Por Eric Silva para a Tag Novos Escritores
12 de janeiro de 2019, ano
da Itália.
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Nos últimos tempos, navegando pelas redes sociais, tenho
conhecido muitos autores novos com poucos anos de carreira, estreantes, além de
autores independentes que lutam pelo seu espaço no tão competitivo e fechado
mercado editorial. Esses encontros casuais acabaram por lembrar de muito outros
que possuo na estante e que nunca cheguei a ler. No final, isso me deu a ideia
de uma nova tag: o “Novos Escritores”. A resenha de hoje é sobre uma dessas
produções independentes muito bem-acabadas e de alta qualidade narrativa.
Uma aventura fantástica, Krystallo – Jornadas para além das fronteiras é o primeiro livro do
advogado pernambucano Raphael Fraemam. Bastante politizada e com personagens
engajados esse é um livro relevante cheio de referências geopolíticas e que
ensina os leitores mais jovens a serem conscientes politicamente de uma forma
divertida, original e criativa.
Confira a resenha.
Sinopse
do enredo
Em Krystallo – Jornadas para além das fronteiras, as duas
poderosas superpotências do continente de Emperon, Econ e Opus, se encontram em
uma guerra secular que se iniciou logo depois da vitória conjunta dos dois
países sobre a nação de Cratia.
Cratia era na época da guerra um pequeno país de regime fascista
que ganhava poder e ameaçava as fronteiras dos países vizinhos, sobretudo
depois da descoberta de um cristal raro (o krystallo amarelo) do qual se podia
extrair um grande volume de energia por tempo indeterminado. Logo as
potencialidades dos cristais se tornam estratégicas e ao mesmo tempo uma ameaça
para os países envolvidos na guerra e, por isso, após a queda de Cratia, as
duas nações vitoriosas iniciam uma disputa pelo controle do poder dos cristais,
uma guerra que perdura por um século.
Cada uma detentora do poder de um cristal, Econ e Opus se erguem
como duas grandes nações militares e tecnológicas contrárias e que estendem seu
domínio político aos demais continentes. Econ se constitui como uma nação
capitalista e avançada, enquanto Opus, um país de caráter socialista.
É nesse contexto de ódio que um atentado acontece em um dos mais
importantes edifícios do governo de Econ, e o incidente envolve o jovem Tomé
Stalmer em uma aventura que ele não imaginaria para além das fronteiras de sua nação. Por sua vez, em Opus, Gray Frost
é forçada a deixar seu país após ser sequestrada no dia de seu aniversário.
Os dois eventos aparentemente desconexos, porém, são os
desencadeadores de uma grande aventura que mudará a vida não apenas dos dois
adolescentes que são arrancados de seus respectivos países e jogados em um
mundo novo e desconhecido, mas também revolucionará o curso da história
política das duas grandes potências.
Sobre
o autor
Raphael Fraemam tem 25 anos, mora em Recife-PE, é advogado,
mestre em Direito Civil e professor universitário. Aos oito anos, escreveu seu
primeiro livro literário, Os Guerreiros
da Floresta e a Caverna da Liberdade, e foi o escritor mais jovem da Feira
Internacional do Livro de Pernambuco no ano de 2001. Tem artigos acadêmicos
publicados em revistas jurídicas e em livros coletivos. Em 2015, organizou uma
obra coletiva de Direito Civil, Reflexões
do Direito Civil. Seguindo um antigo desejo, retornou para a literatura
quando, em 2018, terminou Krystallo -
Jornadas para além das fronteiras.
Resenha
Personagens conscientes
e referências geopolíticas relevantes
O Krystallo Amarelo, importante fonte de energia. Imagem: divulgação. |
Li Krystallo ano
passado a convite de seu autor e me surpreendi com a relevância política desse
livro. Digo isso porque Krystallo é
um livro que entretém ao mesmo tempo que retrata toda a geopolítica de um
século, incitando os jovens a terem consciência política e assumirem um papel
ativo na transformação social de suas nações.
O mundo criado
por Fraemam é marcado por uma intensa disputa política entre duas grandes
nações e que alimentam guerras bélicas, ideológicas e tecnológicas além de
movimentos de cunho nazifascistas. Nesse cenário e usando temas como
desenvolvimento tecnológico, hegemonia política, controle social, diferenças
étnicas e nacionais, sequestro e teletransporte, o escritor insere na trama
duas personagens críveis e com muita consciência social e política que se
destacam. Essas duas personagens passam a conhecer um mundo novo, fantástico e
desconhecido, e igualmente desenvolvem um olhar político diferenciado e novo
sobre suas próprias nações, ou seja, personagens cujo senso crítico se
desenvolve à medida que passam a ter contato com novos povos e ideias. Porém,
as personagens de Fraemam não se limitam a desenvolver uma concepção crítica do
mundo e passam igualmente a agir conforme seus próprios princípios e a lutarem
por seus países. O resultado final é uma
trama com dois núcleos narrativos com seus respectivos protagonistas e
personagens altamente politizadas.
O primeiro protagonista é Tomé, habitante de Econ. Ele é um
menino que não gosta do sistema de educação de seu país, não possui uma
consciência política bem formada, mas é dono de um senso crítico apurado. Como
representante de uma classe social favorecida ele é um rapaz que vive uma vida
despreocupada e seus problemas são de ordem menor. Entretanto, Tomé é também
uma personagem que possui um desejo latente por liberdade e se apaixona pela
forma como a educação em outros países é mais diversa. Íntegro, justo, ele não
é muito corajoso, mas é bastante determinado.
A segunda protagonista é Gray. Uma moça inteligente esforçada,
forte, determinada, íntegra e corajosa ela é uma habitante de Opus filha de
dois trabalhadores (operários) que lutam arduamente pela sobrevivência de suas
duas filhas. Esforçada, Gray possui ciência dos problemas sociais de seu país e
do esforço de seus pais, e luta por uma boa colocação nos quadros sociais
existentes. Com um apurado senso de dever e de justiça, ela é fortemente
compromissada com seu país e com a sua família. Muito inteligente e estudiosa,
deseja ser pesquisadora do Estado e ajudar não apenas sua família como também
para o engrandecimento de sua nação.
Com personagens fortes e de mentes abertas e conscientes,
Fraemam traz aos seus leitores, sobretudo ao público mais jovem, uma mensagem
clara e bastante relevante: Sejam conscientes! O entendimento sobre
política é essencial para vida e para a justiça social! O mundo só se
transforma com engajamento político!
Esse engajamento político me impressionou bastante e me fez
gostar do livro, mas não foi o único aspecto a me chamar a atenção. O outro é
como sua narrativa se assemelha bastante a história política do século XX,
fazendo alusões à Segunda Guerra Mundial, aos regimes totalitários do período
entre guerras e à Guerra Fria. Essas
alusões me fazem pensar que talvez o livro seja não só uma história de fantasia
e aventura com uma crítica social, mas igualmente uma crítica política aos
regimes excludentes e totalitários e às guerras ideológicas.
Se observarmos de perto o enredo de Krystallo veremos que existem muitas semelhanças entre a história
de guerra ideológica entre Opus e Econ e o que aconteceu durante a Guerra Fria.
Durante a Guerra Fria tivemos um mundo bipolarizado, ou seja,
uma divisão política e econômica em dois grandes blocos com duas superpotências
tecnológicas e militares: os Estados Unidos da América (EUA), líder do bloco
capitalista, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Essas duas
potências digladiavam entre si pelo controle político do mundo e por estender
sobre ele sua hegemonia.
De forma análoga, em Krystallo,
temos Econ (EUA), que é capitalista e possui uma elevada divisão e desigualdade
social, e Opus (URSS), que é uma ditadura socialista com forte controle social,
sem classes sociais, mas com distinção em relação a elite burocrática. Ambas
atacam ideologicamente o sistema social da outra e rivalizam numa corrida
tecnológica (os cristais de energia), ou seja, uma corrida pelo avanço
tecnológico que garanta poder bélico à uma Guerra Ideológica no qual cada
governo exalta seu próprio sistema e ataca o outro. Se isso não bastasse, as
duas nações ainda deixavam suas respectivas populações mergulhados na
ignorância em relação ao restante do mundo e às diferentes culturas nele
existentes.
Outra
referência é aos regimes totalitaristas, ou seja, ao nazismo alemão que
conduziu a Alemanha de Hitler, a Europa, a URSS e os EUA à Segunda Guerra
Mundial.
Brasão do misterioso grupo fascista presente na trama |
Cratia (Alemanha fascista), país contra o qual Econ e Opus
lutam, derrotam e ocupam, possui uma ideologia calcada na superioridade de um
grupo sobre os demais e que legitimaria o controle social exercido por esses
poucos eleitos, ou seja, Fraemam faz uma releitura do mito hitlerista da
superioridade da raça Ariana e que é a
base ideológica do nazismo. De forma igual ao que ocorre com Cratia e seus
remanescentes, a Alemanha foi derrotada na Segunda Guerra, seu líder político
foi dado como morto e o território, ocupado pelas duas superpotências que
passaram a controlar a Alemanha. Essa divisão territorial e o fim da guerra
lançam as bases para a Guerra Fria.
Além disso, o nazismo é derrotado e condenado, porém, sua
ideologia sobrevive dando origem a grupos radicais, xenofóbicos e racistas que
agem secretamente e são conhecidos como neonazistas, aspecto que também é
explorado pela trama de Fraemam.
A última
referência que percebo é ao uso de bombas nucleares durante o período de
conflito.
Apesar de a Alemanha ser derrotada, a Segunda Guerra não
finda com a derrota de Hitler, mas com a rendição dos japoneses após o
lançamento das bombas nucleares de Hiroshima e Nagasaki. O uso dessas armas
mortíferas de destruição em massa não só funcionou como ferramenta contra os
inimigos remanescentes da Segunda Guerra, como também foi um indicativo do
poder bélico das superpotências e um aviso ameaçador aos inimigos
políticos. Na guerra contra Cratia,
armas similares também são usadas sobre os aliados remanescentes do país
derrotado e a supremacia das superpotências é assegurada.
Os aspectos
literários da obra
Em se tratando de elementos literários, Krystallo foi desenhado como um livro de fantasia com uma narração linear e que se alterna capítulo a
capítulo entre os dois focos narrativos da trama.
A escrita de Fraemam é
firme e viva, o texto é claro sem ser nem
excessivamente coloquial ou erudito e trata temas complexos e difíceis com
maestria e simplicidade. Contudo, Fraemam é muito detalhista. Em grande
parte da história o narrador se ocupa ao longo de extensivas passagens a
descrever e explicar o mundo no qual a história se dá. Trata-se de um aspecto
cansativo, mas essencial da trama, porém muita coisa é repetida por conta do
foco narrativo dividido em dois, e isso pode incomodar leitores mais exigentes.
O livro é subdividido em
muitos capítulos curtos com ganchos estrategicamente pensados. Achei
maravilhosa essa estruturação em pequenos capítulos, porque acho
insuportavelmente cansativos capítulos grandes, porque geralmente focam
demasiadamente em um só aspecto ou momento narrativo, e limitam as
possibilidades de interrupção da leitura. Capítulos curtos permitem-me parar a
leitura em um momento mais confortável e dá fluidez a narrativa. Porém a
alternação entre focos narrativos as vezes pode ser por demasiado cansativo,
por ter interrupções demais no fluxo narrativo. Fraemam tenta equilibrar sua trama,
mas acho que muitos leitores ainda assim se incomodarão com a dobradinha
narrativa entre a história de Gray e Tomé que vivem cada qual a sua própria
aventura.
Ainda assim, o livro ganha muitos pontos pela
criatividade e originalidade de sua trama que não consegui referenciar com
nenhum outro livro do mesmo gênero. Apesar disso, minha maior crítica está
relacionada ao desfecho. Krystallo
possui uma história um tanto fechada, porém com possibilidades de ser reaberta,
com desfecho fraco e um tanto inverossímil uma vez que situações políticas
complexas não apresentam soluções simples e rápidas como as pensadas para a
trama.
Eu no lugar do escritor
não tentaria uma solução imediata aos problemas que são força motriz da trama,
porque isso quebrou a verossimilhança da história. Permitiria que a situação
dos países se complicassem ainda mais e daria tempo para o crescimento dos
personagens, para a reunião de forças de oposição e concluiria o livro com uma
verdadeira revolução a exemplo do que ocorreu em outras tramas de sucesso. Contudo,
as razões desse final que buscou ser mais fechado quando deveria estar aberto
para um desenvolvimento posterior, em um segundo volume, se tornam bastante
plausíveis quando, em conversa com o autor, você conhece seus anseios e
preocupações ao se lançar pela primeira vez no difícil e nem sempre justo
mercado editorial, onde a crença nos autores estreantes é pequena e as apostas,
raras e modestas. A primeira aposta de um
autor independente deve ser num romance fechado, mas que lhe permita prosseguir
caso a obra seja bem recebida. Um ponto de vista aceitável, prudente e
bastante lógico.
Felizmente, Fraemam parece
ter muitos planos para Krystallo que
ainda tem muitas aventuras para contar. Isso fica claro quando analisando a
obra. Percebo que Krystallo tem algo que eu jamais conseguiria fazer: uma narrativa
com bons encaixes. Mesmo com soluções
rápidas para problemas complexos, no desfecho também é possível perceber que o
autor posiciona suas personagens como peças de xadrez preposicionadas para a
construção de uma narrativa futura e assim cumprir novos papéis em novas problemáticas
que surgirão no futuro.
Por fim, gostaria de
ressaltar que Krystallo –
Jornadas para além das fronteiras é uma produção independente, mas de
qualidade ímpar e, por isso, parabenizo mais
uma vez seu idealizador e desejo muito sucesso em sua trajetória.
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