Zafón narra como o pequeno David conheceu a menina Blanca, uma garota rica que experienciava a dor causada pelos problemas familiares entre seus pais e que, pelo acaso de um encontro fortuito no calçadão de uma livraria, acaba conhecendo David e se tornando, mais tarde, a primeira musa inspiradora das narrativas fantásticas do garoto.

Além de Blanca y el adiós, no livro, Zafón dedica ainda um segundo contos ao personagem de O Jogo do Anjo. No desconcertante Sin nombre, o autor narra a história sombria e misteriosa do nascimento de David, bem como nos apresenta as várias incógnitas que giram entorno da identidade de sua mãe, uma garota desesperada que vaga pelas ruas cobertas de neve de uma Barcelona indiferente enquanto sente as dores do parto e busca auxilio.

Em Una señorita de Barcelona, Zafón conta a história soturna de Eduardo Sentís, um fotografo arruinado que herdara as dívidas de um negócio falido de seu patrão e que encontra como recurso de vida sua própria filha e o talento da menina para encarnar personalidades de pessoas mortas para dar pequenos golpes em familiares e amantes desesperados e enlutados.

Já em Rosa de Fuego, o escritor dá um recuo no tempo e retorna ao século XV para contar as origens da família Sempere e principalmente do Cemitério dos Livros Esquecidos, a colossal biblioteca secreta e importante personagem dos livros da série que leva seu nome. Neste conto, resenhado individualmente aqui no blog em dezembro de 2020, Zafón narra a história da chegada do hacedor de laberintos, Edmond de Luna, a uma Barcelona arrasada pela febre e de como o regresso do desfortunado engenheiro seria responsável por uma tragédia ainda maior que “habría de teñir el cielo de la ciudad de fuego y sangre”.

A temática das origens dos Sempere e do grandioso palácio de livros têm continuidade no quinto conto da coletânea, El Príncipe de Parnaso, também resenhado individualmente aqui no blog. Nesse conto Zafón avança pouco mais de um século em relação a Rosa de Fuego e recria de forma trágica, gótica e romântica a história da juventude de Miguel de Cervantes, escritor real e expoente da literatura clássica espanhola, para contar como este cai nas garras diabólicas de Andreas Corelli, outro personagem fundamental do livro O Jogo do Anjo.

Por sua vez, Leyenda de navidad toma emprestada a temática do natal para contar mais uma história (esta muito breve) de terror e de maldição. Em outro contexto, o tema frio e obscuro de um dia natalino na cidade catalã é novamente resgatada na história seguinte, Alicia, al alba, que narra o encontro de um jovem empregado de um bazar com uma misteriosa moça que tenta penhorar uma preciosa guirlanda de perolas e safiras durante os bombardeios da Guerra Civil Espanhola.

Na sequência, Hombres de gris, avança para o momento histórico espanhol seguinte, ou seja, para o contexto do regime franquista, e narra a história de um assassino de aluguel que retorna a Barcelona que abandonara muitos anos antes, a fim de cumprir a mais difícil de suas missões e salvaguardar a estrutura que sustenta o regime ditatorial de Franco.

Por fim, as três últimas narrativas são breves e versam sobre temas muito distintos entre si.

Na curtíssima narrativa de La mujer de vapor, Zafón fala de como um ex-detento não tendo onde morar passa suas noites em praça pública até ser convidado por uma moça para viver em um dos muitos apartamentos abandonados de um prédio condenado, e lá encontra a felicidade em meio a bons e improváveis vizinhos. Enquanto isso, em Gaudí em Manhattan, Zafón volta aos grandes personagens históricos da Espanha para contar sobre o misterioso projeto de um hotel planejado pelo arquiteto catalão Antoni Gaudí que deveria ter ser construído na ilha de Manhattan, o que jamais chegou a ser concretizado.

Por fim, La Ciudad de Vapor se encerra com a mais breve das narrativas da coletânea, Apocalipsis en dos minutos, no qual o narrador conta seus últimos momentos de vida antes do fim do mundo.

Resenha

Livro póstumo de Carlos Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor é também o último a ser publicado do autor barcelonês cuja obra literária conta agora com nove livros. A coletânea reúne narrativas curtas de um Zafón maduro e fortemente influenciado pela atmosfera com a qual ele revestira A Sombra do Vento, e cada vez mais distante daquele Zafón que escrevera a cinematográfica porém infantil Trilogia da Névoa.

Os contos reunidos em La Ciudad de Vapor não só resgatam as origens dos principais personagens da tetralogia como também recriam a Barcelona – desde sempre antiga – de A Sombra do Vento. Recriam a melancolia e a frieza de uma cidade ora mergulhada em neblina, ora recoberta de neve e gelo, mas sempre indiferente e impassível em relação aos dramas, às violências e às tragédias vividas por seus filhos. Uma cidade que abriga emudecida as muitas histórias que se interpõem e compõem o teatro e o palco do drama humano encenado por muitas vidas anônimas e públicas, mas todas elas marcadas pela dor, pela perda, pela miséria e, sobretudo, pela tragédia.

Não há um só conto desta obra que não carregue as marcas da tragédia, da crueldade ou então da decadência humana, tendo algumas poucas almas um fulgor que acalenta os perdidos, os malditos e os desgraçados que perfilam nas páginas do livro. Não é à toa que os cenários são quase sempre soturnos, noturnos, decadentes, cobertos de névoas, de neve e gelo ou chuvosos.

Como disse, neste conto a decadência e a corrupção humana estão por todo o livro, mas destacadamente em Una señorita de Barcelona. Nele Zafón relata o declínio de um pai que pouco hesita – em troca de dinheiro – em submeter sua única filha, ainda pequena, a fazer o papel de substituta da menina morta de uma família abastarda e enlutada. Mais tarde, o mesmo pai também não hesita em prostituir a filha feita moça e fazer dela seu ganha-pão. Uma garota que passa a viver narrativas que ela mesmo cria para iludir e roubar homens consumidos pela dor e pela perda, e que no processo se dilui na identidade de pessoas mortas como forma de preencher os vácuos e os vazios de sua própria vida.

Mas, mais do que um conto trágico, Una señorita de Barcelona também resgata, em escala menor, um estilo de escrita zafoniana que cria um caleidoscópio de histórias e tragédias pessoais que se cruzam e se entremeiam a partir do encontro de várias pessoas com passados melancólicos e desgraçados. Trata-se de um caleidoscópio de narrativas que Zafón explora intensamente em Marina e sobretudo na quadrilogia do Cemitério.

Dos contos, os mais breves são precisamente os mais potentes, surpreendentes e impactantes. É o caso de Sin nombre, o mais desconcertante de todos, o mais sombrio, cru e perfeito de toda a obra. Nele Zafón traz a vilania e podridão humana tenebrosamente potencializada por um elenco de personagens incógnitos e dentre os quais somente a criança recém-nascida possui um nome. Feroz, este é o melhor dos contos da obra e o anonimato de seus personagens amplifica seu caráter sombrio, porque aquilo que não tem nome a mim me parece também não ter rosto, o que é ainda mais sombrio.

Forte é também o desfecho surpreendente de La mujer de vapor bem como as cenas descritas nos parágrafos que encerra o enigmático Alicia, al alba. Este último é também outro conto melancólico, envolto em mistérios, em brumas e neves, o que ressaltou em mim a impressão de que Zafón tinha atração não só pela tragédia, mas pela falta de calidez do inverno, pelo não dito e pelos mistérios de um rosto feminino perdido no passado e marcado pela tristeza silenciosa.

Por fim, dos contos mais curtos, o menor de todos, Apocalipsis en dos minutos, é exatamente o que seu título anuncia: uma narrativa com um tempo narrativo tão curto e escrito em linhas tão breves que o próprio texto pode ser lido em dois minutos.

Digo que em conjunto são contos que, como elucida o editor Émile de Rosiers Castellane, trazem elementos de muito gêneros literários: os livros de formação (aprendizagem), os históricos, as obras góticas, os thrillers – sobretudo de terror –, as histórias românticas e o caleidoscópio de narrativas do qual falamos, ou, nas palavras de Castellane, “el relato dentro del relato”. Ao mesmo tempo, eles criam uma linha do tempo da história da mais importante cidade catalã, indo dos finais da Idade Média no trágico e fantástico Rosa de Fuego até o futuro impreciso porém igualmente trágico e (agora) apocalíptico de Apocalipsis en dos minutos.

O estilo cinematográfico e as construções metafóricas e estilísticas que tanto caracteriza a fase madura de Zafón estão lá também e representaram para mim – que li a obra em seu idioma materno – um desafio de tradução e compreensão linguística, semântica e metafórica. Através destas construções metafóricas e cinematográficas Barcelona se veste com mantos de fogo, de cinzas e de neve, neblina e vapor, justificando o título da coletânea e resgatando uma vez mais os cenários e contextos prediletos de um autor que flertava com o trágico e com o gótico e que gostava de desnudar as misérias humanas em narrativas repletas de aventuras, História, poesia e mistério.

Uma vez mais me despeço de meu escritor predileto, de suas tramas carregadas de mistérios e melancolias. Falta agora resenha apenas o livro Marina, e terei resenhado toda a sua obra.

Enfim, sigo ansioso pela publicação de La Ciudad de Vapor em português para que ele ocupe, junto aos seus irmãos, o espaço que lhe é de direito na minha estante.

A edição lida é digital da Editora Grupo Planeta, do ano de 2020 e possui, em sua edição física, 224 páginas.

***

Nota: os leitores que não foram iniciados no labiríntico e caleidoscópio universo do El Cementerio de los Libros Olvidados sugiro que leia primeiro a quadrilogia que começa com A Sombra do Vento e encerre com La Ciudad de Vapor. As narrativas farão mais sentido com estas referências.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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As Luzes de Setembro – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

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Especial: Zafón

La Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

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O Labirinto dos Espíritos – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

O Palácio da Meia-noite – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

O Príncipe da Névoa – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

O Prisioneiro do Céu – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

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Rosa de Fuego (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Um Amor Incômodo – Elena Ferrante – Resenha

Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo

07 de fevereiro de 2021, ano da Itália

“Talvez eu quisesse tentar estabelecer entre nós uma intimidade que nunca existira, talvez eu quisesse confusamente fazer com que ela soubesse que eu sempre fora infeliz.”

(Elena Ferrante – Um Amor Incômodo)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Edição Brasileira, pela editora Intrínseca. Preço de capa: R$ 39,90
Livro de estreia da celebrada e misteriosa escritora italiana Elena Ferrante Um Amor Incômodo é um livro um pouco monótono, mas que aborda a violência doméstica de forma autêntica e complexa. Uma narrativa crua, de personagens marcantes, sentimentos intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória.

Confira a resenha do segundo livro da IV Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.

 

Sinopse do enredo

Delia é uma desenhista de quadrinhos que abandonou sua cidade natal, Nápoles, para fugir do seu passado e da relação complicada que possuía com sua família. A única pessoa com quem a desenhista mantinha proximidade era com Amalia, sua mãe, que frequentemente ia a Roma visitá-la. Entretanto, mesmo essa presença um pouco constante da mãe era indesejada e incômoda a Delia, até o dia que Amalia é encontrada morta em uma praia em circunstâncias misteriosas: seminua, vestida apenas com um sutiã de grife.

A morte inesperada da mãe obriga Delia a retornar à Nápoles e enfrentar novamente o seu passado marcado pela violência doméstica causada pelos rompantes de raiva e ciúmes obsessivo de seu pai. Nessa viagem de volta ao passado, ao mesmo tempo em que busca lidar com a perda da mãe, a quadrinista se vê diante do desafio de buscar preencher as lacunas do passado, encarar os fortes sentimentos que Amalia lhe provocava e descobrir como ocorreu a sua morte. Mas é principalmente a figura do suposto amente da mãe, Caserta, que persegue as lembranças do passado e também o presente de Delia.

Entorno da figura de Amalia e Caserta gira a curiosidade e o desejo sôfrego de Delia de compreender o que de fato havia acontecido entre os dois no passado, provocando na italiana a reflexão dos fatos que se deram em sua infância e que levaram a deterioração da sua relação com a mãe e também com o pai.

Resenha

Elena Ferrante é uma das mais curiosas escritoras italianas que já ouvi falar. Não só por conta do sucesso de sua obra composta de nove livros – todos já publicados no Brasil – como também pelo mistério que envolve sua identidade, segredo este que já rendeu investigações e polêmicas na Itália há alguns anos.

Nunca havia lido nada de Ferrante apesar do sucesso da escritora entre os leitores brasileiros, mas resolvi fazê-lo por conta da IV Campanha Anual de Literatura, que nesse ano homenageia a literatura italiana. Por força desse fator, decidi ter meu primeiro contato com a obra da escritora a partir de seu livro de estreia Um Amor Incômodo (L’amore molesto), que segundo dizem os leitores assíduos da italiana é um livro ainda da fase pouco madura da escritora e, logo, ainda um pouco distante da sua escrita atual.

Um Amor Incômodo é um livro intimista e com uma caraga dramática pesada, mas que aborda com muita sensibilidade os desdobramentos emocionais na vida adulta de uma infância marcada pela violência doméstica.

Publicado em 1992, a obra foi adaptada em filme homônimo pelo cineasta Mario Martone em 1995, mas só em 2017 o livro foi publicado no Brasil.

O enredo conta a história de Delia, uma quadrinista quadragenária, profissionalmente realizada, mas emocionalmente abalada pelo passado familiar, o que imprime em seu comportamento um forte desejo de distanciamento dos seus familiares.

Delia (interpretada por Anna Bonaiuto). Cena do filme L'amore Molesto (1995).

Delia é o tipo de personagem introspectivo que se perde bastante nos próprios sentimentos e pensamentos. Como a história se passa no momento em que ela tenta lidar e processar a perda da mãe encontrada afogada no dia do aniversário da filha, durante grande parte da narrativa, Delia divaga sobre o passado e vai, ao mesmo tempo, reconstruindo a linha histórica de lembranças e memórias não muito confiáveis. Essa reconstrução é importantíssima na trama, porque nos revela o passado da protagonista ao mesmo tempo que, por um lado, nos elucida as circunstâncias que fizeram sua relação com a mãe se tornar insustentável e, por outro, desvenda os últimos passos de Amalia antes de ser encontrada morta.

Vista da cidade de Nápoles com Vesúvio ao fundo. Nápoles é o principal cenário do livro de Ferrante. Imagem de Damirux. Wikimedia Commons.


O enredo em si é esse reencontro da protagonista com o seu passado
, com ela mesma e com as lembranças de sua relação com a mãe. Mas mesmo sendo conturbada essa relação entre mãe e filha, é ela que dá forma e norte a personalidade da protagonista que inicialmente demonstra uma aversão quase que instintiva e bastante intensa pela presença de Amalia, chegando a se sentir um tanto aliviada com a morte de sua progenitora. No entanto, gradativamente vai se revelando que, na verdade, essa aversão é fruto de um sentimento frustrado e infantil de desejo de simbiose, ou melhor dizendo, de querer ser a mãe, fundir-se e confundir-se com a personalidade materna, como também observa Aline Aimee. Daí vem o título do livro. O amor de Dalia por Amalia era tão cheio de marcas, complexos e sentimentos conflitantes que ele se tornava incômodo, angustiante, sofrido.
A principal marca da personagem principal na narrativa é sua difícil relação com a mãe. Delia analisa e reconstrói essa relação a partir das memórias que possui de sua infância com Amalia, o pai, o tio e os vizinhos: Caserta, o menino Antonio e o avô confeiteiro de Antonio. Ao mesmo tempo ela envereda numa busca por reconstituir os últimos acontecimentos vividos por Amalia, como sua reaproximação com o suposto amante do passado, Caserta, e também fechar as lacunas que explicariam as circunstâncias de sua morte.

A minha opinião sobre a personagem principal é que ela não é a figura mais importante de sua própria história e perde um pouco de seu protagonismo para a figura da mãe, personagem forte e dúbio e que, por isso, me faz lembrar de outra personagem feminina: Capitu, do livro Dom Casmurro, obra icônica do escritor brasileiro Machado de Assis.

Amalia, cuja morte é o motivo de existir enredo, rouba a cena por ser uma personagem difícil de precisar e de descrever, mas que ao mesmo tempo é a cola que une todo o elenco do livro e os fios de sua trama. Sem ela, simplesmente, não existiria história.

Amalia jovem, interpretada por Licia Maglietta (1995).

Em sua juventude, a mãe de Delia é descrita por Ferrante como uma mulher bonita, risonha e provocante, que buscava preservar o bom humor e o gosto pela vida, mesmo vivendo em um ambiente sufocante e marcado pela violência. Casada com um pintor fracassado que sobrevivia com a venda de pinturas baratas de temas vulgares, Amalia sofria constantemente com as agressões do marido extremamente ciumento e que sempre a agredia. Mesmo em ambientes públicos, quando algum homem se dirigia a ela e a mesma esboçava algum tipo de simpatia, Amalia costumava ser vítima das agressões. Os abusos também eram muito comuns por conta dos constantes presentes que Amalia recebia do vizinho Caserta que era sócio de seu marido nos negócios de vendas de pinturas.

Desse modo, o tema da violência doméstica se torna um elemento imprescindível da história escrita por Ferrante e dá a narrativa um caráter bastante realista. As lembranças de Delia são profundamente marcadas pelas cenas de violência protagonizadas pelo pai e, por isso, o tema funciona como elemento crucial na formação da personalidade da protagonista. O resultado é que o desenho psicológico de Delia é bastante conturbado e atravessado pelo produto de um passado marcado de um lado pela frustração e nunca conseguir se igualar a figura materna, e de outro pela violência doméstica da qual ela foi testemunha e em um dado momento foi também impulsionadora.

Cenas do filme L'Amore Molesto de Mario Martone (1995) 
e que retratam a violência doméstica sofrida por Amalia.

Outros dois personagens importantes na trama são o tio Filippo, irmão de Amalia e que em vez de defendê-la das agressões a culpava por elas, e Caserta, outro personagem enigmático da trama e que sustenta a narrativa junto com as lembranças de Amalia conservadas por Delia.

Filippo é um homem tosco e irritadiço. Na maior parte do tempo fica xingando no dialeto local e falando mal de Amalia, a culpando por destruir o próprio casamento por seu comportamento, na visão dele, bastante reprovável. Ele junto com o pai de Delia representam na narrativa a figura do homem machista que vê na mulher a reencarnação da devassidão e da pecaminosidade, devendo ser corrigida a sua inclinação inevitável para a infidelidade com pancadas. 

Caserta é descrito no livro como um homem “esperto, de pele escura como um sarraceno, mas com olhos de diabo assanhado”, tinha fama de importunar as mulheres do bairro e desde a infância sua imagem causava a Delia uma mistura conflitante de atração, repulsa e medo. Este não era seu nome, mas um apelido.

Discussão entre Caserta (camiseta branca - por Enzo De Caro), Filippo (com a arma - Francesco Paolantoni) e o pai de Delia (à esquerda - Italo Celoro) em cena de flashback do filme L'amore Molesto (1995).

Na época, o pai da menina já era um pintor medíocre que pintava por ninharias, foi Caserta quem percebeu a possibilidade de que ele ganhasse um pouco mais pintando retratos a óleo das mães, irmãs e namoradas dos marinheiros americanos com saudades de casa. O negócio com Caserta porém de se desfez depois que o pai de Delia achou uma proposta mais vantajosa, pintando imagens de ciganas. Amalia se opôs e daí em diante as brigas entre o casal por conta de Caserta começaram, se tornando pior quando Delia lançou ao pai a semente da desconfiança de uma possível traição. Filippo e o cunhado quase mataram Caserta e seu filho, obrigando-o a fugir com sua família.

Passados todos aqueles anos Caserta ainda era um nome envolto em mistério, e de alguma forma ele estava ligado aos últimos dias de vida de Amalia. Delia não sabia como nem porque, mas o mistério daquele homem asqueroso a atraía.

A título de conclusão...

Apesar de ser uma narrativa na qual a narradora reflete bastante sobre cenas e episódios ocorridos no passado, Ferrante usa de uma narração linear e não recorre a flashbacks. Delia narra os hábitos, as brigas, os fatos, os lugares e as pessoas, mas não perde a sua condição de narradora quando evoca o passado. Por conta disso, ela acaba por caminhando pela linha tênue entre os acontecimentos do passado e o presente, como se o passado fosse imagens fantasmagóricas que a quadrinista vislumbra sobrepostas às imagens do presente. Por isso, não é incomum que sonho, lembrança e realidade se fundam na mente da narradora e ela chegue até mesmo a ter visões, sobretudo da mãe.

Ferrante escreve um livro de atmosfera intimista e psicológica muito marcante. Lembranças, divagações e fantasias da protagonista se misturam, mostrando que muitas das respostas que ela buscava já estavam guardadas em seu subconsciente, e seria o contato que ela faz com todas aquelas pessoas do passado o fator responsável por trazer gradativamente à tona as lembranças mais escondidas.  Desse modo, o tom que percebi dominar na obra foi a da confusão de sentimentos, pensamentos e lembranças que emanam de Delia e que conduzem a personagem em um encontro com seu passado, recuperando cenas e enredos esquecidos e deformados com o passar do tempo.

Enfim, achei o livro monótono, mas a forma como Ferrante aborda a violência doméstica através das lembranças um tanto inconsistentes da protagonista e os complexos e aversões que ela desenvolveu no processo foi excepcionalmente autêntico e até mesmo complexo. Ademais, Um Amor Incômodo é uma narrativa crua, de sentimentos muitos intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória. Possui personagens muito marcantes, cujos sentimentos e ações nos fazem questionar muito sobre a natureza humana.

Muitos afirmam, que este livro não é o melhor de Elena, mas como minha primeira experiência com a autora, não farei julgamento de valor. Além disso, é sabido de qualquer leitor experimentado que livros de estreia quase sempre são reflexos de um escritor ainda em formação, ainda cru e em processo de aperfeiçoamento. Justamente por isso é interessante ler estes livros, porque eles meio que humanizam aqueles que se encontram no panteão da literatura internacional.

A edição lida é da Editora Intrínseca, do ano de 2017 e possui 176 páginas.

Sobre o autor

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que prefere manter sua identidade em segredo sob a justificativo poder escrever com liberdade, e para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma imagem pública. Especula-se que seja uma tradutora, Anita Raja, que nasceu em Nápoles e que seja casada com o também escritor Domenico Starnone.

A autora concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e intermediadas pelas suas editoras italianas. A única certeza sobre ela é que escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance, L'amore molesto, livro resenhado nesta postagem.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano.

Saiba mais sobre os autores que estão sendo lidos na Campanha no link: autores.

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Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

domingo, 31 de janeiro de 2021

[Especial Zafón] El Príncipe de Parnaso (conto) - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

 Por Eric Silva

21 de fevereiro de 2021, Ano da Itália

“[...] Miguel de Cervantes, luz entre poetas, mendigo entre los hombres y Príncipe de Parnaso.”

(Carlos Ruiz Zafón, El Príncipe de Parnaso)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.

Capa da edição promocional da editora Planeta de Libros,
distribuída em 2012 na Espanha.

Sinopse do enredo

Barcelona, 1616.

Do alto da muralha que selava Barcelona, Antoni de Sempere, el facedor de libros, avista a chegada à cidade do cortejo fúnebre de seu amigo Cervantes, tendo ao seu lado a funesta figura de Andreas Corelli, o principal responsável pelas desventuras de seu amigo.

Corelli não havia envelhecido um único dia depois de todo o tempo que se passara desde a primeira vez que Cervantes e Francesca haviam chegado a Barcelona, em 1569, como dois fugitivos de terras italianas. E como já se era de esperar, o macabro arcanjo estava ali para testemunhar a ida de Cervantes ao túmulo após este ter finalmente escrito a obra-prima prometida ao funéreo editor.

É em meio ao incômodo diálogo com o perturbador Corelli que Sempere se entrega as suas recordações acerca de Miguel de Cervantes Saavedra e de como este, ao mesmo tempo, conhecera em seu exílio na Itália, a criatura mais bela já vista e assinara um pacto que seria razão de sua fama e de seu maior infortúnio. 

Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês resenhada para o Especial Zafón.

Resenha

Publicado em 2012, El Príncipe de Parnaso é um conto de 35 páginas que foi oferecido pela editora Planeta, até onde sei, somente na Espanha, como uma cortesia aos compradores do romance de Zafón, El Prisionero del Cielo (O Prisioneiro do Céu) na ocasião de sua publicação. Por conta disso, assim como os demais contos do autor, não chegou a ser pulicado no Brasil e nem em língua portuguesa. Ele é também um dos onze contos que integram a coletânea póstuma do autor, La Ciudad de Vapor – que em breve será publicada no Brasil.

O conto é mais um dos que integram o universo da série d’O Cemitério dos Livros Esquecidos trazendo como personagens uma figura real – Miguel de Cervantes Saavedra, escritor espanhol dos séculos XVI e XVII e autor de Dom Quixote – dois antepassados de personagens da quadrilogia do Cemitério e Andreas Corelli, a figura sobrenatural que carimba sua presença em duas obras do autor:  As Luzes de Setembro e O Jogo do Anjo.

A história de El Príncipe de Parnaso se passa na Barcelona de meados da Idade Moderna, um pouco mais de um século depois dos fatos narrados em outro conto que integra o universo da série do Cemitério, Rosa de Fuego e que narra um pouco da origem da misteriosa biblioteca que funciona como eixo principal de todos os livros da série.

Neste segundo conto, Zafón desvia-se da história da secular biblioteca – ainda que a cite nos parágrafos que encerram a narrativa, [ALERTA DE SPOILER] sugerindo que Cervantes esteja secretamente sepultado dentro da colossal biblioteca –, e foca sua trama numa recriação da história de Miguel de Cervantes, mais exatamente de um episódio de sua mocidade quando este esteve vivendo em Roma após ter fugido de Madri.

Na biografia do autor espanhol, consta realmente que para evitar ter a mão direita decepada como punição por participar de um duelo, Cervantes fugiu para Roma em 1569[1]. Contudo, o relato de Zafón é obviamente ficcional – sobretudo quanto ao local real de sepultamento do escritor –, mas toma por base uma estadia real de Cervantes naquela que se tornaria séculos depois na capital da Itália atual.

Neste conto Zafón descreve um Cervantes em início de carreira, um tanto vacilante, bastante melancólico, tentando mostrar a sua arte para algum editor que quisesse publicá-la. Zafón desenha um jovem que já possui as marcas de um talento observável, mas pouco polido, ainda muito bruto e distante do horizonte onde estaria o escritor que se imortalizaria e teria sua obra conhecida em todos os cantos do planeta. Contudo, para alcançar esse horizonte distante o destino coloca no caminho de Cervantes o diabólico Corelli que conduzirá o jovem escritor para uma direção inesperada.

Em paralelo, a narrativa também conta a história de Francesca di Parma, uma pobre miserável, mas de grande beleza que tivera o infortúnio de ser abandonada bebê em baixo de uma ponte, sendo resgatada por uma família de facínoras e trapaceiros tão pobres quanto ela, mas que só não a descartaram de novo por terem visto em sua beleza uma forma de explorá-la e obter algum lucro. Prova disso é que ao surgir a oportunidade de conseguirem um grande lucro às custas da garota não hesitam em submetê-la a um destino cruel.

Zafón faz o encontro destas duas almas perdidas (ele real, ela fictícia) e tem-se um conto sobre amor e tragédia, com pitadas de terror e elementos fantásticos e góticos.

Apesar de não ter um enredo grandioso e nem mesmo muito ambicioso, El Príncipe de Parnaso conserva o que há de melhor no estilo “zafoniano” de escrita: muitas e ricas construções estilísticas, cinematográficas e metafóricas, atmosfera gótica e soturna, ambientes decadentes, romance trágico, e, por fim, artistas frustrados, melancólicos, loucos ou à beira da insanidade. Toda a poética singular do autor se expressa nesse texto, o que dificultou bastante a minha leitura, haja vista que li o conto em sua língua materna.

Apesar de não ter um enredo tão instigante quanto os livros da série do qual faz parte El Príncipe de Parnaso me atrai por ser mais um vislumbre do estilo maduro de Zafón, e do qual senti muita falta nos livros juvenis da Trilogia da Névoa.

Como o texto é contado a partir de um flashback de Sempere – porém narrado em terceira pessoa – os fatos não são absolutamente contados em ordem cronológica. Pelo contrário, o conto começa no ano de 1616, recua 47 anos no passado até 1569, recua mais alguns meses, avança até 1610 e depois retorna a 1616. Para evitar confusões, cada capítulo – com exceção de dois – são datados e localizados geograficamente no título.

Esses constantes vão-e-vêm se dão porque o flashback de Sempere é também entrecortado por um relato do próprio Cervantes, porém narrado em terceira pessoa, e que numa taverna conta a história do tempo passado em Roma e de como acabara fugindo de lá com Francesca. O relato é feito a Sempere e também ao espirituoso, esperto (e inconveniente) Sancho Fermín de la Torre. E aqui temos um dado curiosos: para mim, que li agora 80% da obra de Zafón, é evidente que o nome do personagem Sancho foi escolhido a dedo para fazer referência a dois personagens icônicos. O primeiro deles é Fermín Romero de Torres, amigo, cúmplice e protetor do jovem Daniel desde os fatos narrados no livro A Sombra do Vento até o encerramento da série com O Labirinto dos Espíritos. O segundo personagem pertence ao Cervantes real: o simplório escudeiro de Don Quixote, Sancho Pança.

É perceptível que Zafón escolhe esse nome tão estranho e incomum com o intuito de sugestionar que Cervantes escolhera o nome do escudeiro de Don Quixote inspirando-se na triste figura que conhecera anos antes em Barcelona: um antepassado longínquo do moderno Fermín da Espanha franquista para quem o grande artista uma vez contara a sua história.

Oura referência, essa menos obvia, está no título. El Príncipe de Parnaso faz referência a um dos livros do Cervantes real, Viaje del Parnaso, uma das obras poéticas do autor e publicada em 1614. O termo Parnaso, por sua vez, faz referência ao monte grego Παρνασσός (Parnassos) que aparece na mitologia grega como lar das Musas e que por isso é associado ao lar da poesia, da música e do aprendizado[2]. Um paraíso da arte e das letras. Como grande escritor, Cervantes seria o príncipe de Parnaso.

Para concluir. Em termos de pontos forte e fracos, reitero que o melhor deste conto é a escrita, e sua fragilidade, o enredo. A ideia é original, apesar de que tornar personagens reais em fictícios não seja nenhuma novidade na literatura. Contudo, Zafón integra Cervantes com perfeição ao universo expandido de O Cemitério dos Livros Esquecidos.

Edição espanhola de A Cidade de Vapor

Algo que lamento muito e a mim causa espanto é que a editora Suma, na ocasião da publicação da edição brasileira de O Prisioneiro do Céu, não tenha seguido os passos da editora Planeta de Libros e publicado também aqui essa edição promocional, ou, no mínimo ter publicado o conto em versão epub gratuito como muitas editoras vem feito nos últimos anos com seus títulos mais populares. Já vi coleções (sagas, séries) que eu – da minha parte – dificilmente investiria esforço para ler, terem contos associados aos livros publicados na Amazon e mesmo no Google Play. A Suma perdeu esta oportunidade na época. Todavia, com o lançamento, na Espanha, de La Ciudad de Vapor, isso será corrigido, uma vez que El Príncipe de Parnaso figura entre os contos da coletânea.

É verdade que o conto não é tão instigante quanto a série, mas ganha pontos por nos dar mais um vislumbre dos ancestrais da mesma, assim como Zafón fizera em Rosa de Fuego porém este último destoa um pouco das narrativas centrais por seus elementos fantásticos que inexistem na quadrilogia e também no El Príncipe de Parnaso. Verdade seja dita, El Príncipe de Parnaso tem mais a ver com a série do que Rosa de Fuego.

Quanto ao desfecho, este não é particularmente surpreendente, porque já era do conhecimento do leitor desde as primeiras páginas. No entanto, os dois últimos parágrafos sugestionam mais algumas coisas acerca das origens da grande biblioteca. É neste breve ponto da trama que fica claro porquê, apesar de não focar na grande biblioteca de livros esquecidos, a edição promocional do conto traz em sua capa uma ilustração em ponta de lápis que sugere ser um vislumbre do Cemitério de Livros quando este estava em construção. Um empoeirado e secreto paraíso de livros que para sempre os fãs de Zafón procurarão pelas estreitas ruas da Barcelona antiga.

A edição lida foi distribuída gratuitamente como brinde pela editora Planeta na época do lançamento de El Prisionero del Cielo na Espanha. A edição é do ano de 2012 e possui 35 páginas. Como ele não é acessível no Brasil li numa versão em epub que encontrei na internet.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

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[1]https://super.abril.com.br/historia/o-cavaleiro-da-triste-figura/.

[2]MOUNT PARNASSUS. In: WIKIPÉDIA, The Free Encyclopedia. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Parnassus>. Acesso em: 15 jan. 2021.

 

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