Esse é mais um filme que não entrará para o 7ª Arte por não ter
uma trama que, na minha opinião, daria um bom livro. Mas, por ter alguns
elementos interessantes ganhará uma postagem com comentários sobre sua
narrativa.
Filme dirigido e escrito por
Fernando Coimbra, O Lobo Atrás da Porta
me chamou a atenção por ser amplamente inspirado em A Fera da Penha, um famoso caso policial antigo que teve muita
repercussão na mídia da época. Ocorrido em 2 de março de 1937, esse foi o caso
de sequestro seguido de assassinato de uma criança de 4 anos (Taninha),
cometido pela amante de seu pai, Neyde Maria Maia Lopes, uma mulher que ele
(Antônio Couto Araújo) havia conhecido em um trem e com a qual se relacionou
secretamente por seis meses.
O crime da Fera da Penha
causou grande comoção na população brasileira, a exemplo de outros mais
recentes envolvendo assassinatos brutais de crianças. Porém, a grande
repercussão se deveu não apenas pela grande cobertura que foi feita do caso,
mas particularmente pelo trabalho premeditado da assassina (seis meses de
preparação) e a atitude fria e calculista demonstrada por ela ao negar sua
participação evidente no crime. Conta-se que Neyde só confessou os detalhes de
seu caso com Antônio e de seu crime durante uma entrevista ao jornalista Saulo
Gomes. Não contarei detalhes do crime porque seria quase a mesma coisa de
narrar o filme, mas para os curiosos de plantão sugiro a descrição minuciosa
realizada pela página do site MegaCurioso.
Conhecer a trama real do caso
da Fera da Penha poderia ser um fator
desestimulador, mas, na verdade, assisti ao filme justamente por se inspirar no
caso real. Contudo o filme não é apenas uma compilação do caso apresentando ao
longo da trama alguns aspectos fictícios que deram à protagonista novos motivos
para seu crime de vingança. Além disso, a narrativa foi transposta para a nossa
época e os nomes dos personagens foram alterados. No filme, Neyde é Rosa, interpretada
por Leandra Leal, e os pais da menina são Bernardo (Milhem Cortaz) e Sylvia
(Fabiula Nascimento).
A história contada pelo filme
começa pelo final, quando Sylvia a mãe da menina chega a escola para buscar sua
filha e descobre que alguém se passando por sua vizinha havia levado a criança.
A partir daí começa a investigação do desaparecimento da garotinha e ao longo
dos interrogatórios conduzidos pelo delegado (Juliano Cazarré) vamos sabendo
dos casos de infidelidade de ambos os cônjuges. De imediato as suspeitas recaem
sobre a amante de Bernardo, Rosa que é detida para averiguação. Rosa nega
participação no crime, mas depois de ser reconhecida pela professora que lhe
entregou a menina, resolve contar o que aconteceu. Contudo sua história é cheia
de lacunas e só depois de horas de investigação resolve contar a sua história
desde o dia em que conhecera Bernardo.
No geral a história do filme
é interessante pela forma como Rosa trata a questão, dando pistas falsas ao
delegado e planejando cuidadosamente sua aproximação da família de Bernardo,
mas também pelos elementos fictícios inseridos pelo diretor para enriquecer a
trama original do crime de 1937 (citado inclusive pelo delegado para intimidar
Rosa) e que tornaram mais complexa a história do filme. Por outro lado, tudo é
contado de forma muito arrastada, com muitas cenas dos encontros dos amantes
Bernardo e Rosa, com tomadas enormes que dão close no rosto da protagonista em cenas mais melancólicas, e também
pelas cenas de sexo desnecessariamente longas.
Um ponto positivo do filme é
a forma seca como toda a história é contada. Apesar de girar entorno de um
acontecimento trágico, a película não apela para o dramalhão nem para cenas que
levem o drama ao extremo. Pelo contrário, a naturalidade com que os personagens
agem, os diálogos curtos e outros elementos dão um tom seco a narrativa, como
bem destaca Pedro Vieira[1], do Ccine 10. Contudo não
concordo com o autor quando ele afirma que “as coisas simplesmente acontecem,
geralmente de forma rápida”. Na realidade, acho que o filme desperdiça um
grande tempo com as cenas do casal de amantes e quase perde seu espectador que
julga já saber o desfecho e todos os elementos essenciais da história, o que
não é bem verdade.
Leandra Leal no papel de Rosa
Quanto a interpretação dos
artistas, Leandra Leal no papel de antagonista conseguiu transparecer toda a
dubiedade de uma personagem calculista, ao mesmo tempo que capaz de tudo para
ter o homem que queria.
Rosa tem uma aura de uma
mulher calculista, falsa, em alguns momentos louca sem perder a frieza ou a
naturalidade de seu comportamento. A todo momento temos certeza de que ela,
pelo seu jeito de agir e pelos seus diálogos, é plenamente capaz de cometer um
crime. Contudo, as atitudes de Bernardo, algumas bastante extremadas e
explosivas, e a forma como ele resolve lidar com os excessos de sua amante
contribuem para mudar um pouco a visão que o expectador tem da protagonista
tornando-a não só o algoz, mas também um pouco a vítima, despertando, por
definitivo, os seus piores instintos.
Como disse o caso policial
que inspirou o filme junto com os elementos originais inseridos pelo diretor
Fernando Coimbra tornam até interessante a narrativa, mas não jugo o suficiente
para ser um bom livro. Para ser franco, se quisermos preservar o suspense e o
clima de horror, só haveria história suficiente para um conto bem construído.
Só por isso O Lobo Atrás da Porta não
entrará para o 7ª Arte, ainda
assim, é um bom filme para matar o tédio do fim de semana.
A película é uma produção dos
estúdios Gullane com coprodução da TC Filmes, CaBra Filmes e Pela Madrugada.
Entrou em cartaz no ano de 2014. Tem duração de 101 minutos. Abaixo você pode
conferir o trailer do filme:
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou
da resenha nos comentários.
Vi ontem um
bicho
Na
imundície do pátio
Catando
comida entre os detritos.
Quando
achava alguma coisa,
Não
examinava nem cheirava:
Engolia com
voracidade.
O bicho não
era um cão,
Não era um
gato,
Não era um
rato.
O bicho,
meu Deus, era um homem.
(O Bicho,
poema de Manuel Bandeira)
Nono livro da campanha do #AnoDoBrasil, Quarto de Despejo, marcou na década de
1960 a estreia da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus. Nessa obra
forte e bastante peculiar Carolina transcreve através de seus diários o
cotidiano sofrido e a miséria a que esteve submetida durante os anos em que
vivera com seus três filhos na extinta favela do Canindé, em São Paulo. Com a
crueza de quem viveu uma realidade de fome e desamparo, a autora descreve as
relações conflituosas empreendidas pelos moradores da favela, os desafios para
sustentar seus filhos com o trabalho de catadora de material reciclável e as
mazelas vividas pelos mais pobres na capital paulista, deixando para as
gerações posteriores um testemunho sobre o sofrimento submetidos aos muitos
brasileiros que vivem na pobreza em decorrência da profunda desigualdade social
instalada no nosso país.
Confira a resenha do nono livro da campanha anual de
literatura e que nesse ano homenageia a literatura do Brasil.
Sinopse
Compilação dos diários de Carolina
Maria de Jesus, uma catadora de materiais descartáveis, Quarto de Despejo relata o duro cotidiano da favela do Canindé nos
finais da década de 1950. Ambiente marcado pela extrema pobreza, o Canindé
crescia às margens do Tietê com a chegada de nordestinos, sem-tetos, e toda a
sorte de pessoas que aumentavam o número de barrocões e as fileiras de desvalidos
vivendo em condições subumanas na capital paulista. Entre eles vivia a mineira
Carolina com seus três filhos pequenos.
Negra, mãe solteira e
desempregada, Carolina sobrevivia enfrentando a fome com o parco dinheiro que
conseguia catando papel e “ferros” para vender. Nessa vida sofrida que muito a
amargurava, seu único consolo eram as palavras que imprimia no papel relatando
sua agonia e refletindo a injustiça da vida e dos homens. Seria também através
das palavras que obteria a sua liberdade, ainda que momentânea. Dos cadernos catados no lixo nasceria o diário
que projetaria Carolina como uma das mais importantes escritora negras da
literatura brasileira, injustiçada até o fim, mas que passaria a ser conhecida
em todo o mundo através de seu testemunho e exemplo.
Resenha
A autora
Falar desse livro sem
antes explicar que tipo de mulher foi Carolina é impossível e, até certa
medida, incoerente, pois, sendo a obra o "Diário de uma Favelada",
ela é a escritora e a protagonista. Mas mais do que esse duplo papel na
narrativa, Carolina foi na vida a figura icônica que representa o despossuído,
o faminto, a mulher negra, a mãe chefe de família e o indivíduo que vive à
margem da sociedade, ou seja no "Quarto de Despejo".
Carolina Maria de Jesus
nasceu no município mineiro de Sacramento em 14 de março de 1914. Estudou
apenas as séries iniciais por pouco mais de dois anos nos quais aprendeu a ler
e escrever.
Em 1947, com pouco mais de
trinta anos de idade, mudou-se para São Paulo, onde, por força da necessidade,
tornou-se moradora da extinta favela do Canindé, localizada na zona norte da
cidade às margens do rio Tietê.
Para sobreviver e alimentar
seus três filhos, João José, José Carlos e Vera Eunice, Carolina trabalhava
como catadora de papel, metais e outros materiais que vendia em depósitos de
produtos recicláveis da cidade. Por vezes comia restos de alimentos descartados
no lixo das casas e também dos dejetos retirava os cadernos onde registrava,
sob a forma de diário, não só o cotidiano da comunidade em que vivia, como
também poemas e canções que compunha.
No Canindé era odiada e
temida pelas pessoas da favela pois em suas discussões com os vizinhos sempre
ameaçava de colocá-los no livro que escrevia. Após uma destas discussão
conheceu Audálio Dantas, um jornalista que em 1958 visitava a comunidade para escrever
uma reportagem, mas que se interessando pelos escritos de Carolina ajudou-a a levar
à público seu livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, publicado em
1960 pela Editora Francisco Alves.
Carolina Maria de Jesus e Audálio Dantas na Favela do Canindé.
São Paulo, 1961
Quarto de Despejo vendeu
100 mil exemplares e foi traduzido para 13 idiomas em mais de 40 países,
tornando Carolina em uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do
Brasil[1]. Com
o dinheiro obtido com a vendo dos direitos de seu primeiro livro, comprou uma
casa de alvenaria e saiu da favela, contudo suas obras posteriores não
alcançaram o sucesso de seu livro de estreia e Carolina voltou a pobreza,
falecendo em 13 de fevereiro de 1977, com 62 anos.
Na visão do jornalista que
a descobriu a escritora foi transformada “em
artigo de consumo e, em certo sentido, num bicho estranho que se exibia como
uma excitante curiosidade". Segundo texto biográfico da Fundação
Palmares[2] “Carolina sempre foi muito combativa, por
isso era mal vista pelos políticos de esquerda e direita quando começou a
participar de eventos em função do sucesso de seu livro. Por não agradar a
elite financeira e política da época com seu discurso, acabou caindo no
ostracismo e viveu de forma bem humilde até os momentos finais de sua vida”.
Ainda segundo a Fundação
Palmares, mesmo hoje, grande parte da obra da escritora continua inédita e é
composta não apenas pelos diários como por romances, textos curtos, poemas,
peças de teatro e letras para marchas de carnaval.
Carolina também chegou a
produzir um disco com o mesmo título de sua primeira obra onde interpretou canções
de sua autoria. No final dessa postagem você pode conferir um vídeo com a
reprodução de uma das canções da autora, O
Pobre e o Rico.
O livro
Quarto de Despejo
é a compilação dos diários de 1955, 1958 e 1959 quase sem nenhuma alteração do
texto original. Por isso esse é um livro carregado pela oralidade de Carolina,
com erros ortográficos e de concordância que preservaram a forma estética original
do seu discurso. Contudo, pela extensão muito grande de seus diários – quase
mil páginas – e seu detalhamento, Audálio, então responsável pela organização
dos escritos de Carolina, levou meses para selecionar os trechos e diários mais
significativos para compor o livro final. O resultado é um conjunto de enxertos
que seguem uma linha cronológica e dão conta de apresentar as idas e vindas na
vida de Carolina e de seus filhos.
Na escrita de seus
diários, Carolina vai desfiando o cotidiano da favela do Canindé, as brigas
frequentes e enfrentamentos entre os vizinhos, como as crianças cresciam em um
espaço cheio de devassidão e violência. Por isso, o espaço central da narrativa
de Carolina é sem dúvida a favela, cuja imagem a autora pinta como um lugar
onde impera o pior dos cenários: a precariedade, a carência, a depravação, a
violência e as intrigas. Uma terra sem lei e onde falta tudo.
Entre uma visão crítica,
dura e até mesmo impregnada de aversão e amargura em relação a realidade que
vivia no Canindé, Carolina vai narrando as relações e intrigas entre os
sujeitos com quem convivia e o seu sofrimento e desgosto por ser da e estar na
favela. Assim, criticamente, e sob a ótica de alguém que queria, através das
suas ações e do seu modo de pensar, diferenciar-se dos demais, ela vai contando
sobre as brigas, as tentativas de homicídio, os casos de infidelidade,
pedofilia e incesto que aconteciam na favela. Descreve como ela se envolvia nas
brigas de seus vizinhos na tentativa de corrigir as injustiças que presenciava,
como enfrentava aqueles que agiam com desafeto para com ela e seus filhos e
como com o pouco que tinha ainda ajudava outros que com ela buscavam ter uma
relação de camaradagem.
O livro conta também como
pelo seu jeito de ser e agir era hostilizada pelas mulheres que ela criticava,
fala sobre as implicâncias e perseguições sofridas por seus filhos que muitas
vezes eram vítimas de maus-tratos por parte dos moradores e até mesmo de como
um de seus meninos chegou a ser acusado de assediar uma garota menor do que
ele.
Carolina Maria de Jesus, Audálio Dantas e Ruth de Souza na Favela do Canindé.
Quarto de Despejo
é um livro que impressiona pela descrição de um ambiente devasso e inculto, mas
que não foi capaz de corromper ou abalar os princípios da autora. Ao contrário,
Carolina busca manter uma retidão de caráter e tinha nos livros e nas palavras
o seu refúgio preferido. É uma história real que comprova a falsidade da tese
(que contraditoriamente a autora em muitas passagens defende) de que o meio
determina o homem.
Na minha opinião, e o
livro me dá substrato para crê-lo, o homem é influência do meio somente quando
este não teve em sua formação, o que a sociologia chama de socialização, referências que o reconduzissem seu caráter e moral
para um caminho adverso ao do entorno. Carolina teve da sua mãe e dos livros
que lia a formação de um caráter crítico, independente, honesto e sensato,
mesmo tendo ido viver em um ambiente que ela descreve como marcado pela
discórdia, embriaguez, violência e promiscuidade. Enfim, ela não se permite igualar-se.
Por outro lado o livro também
nos permite ver situações completamente opostas e que parecem confirmar a tese,
e nessa dubiedade nos mostra como é assustadora a fome e a pobreza extrema que
por vezes desumaniza as pessoas. Tem-se, aí, o palco e o cenário para a inveja de
alguém que foi favorecido com algo (um simples pedaço de pão, alguns cobres), para
o desespero por qualquer esmola, para a desunião dentro do lar, para a trapaça,
o desafeto, o alcoolismo, a violência e a marginalidade.
No entanto, a narrativa do
diário não se restringe a favela e descreve igualmente as dificuldades de Carolina
para alimentar sua família como mãe solteira e da sua convicção em não depender
de homem algum. É particularmente comovente o seu desespero e amargura quando
os filhos reclamavam da fome e ela muito pouco tinha a oferecer para saciá-los,
o que levou-a a pensar por diversas vezes em entregar seus filhos à assistência
social.
Mas a abordagem da autora
é bastante globalizada e oscilante indo da sua realidade cotidiana ao o que
acontecia no Brasil e no Mundo. Assim, com seu olhar singelo e pouco instruído,
mas sempre muito sagaz e atento ela vai desfiando de forma crítica os jogos
políticos da época, as desventuras do trabalho como catadora e os horrores que
presenciava, a exemplo da morte de um rapaz que tendo comido restos do lixo
amanheceu morto no dia seguinte (falarei mais sobre esse caso na próxima
secção).
Fala de como o preço dos
alimentos se mantinham altíssimos e de como era imenso o número de desvalidos
nas filas de distribuição de comida quando algum político, no período
eleitoral, resolvia distribuir algo aos necessitados, além de citar
acontecimentos internacionais de grande monta e também do cenário político
brasileiro o que, por sua vez, exigiu diversas intervenções do editor através
de notas de rodapé que contextualizavam as referências da escritora. O
resultado é a denúncia e um panorama da desigualdade e segregação social no
Brasil do final dos anos 50, do cenário político da época, e também de fatos
que se desenrolavam no exterior, o que demonstra o quanto bem informada era
Carolina, uma simples catadora de papel que vagava pelas ruas de São Paulo em
busca do seu sustento.
Ante aquela realidade, a
visão de mundo da autora não é romantizada e muito pouco esperançosa, apesar de
ainda ali existir uma fé tímida na mudança, nutrido mais pelo desejo inabalável
de mudar do que pela crença infundada na transformação de sua vida. De todo a
todo, uma mulher realista, inteligente, politizada, destemida e determinada,
ainda que fossem poucas as suas ferramentas para lutar.
Por isso, a narrativa do diário é algo que atravessar
as mais diferentes dimensões da vida humana: a luta pela sobrevivência, a
criticidade, a poesia, o amor, a intriga, a injustiça, a maternidade, a
traição, a bondade e a caridade, a desilusão. Todos esses sentimentos e
características humanos têm lugar no diário de Carolina eles surgem e se
mesclam na vida da autora e das pessoas que a cercam.
Quarto de Despejo: a metáfora que dá título
ao livro
Em Quarto
de Despejo foi preservado muito da linguagem e escrita original da autora
com quase todas imprecisões gramaticais cometidas pela autora.Desse modo este é um livro que só por
sua linguagem já nos diz muito sobre a autora e sua origem social. Contudo essa
mesma linguagem marcada pela oralidade e o coloquialismo também traz uma gama
de palavras, expressões e observações que ainda revelam uma leitora assídua e
muito bem informada, ainda que nem sempre precisa.
Mesmo se tratando da
compilação dos diários da autora, mais do que um texto pessoal e descritivo ele
é também, por vezes, bastante metafórico, sendo que a principal, mais frequente
e inquietante de suas metáforas é aquela que dá título ao livro: a metáfora do quarto de despejo.
Nesta metáfora Carolina
compara as diferentes regiões de São Paulo com as partes de uma casa. A parte
nobre seria a sala de visita, bonita
e arrumada – comparação que ela estende a prefeitura municipal –, enquanto a
favela seria o quarto de despejo,
aquele quartinho no fundo da casa, algumas vezes em um ponto afastado do quintal,
desarrumado e esquecido, onde se coloca tudo o que é velho, quebrado ou sem
utilidade, e que por deixar feio o ambiente (a sala principal) é tirado do
campo de visão de quem é de fora (as visitas):
“As oito e meia da noite eu já
estava na favela respirando o odor dos excrementos: que mescla com o barro
podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com
seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando
estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar
num quarto de despejo”.
“... Eu classifico São Paulo
assim: O Palacio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a
cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”.
“Abri a janela e vi as mulheres
que passam rápidas com seus agasalhos descorados e gastos pelo tempo. Daqui a
uns tempos estes palitol que elas ganharam de outras e que de há muito devia
estar num museu, vão ser substituidos por outros. E os politicos que há de nos
dar. Devo incluir-me, porque eu tambem sou faveada. Sou rebotalho. Estou no
quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no
lixo”.
Logo, o que se entende
dessa singela mas inteligente analogia entre a favela, os bairros com
infraestrutura adequada e as partes da casa, é que são as pessoas extremamente
pobres e sem instrução os trastes velhos e feios, o “rebotalho” que deve ser descartado, escondido, jogado a margem,
para que se higienize a sala de estar ou de visitas. Só se vai lá quando se tem
um interesse – é o caso dos políticos – e se o que está lá já não possui
serventia, “queima-se ou joga-se no lixo”,
ou seja remove-se.
Quarto de Despejo
ilustra muito bem a realidade que fez Carolina denominar a favela com esse
termo ao demonstrar na narração do cotidiano a atitude dos políticos em relação
a comunidade, a opinião dos moradores dos bairros mais próximos da favela que
consideravam os favelados como indesejados, e, sobretudo, na precariedade da
vida daquelas pessoas. Assim o livro
está povoado de imagens tristes e até revoltantes, mas o que mais me chamou
a atenção foi a morte de um rapaz que comia no lixo e que me fez lembrar do O Bicho de Manuel Bandeira, o poema da
epígrafe dessa resenha. Veja o que aconteceu:
No dia 29 de maio de 1958,
Carolina relembra um “pretinho bonitinho”
que como ela vendia objetos de ferro catados no lixo. Ela conta que um dia
encontrou o “pretinho” em um lixão, onde era comum jogarem carne no lixo. Naquele
dia rapaz escolhia alguns pedaços espalhados pelo lixo e que ele pretendia comer,
chegou a dar alguns a ela que aceitou “para
não maguá-lo”. Ela tenta convencê-lo a não comer a carne visivelmente
deteriorada, mas ele não a escuta e devido a fome muito grande acende um fogo e
assa a carne. Incapaz de conter a fome acaba só esquentando e comendo. Para não
presenciar aquela cena, Carolina vai embora e só recebe a notícia no dia
seguinte da morte do rapaz. O restante é até difícil de escrever:
“No outro dia encontraram o
pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros.
Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia
documentos. Foi sepultado como um qualquer. Ninguem procurou saber seu nome.
Marginal não tem nome”.
Em O Bicho, Bandeira relata com indignação o dia em que viu um homem
se alimentando dos restos jogados no lixo. No ápice de sua surpresa o poeta
confunde com um animal aquele ser humano que “Quando achava alguma coisa,/Não examinava nem cheirava:/Engolia com
voracidade”. De forma muito marcante o relato de Carolina faz reviver “o
bicho” na figura do “Pretinho”, meio que lhe dá forma, sem porém lhe dar nome,
pois assim como o Bicho, Pretinho não tem nome.
O relato de Carolina de
certa forma – mas sem que haja intertextualidade, ressalto porém – transporta a
poesia de volta a realidade concreta de onde foi tirada, e mesmo ela que já
estava habituada a miséria fica assombrada diante daquela cena. Estarrecimento
que, assim como acontece com o poeta, se converte em indignação. Por isso essa
passagem do diário me fez recordar Bandeira e seu poema.
A cena da morte do
“Pretinho” é com certeza a mais forte de um livro que no todo é impressionante,
o que justifica o seu sucesso na época de sua publicação.
Através da descrição da realidade marginal da
população brasileira submetida a extrema pobreza, Quarto de despejo faz uma denúncia social acercadas profundas
desigualdades sociais que marcam desde muito tempo o cenário econômico e social
do nosso país. É um tapa na cara e um retrato fidedigno de um país marcado pela
injustiça social. O retrato de um Brasil que ainda existe e de brasileiros que vivem
em condições subumanas. Não há como ler este livro e não se sentir despedaçado
depois. Não há como sair deste livro sendo o mesmo e quando conhecemos o depois
de Carolina, o insucesso de sua carreira, temos a certeza de como o nosso sistema
social é injusto.
A edição lida é da Editora Ática,
do ano de 2007 e possui 192 páginas.
Ulisses
Tavares é poeta, professor, publicitário, jornalista, dramaturgo, compositor,
roteirista e ator brasileiro. Nasceu no dia 08 de maio de 1950, na cidade de Sorocaba,
Estado de São Paulo. É formado em Publicidade e Tecnologia da Informação. Publicou
seu primeiro livro de poesias em 1977. Hoje tem 112 livros publicados e mais de
20 milhões de exemplares vendidos.
Poema
extraído do livro Diário de Uma Paixão, publicado em 2003, pela editora Geração.