Por Eric Silva
18 de janeiro de 2025, ano do 13º aniversário do Blog
– E que última revolução é essa que você
quer? Não há última, as revoluções são infinitas. Último é para as crianças: o
infinito as assusta, e é imprescindível que as crianças durmam tranquilamente à
noite...
(I-330, Nós,
Evgeni Zamiátin).
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas. Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.
Marco inaugural de um gênero literário, um universo ficcional originalíssimo e fonte de inspiração para a obra de autores famosos como Huxley, mas uma completa decepção para mim. Este é Nós, livro do escritor russo Evgeni Zamiátin.
Sinopse do enredo
Após a Guerra dos Duzentos
Anos, o Estado Único saiu vitorioso e edificou uma nova sociedade, rigidamente
controlada e matematicamente ordenada. As pessoas deixaram de constituir
famílias, e os conceitos de pai e mãe foram completamente abolidos. As
identidades e individualidades foram suprimidas, e os cidadãos passaram a ser
“nomeados” de forma alfanumérica: uma letra seguida de três algarismos, como se
fossem números de série. Na realidade, eles não se identificam mais como
“pessoas”, mas como “números”, unidades menores e insignificantes de um “poderoso e único organismo” que vive de
forma padronizada, executando suas atividades predefinidas de maneira sincronizada,
conforme horários estabelecidos pela autoridade estatal.
Vivendo em uma redoma de
vidro fosco chamada Muro Verde, esses
números desconhecem o mundo para além de seus limites, pois a “vida nômade” foi
completamente extinta. Habitando construções inteiramente feitas de vidro,
desconhecem igualmente o conceito de privacidade. A atividade sexual é
rigidamente regulamentada através dos chamados talões rosas, nos quais parceiros são pré-definidos e encontros são
agendados com tempo limitado. Apenas nesses momentos o uso de cortinas é
permitido, já que algum vestígio de pudor foi preservado pela nova ideologia.
O grandioso Estado Único é
absoluto, e seu líder, o Grande Benfeitor,
é venerado como uma figura divina. Ele é exaltado como um Deus terrível, cuja crueldade
é apresentada como um ato de amor, pois lidera com firmeza a sociedade que,
supostamente, descobriu a verdadeira felicidade e é sua missão preservá-la. Ordem, controle e padronização são as
molas mestras do regime, diligentemente preservadas pelos milhares de olhos e
ouvidos dos Guardiões.
O novo grande feito que o
Estado Único está prestes a realizar é a conquista do espaço e de suas
desconhecidas civilizações, que, segundo sua doutrina, necessitam ser iluminadas
pela “felicidade matematicamente
infalível” do Estado. Afinal, é dever do Estado Único “obrigá-los a serem felizes.” D-503 é o engenheiro responsável por
construir a nave que cumprirá essa missão grandiosa: a Integral.
Entre as tarefas de D-503
está também a de registrar, na forma de um diário, relatos pessoais sobre como
é viver na grandiosa sociedade comandada pelo Benfeitor. É através dessas
anotações, repletas de exaltações matemáticas, filosóficas e até poéticas, que somos
apresentados a todo esse universo. Contudo, é principalmente por meio delas que
acompanhamos como D-503 começa a questionar suas convicções ao conhecer I-330,
uma mulher estonteante e subversiva, que demonstra desprezo pelas regras do
regime e ousa não apenas desafiá-lo, mas também cometer a ousadia de imaginar!
Sem perceber toda a trama
que envolve essa mulher misteriosa e cheia de segredos, D-503 é arrastado por
uma espiral de mudanças, questionamentos, dúvidas e rupturas que transformarão
– talvez para sempre – a sua visão do único mundo que ele conhece e exalta.
Impressionante, não
é? Ainda assim, este livro não conseguiu me cativar.
Resenha
Nosso
encontro e minha queda: narração enfadonha, confusa e fragmentada
Há bastante tempo que eu queria ler Nós, principal
obra do escritor russo Evgeni Zamiátin e grande marco na história de um dos gêneros literários mais queridos pelos leitores
de ficção e espectadores de séries e filmes como Silo, O Conto da Aia,
Snowpiercer e Admirável Mundo Novo: o gênero distópico.
Mas esses não eram os motivos que me levavam a querer ler esta obra da
literatura russa que, apesar de sua
importância, ainda é pouco conhecida. Eu queria ler Nós porque o design gráfico da edição desenvolvida
pela editora Aleph é tão absurdamente enigmático e sombrio em toda a sua
simplicidade que aquele livro parecia me chamar para mergulhar nele e em seus
mistérios, como um poço profundo e
escuro que convida e quase traga quem ousa olhar para suas profundezas.
A queda para mim, no entanto, foi fatal.
O que me impedia de ler esse livro era não tê-lo em mãos e
nenhum tempo sobrando para manter minhas metas de leitura – a última vez que
publiquei uma resenha foi em 2022 e escrever esta vem sendo um desafio enorme.
No entanto, no ano passado me deparei com uma edição do PNLD Literário na
biblioteca da escola onde trabalho e vi ali a oportunidade de cumprir a missão
de ler este livro que tanto me chamava a atenção. Foram 93 dias de leitura
entrecortada e, principalmente, enfadonha.
Nós é terrível de se ler! E não é por conta de
ser um livro com um século de idade (1924), porque a tradução é bastante
acessível em termos linguísticos e vocabulares.
Nós é terrível porque sua narração é enfadonha, confusa e fragmentada.
O livro é narrado na forma de um diário, onde o protagonista
relata os últimos acontecimentos vividos por ele enquanto dialoga com supostos
seres alienígenas a quem destina seus escritos.
Construtor da nave espacial Integral, que irá levar a ideologia do
Estado Único para além das fronteiras planetárias, D-xxxx também é encarregado
de escrever sobre si mesmo e sobre a
maravilha que é o mundo matematicamente padronizado criado pelo Estado Único.
Contudo, o narrador está completamente imerso
na ideologia defendida pelas autoridades controladoras da sociedade em que
vive. Ele não possui nenhuma referência
do que significa viver sem ter suas atividades cotidianas padronizadas,
predeterminadas e cronometradas de forma rígida e inalterável.
Ele não sabe o que é pensar por conta própria, imaginar
alternativas à realidade existente ou
sequer experimentar experiências banais como ser filho de alguém, ter uma fé
religiosa, rebelar-se contra algo, desejar privacidade ou possuir individualidade.
Nem mesmo a identidade conferida por um nome ele tem. D-503 é apenas uma sequência
alfanumérica — toda a sua identidade como indivíduo. A ideologia do
Estado Único é, antes de tudo, uma ideologia de despersonalização e
desumanização em prol de um racionalismo exacerbado que vê na previsibilidade e
na padronização matemática a única forma verdadeira de felicidade — aquela que reside no controle total dos
sujeitos por meio do “privilégio da ignorância”, que nasce da ausência da necessidade
de pensar por si mesmo.
Em nome dessa racionalização
extremista, o Estado Único força todos os “números” a fazerem tarefas
pré-definidas em horários pré-definidos, de forma coletiva, sincronizada,
padronizada e mecânica, como engrenagens que sabem seu papel: girar em uma direção previamente definida, de forma
sincrônica e harmoniosa, para que o todo funcione. O homem é transformado em máquina por uma ideologia mecanicista. E
aqui está uma ironia de Zamiatin: o mecanicismo do século XVIII, que acreditava que o universo
funcionava de forma mecânica e pré-definida, surgiu no auge do racionalismo histórico e científico.
Enfim, a despersonalização no
universo ficcional de Nós é tão absurdamente profunda que os sujeitos
não se veem como únicos, mas
como a menor unidade de um coletivo, a
tal ponto que se torna irracional utilizar o pronome pessoal “eu”; faz sentido apenas
o uso do pronome “nós”, o que dá nome ao livro.
Crítica poderosa e um personagem desumanizado
Nessas questões que descrevi até então,
Nós se torna uma obra filosófica poderosa, apresentando uma crítica política contundente e que que dialoga
diretamente com os rumos tomados pela revolução na recém-criada URSS, onde o
autor vivia e onde se sentia perseguido e censurado por determinados figurões
da burocracia estatal. Contudo, as consequências para a narrativa são a
morte do entretenimento e dificuldades
para compreender o universo ficcional e os eventos que se desenrolam.
Isso porque, se você tem um personagem despersonalizado e imerso em uma ideologia
tão radicalmente “inatural” para o leitor, o resultado é um ponto de vista
narrativo extremamente desafiador de
assimilar e interpretar.
Enfim, Nós tem uma
escrita muito diferente dos livros de ficção que costumo ler. Sua narração em
primeira pessoa é bastante fragmentada, permeada por divagações
filosófico-matemáticas e frases cheias de omissões e suspensões — nunca havia visto tantas reticências em
um único texto.
O narrador, o D-503,
não busca ser objetivo na descrição dos
fatos. Toda e qualquer situação que foge ao previsível e conhecido por
ele recebe contornos tão nublados quanto essas mesmas situações são para ele: novas e até incompreensíveis.
O narrador experimenta um turbilhão de sensações e sentimentos inéditos que lhe
parecem tão estranhos e absurdos, que torna
sua tentativa de pôr em palavras os fatos que vivencia um
desafio hercúleo — tanto para ele, “que escreve”, quanto
para nós, leitores, que temos apenas sua narração como janela para
antever o universo que ele descreve.
Por isso, tive dificuldade de
engatar a leitura, de enxergar o que se escondia sob as muitas camadas de
retórica, de compreender o que era a máquina
do Benfeitor, a torre coletora ou
mesmo que o governo do Estado Único se circunscrevia em um espaço territorial
bastante limitado e hermeticamente fechado por muros de vidro fosco. Tudo em
seu interior era igualmente feito de vidro, resistente como aço, porém transparente,
garantindo a máxima vigilância sobre as ações e comportamentos de cada número.
Câmeras não eram necessárias, pois as paredes de vidro permitiam que todos
fossem vigiados e vigias ao mesmo tempo.
Por ser tão despersonalizado, D-503 só começa a se tornar uma pessoa à medida que interage com a rebelde e enigmática I-330, esta sim uma personagem dotada de ironia, humor negro, sensualidade e – como ela mesma diz – de imaginação. I-330 é rebelde por ser um sujeito dotado de personalidade e emoções, contradições e imprevisibilidade. Ela é um número irracional e imaginário, um √-1, infinito e não sequencial, um ser cíclico, nunca linear.
É ao se apaixonar por I-330 e se enredar em seus planos conspiratórios e subversivos que D-503 começa a se pintar de cores, revelando-se naturalmente egoísta, vacilante, possessivo, infantil, inconsequente e pouco confiável. D torna-se gente. E é ao se tornar gente que a narração passa a ser mais fluida, segura, coesa, clara e compreensível. O curioso é que o editor opta por mudar a fonte tipográfica nos capítulos onde essa mudança de fluidez estilística acontece, e retorna à fonte original quando ela é [ALERTA DE SPOILER] prematuramente abortada.
Por isso, meu amigo leitor, Nós só foi se tornar interessante para mim quando já estava acabando, o que explica, em parte, os 93 dias de leitura – o trabalho também me priva do tempo necessário para ler.
Conclusão
Enfim, uma
obra importante, que inaugurou o gênero distópico, apresentando um cenário futurístico originalíssimo – depois que
você começa a entendê-lo –, trazendo uma crítica política poderosa
e marcante, que influenciou gerações de escritores, sendo a principal fonte de
inspiração para Aldous Huxley ao escrever seu deslumbrante e icônico AdmirávelMundo Novo – Huxley, de fato,
incorpora diversas ideias centrais de Nós, adaptando-as para sua própria
visão.
Foi, no
entanto, para mim, uma trágica decepção. A narrativa desafiadora e a fragmentação
estilística tornam a leitura cansativa, exigindo paciência e esforço para
apreciar a genialidade que se esconde sob suas camadas densas de simbolismo e
crítica. Ainda
assim, recomendo veementemente a leitura, especialmente em uma época de crise
da originalidade como a que vivemos no início deste novo milênio. E me
desculpem a resenha superficial – estou enferrujado.
A edição lida é da Editora
Aleph, com tradução de Gabriela Soares, do ano de 2021 e possui 344 páginas. Título
original: Мы.
Sobre
o autor
Ievguêni Zamiátin (1884–1937) foi um escritor,
engenheiro naval e dramaturgo russo, amplamente reconhecido como o autor do
romance distópico "Nós" (Мы), que é considerado uma das primeiras obras
do gênero distópico moderno e uma influência direta em livros como 1984
de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.
Zamiátin morreu em 1937 em Paris, aos 53 anos, devido a
problemas cardíacos. Seu exílio e morte em terras estrangeiras simbolizam a
repressão enfrentada por muitos artistas e intelectuais que ousaram desafiar
regimes autoritários.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro
disponível no Google Books.
Postagens relacionadas
Post.