Por Eric Silva
Notas:
{1} a presente resenha é uma ampliação que reestrutura,
adapta e aprofunda as considerações presentes em outro texto anterior sobre o
mesmo livro, além de acrescentar observações e elementos ausentes no outro.
{2} todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
{3} Diga-nos o que achou da resenha nos comentários.
“Você
sabe quando leu um bom livro quando vira a última página e sente-se quase como
se tivesse perdido um amigo”. (Paul Sweeney)
“Os livros são capazes de mudar vidas, até mesmo guiá-las. Não são apenas palavras impressas no papel, mas o clamor da alma de quem as escreve, que se mistura a alma de quem as lê, em um frenesi de sensações e sentimentos tão violento quanto o caudal de um rio furioso. Foi esse frenesi, tão parecido com a sensação de estar apaixonado, que revolucionou a vida de Daniel e fez dele o homem que se tornou. Que o guiou pelas ramblas e ruelas da antiga Barcelona franquista, em busca dos rastro de alguém que parecia ter sido engolido pelas sombras e pelo fogo”. Hoje retorno a este livro fabuloso para o especial Zafón e preservo aqui a mesma introdução da primeira resenha que fiz desse livro, porque ainda sinto viva a mesma chama de paixão que me consumiu quando li A Sombra do Vento pela primeira vez. Que essa paixão perdure por um tempo incontável.
Sinopse
Daniel ainda tinha 11 anos
quando em uma noite se dá conta de que não se lembra mais do rosto da falecida
mãe. Para consolar o filho, o senhor Sempere
conduz o menino pelas ruas de Barcelona durante a madrugada para conhecer um
lugar misterioso e secreto: o Cemitério dos Livros Esquecidos. Na imensidão de
livros daquele lugar, Daniel descobre A
sombra do vento, livro de um misterioso e desconhecido escritor chamado Julián
Carax. Obcecado pelo livro, Daniel busca saber mais sobre seu autor, mas a vida
de Carax se demonstra um mistério cheio de lacunas. Se isso não bastasse,
alguém estava decidido a destruir todos os seus livros e talvez aquele volume da
Sombra do Vento fosse o último sobrevivente. Sempre em busca de desvendar o
passado de Julian, Daniel dedica anos a sua investigação, percorrendo todos os
recantos da antiga cidade cheia de histórias, segredos e perigos, e o que antes
era só uma curiosidade se torna o principal propósito de sua vida.
Resenha
Obra do escritor espanhol
Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento
é decididamente um dos meus livros prediletos. Li esse romance pela primeira
vez no primeiro semestre de 2016, em sua edição portuguesa, mas gostei tanto
que decidi me aventurar mais pela literatura espanhola e inspirado na obra de
Zafón criei a campanha do #AnoDaEspanha,
primeira edição daquilo que depois chamei de Campanha Anula de Literatura do
Conhecer Tudo.
Não há nada nesse livro
que eu não gostei ou ache cansativo ou clichê. Gosto da sua narrativa, da
beleza das palavras escolhidas pelo autor e da atmosfera de romance
folhetinesco de aventura que ao mesmo tempo conserva uma atmosfera de
saudosismo e uma poética que é toda própria de sua narrativa. Dessa vez li a
edição brasileira e achei-a igualmente bela, e no futuro, quem sabe, leia
também a edição original em espanhol.
Volto hoje a esse livro
fantástico para reafirmar e aprofundar minhas considerações sobre ele,
destacando minhas impressões sobre uma história que me parece quase perfeita
porque não me deixou brechas para críticas negativas.
Sobre perdas e solidão: o contexto histórico
e o enredo
Escrito em primeira
pessoa, A Sombra do Vento conta a
história das aventuras de seu narrador, Daniel Sempere, em busca de desvendar o
passado e o destino dado a Julián Carax, um desconhecido escritor que além de
ter desaparecido do mapa como muitos outros no período final da Guerra Civil Espanhola, ainda, estava tendo
todos os seus livros sistematicamente destruídos por um misterioso incendiário.
Toda a trama começa na
noite quando Daniel, ainda criança, acorda desesperado por não conseguir mais
lembrar do rosto da mãe, falecida alguns anos antes. Para consolá-lo, o pai do
menino leva-o no meio da noite a um lugar escondido na cidade de Barcelona, cuja
localização deveria continuar em segredo: o Cemitério dos Livros Esquecidos. Nesse
lugar, que nada mais era do que uma colossal biblioteca secreta, eram mantidos
centenas de livros a salvos do furor da ditadura da época.
Como todos que conheciam
pela primeira vez o Cemitério, Daniel teve o direito de levar para si um
exemplar de suas muitas estantes e conservá-lo consigo para sempre. Caminhando
naquela profusão de livros, o menino encontra aquele que seria o estopim para
uma aventura que mudaria os rumos de sua vida: A Sombra do Vento, o livro de um escritor de nome Julián Carax.
Feliz com seu achado,
Daniel volta para casa com o pai e mergulha no enredo daquele livro misterioso
sem, no entanto, conseguir se desvencilhar de sua narrativa gótica ao longo de
toda a madrugada. Tão fantástico era aquele livro que Daniel desejou conhecer
mais da obra de seu escritor e ler todos os seus livros. Contudo, para sua
decepção bem pouco se sabia sobre Carax, de sua história, destino e mesmo de
seus livros. Nem mesmo o pai do menino, “livreiro de raça e bom conhecedor dos
catálogos editoriais”, nunca havia ouvido falar do misterioso escritor. Pior do
que isso, ao que parecia todos os livros do autor estavam sendo queimados por
um louco que os comprava a qualquer preço, unicamente para depois deitar-lhes
fogo.
Diante daquele impasse, Daniel
por muitos anos se lançaria na aventura de desvendar esse passado de Carax
sempre envolto em mistérios, perigos e lacunas. O livro de Zafón irá, então,
nos guiar entorno desta busca que muito contribuiu para o crescimento do
próprio Daniel e que incansável persistia em reunir todas as informações
possíveis sobre a vida de Carax.
Passada entre os anos de
1945 e 1956, a história de A Sombra do
Vento tem por cenário a Barcelona dos tempos do governo fascista do general
Francisco Franco.
Depois da sangrenta guerra
civil entre republicanos e nacionalistas que findaria com ascensão do general
Franco ao poder, em 1939, a Espanha mergulharia em um período fortemente
marcado pela repressão e controle social da ditadura franquista e que perduraria
até a morte do ditador em 1975. Durante o conflito, Barcelona foi uma das
cidades que por mais tempo resistiram às tropas de Franco e por isso as marcas
do conflito ali parecem ser bem mais profundas.
A história contada pelo
livro de Zafón se situa exatamente no auge de um período marcado pela repressão
e eliminação dos opositores políticos por parte da administração do regime. Uma
época na qual também se buscava propagar “um discurso romântico nacionalista,
catolicista, anticomunismo e tradicionalista”[1] que
se centrava e enaltecia a figura do líder. Cenário que se materializa sobretudo
na figura louca e tirânica de um dos principais personagens da trama: o
Inspetor de polícia Francisco Javier Fumero que encontra no sistema vigente o
espaço necessário para dar vazão a sua brutalidade e insanidade.
Por se situar neste
período, A Sombra do Vento não é uma
obra que se limita a falar de livros ou da paixão por eles, é uma obra que fala
sobre uma época sombria da história da Espanha. A Barcelona descrita na
história é uma cidade de pessoas ainda marcadas pelos anos de Guerra Civil. As
marcas do conflito estão em todos os lugares, como nos restos de estilhaço na Plaza de San Felipe Neri, mas principalmente nas pessoas. A Sombra do Vento, parafraseando
Saramago, é um ensaio sobre a amargura e a solidão. Quase todos os personagens
são de alguma forma atingidos pela amargura, alguns deles pela loucura, mas
principalmente pelo sentimento da perda. São pessoas que sofreram os terrores
do conflito, que perderam pessoas queridas no Castillo de Montjuic[2],
que amargam vidas solitárias ou que vivem os dissabores da perseguição
política, ideológica ou moralista vigente no período ditatorial.
[...] "Falei-lhe de como, até aquele
instante, não havia compreendido que aquela era uma história de pessoas
solitárias, de ausências e de perda, e que, por esse motivo, havia me refugiado
nela até confundi-la com a minha própria vida, como quem escapa pelas páginas
de um romance porque aqueles que precisam amar são apenas sombras que moram na
alma de um estranho." [...]
Por outro lado, o livro não
se limita a falar de desesperança e ao mesmo tempo abre espaço para o sonho, a
amizade e o amor juvenil. Daniel é o principal exemplo disso. Um rapaz jovem e
apaixonado, que como qualquer adolescente tem seus momentos de dúvida e de cometer
seus erros e injustiças, mas que carrega consigo sua própria luz. Ainda que
carregue como todos os outros o peso de uma perda, esse sentimento se contrapõe
a seu coração sincero, curioso e aventureiro que anima e move toda a história e
as pessoas que atravessam seu caminho ou estão a sua volta.
Uma escrita fabulosa que mistura vários
estilos
![]() |
O autor. Imagem: Wikimedia Commons. |
Logo no começo da
narrativa, Zafón demonstra o poder de um escrita que também é marcada pela originalidade,
e, brincando com as palavras, faz construções de grande beleza estética para
descrever com detalhes concretos os cenários e as personagens que os animam. É
com uma escrita elegante sem ser cansativa nem por demasia extravagante que o autor,
logo nas primeiras páginas, descreve a imagem melancólica de um amanhecer
enevoado – e a capa do livro não poderia ser mais adequada – na qual um pai e seu
filho atravessam as ruas desertas de uma Barcelona que ainda despertava, para irem
de encontro com a maior aventura de suas vidas:
[...] Ainda me lembro daquele amanhecer em que o meu pai me
levou pela primeira vez para visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos.
Despontavam os primeiros dias de Verão de 1945 e andávamos pelas ruas de uma
Barcelona aprisionada sob um céu cinzento, com um sol de vapor que se derramava
na Rambla de Santa Mónica como uma grinalda de cobre líquido.
– Daniel, o que você vai ver hoje não
pode contar a ninguém - advertiu meu pai. – Nem ao seu amigo Tomás. A ninguém.
– Nem a mamãe? – perguntei, em voz
baixa.
Meu pai deu um suspiro, amparado
naquele sorriso triste que o perseguia como uma sombra pela vida.
– Claro que sim – respondeu,
cabisbaixo. – Com ela não temos segredos. A ela você pode contar tudo. [...]
Esse estilo e construções
narrativas é marcante na narrativa sempre que o autor tenta reproduzir a
atmosfera de uma Barcelona misteriosa e gótica e que se encontrava mergulhada
no torpor de uma época de censura e repressão.
No que tange à tradução,
acho que tanto aquela realizada para o português lusitano por J. Teixeira de Aguilar quanto a tradução
brasileira feita por Marcia Ribas[3] são
esplendorosas, no entanto, em alguns momentos de maior lirismo da escrita de
Zafón acho que a tradução portuguesa ficou mais sofisticada, contudo a tradução
brasileira é mais limpa e fluida, sem deixar de ser bela. Dessa forma, o lirismo
de Zafón é preservado, e, assim como suas construções, cria cenários na qual
mergulhamos sem sentir e nos faz vislumbrar toda a cena como se assistíssemos a
um filme:
[...] Por quase meia hora perambulei pelos esconderijos daquele
labirinto com cheiro de papel velho, pó e magia. Deixei que minha mão roçasse
as avenidas de volumes expostos, numa tentativa de fazer a minha escolha. Percebi,
entre os títulos apagados pelo tempo, palavras em línguas conhecidas e dezenas
de outras que não podia reconhecer. Percorri corredores e galerias em espiral,
repletos de milhares de volumes que pareciam saber mais a meu respeito do que
eu sobre eles. Aos poucos, assaltou-me a ideia de que atrás da capa de cada um
daqueles livros se abria um infinito universo por explorar e que, fora daquelas
paredes, o mundo deixava que a vida passasse em tardes de futebol e em novelas
de rádio, satisfeito em ver apenas até onde vai o seu umbigo e pouco mais. Talvez
tenha sido esse pensamento, talvez o acaso ou seu parente elegante, o destino,
mas naquele mesmo instante percebi que tinha escolhido o livro que ia adotar. Ou
talvez devesse dizer, o livro que me adotaria. Ele se destacava timidamente no
canto de um estante, encadernado numa capa cor de vinho e sussurrando o seu
título em letras douradas que brilhavam na luz vinda da cúpula no alto. Aproximei-me
dele e acariciei as palavras com as pontas dos dedos, lendo em silêncio:
A Sombra do Vento
JULIÁN CARAX
[...]
Essa é uma passagem que, além
de revelar importantes aspectos do lirismo da escrita de Zafón, mostra também como
este registra os fatos e os lugares de forma criativa e tece as história de
seus personagens ligando-os entre si de forma majestosa e inteligente. Mesmo quando
li a versão portuguesa com todos os limites das diferenças regionais do idioma ainda
consegui me apaixonar pela forma como ele compõe sua história, pela sua
capacidade criativa.
Dos personagens principais, os meus
favoritos
![]() |
Ilustração a lápis para o livro de Carlos Ruiz Zafón: A sombra do Vento. Novembro de 2008. Arte de Elisa de la Torre |
Daniel é o principal
personagem da trama junto com o misterioso Julian Carax. Filho do comerciante
de livros Sempere, Daniel se mostra, a princípio, um garoto ingênuo, mas que ao
longo da história vai ganhando maturidade, porém sem perder o frescor que é
comum a juventude, nem a capacidade de se apaixonar por qualquer mulher que lhe
encantasse os olhos. Perdera cedo a mãe cujo rosto já não se lembrava e tem uma
relação de altos e baixos com o pai que possui ao longo da trama uma presença relativamente
silenciosa apesar de sua importância enorme para o enredo.
Pouco a pouco, o menino
entristecido que nos é apresentado no primeiro capítulo vai dando lugar a um
outro, mais aventureiro, mais ousado e aberto ao desconhecido. Na minha opinião
– dando uma de psicólogo até – eu diria que, na verdade, a busca pelo passado
de Carax foi para o garoto uma forma de preencher um vazio deixado pela morte
da mãe. Vazio que o pai nunca foi capaz de suprimir apesar de seu zelo e amor. Desvendar
Carax seria a chave para que ele recordasse o rosto perdido de sua mãe, como
sugere o enredo.
Muito intenso, Daniel é um
personagem cativante, a pesar de em alguns momentos se mostrar inseguro,
vacilante, mas são características que o torna mais humano. Ainda me impressionou algumas vezes como com
o seu jeito manso, sua malícia e astúcia convencia as pessoas a dizerem o que ele
queria e precisava saber. É através de seus passos e andanças que vamos
conhecendo a cidade e seus curiosos e melancólicos habitantes.
Por sua vez, Fermín era um
alegre e beberrão morador de rua que fora resgatado da indigência por Daniel e
seu pai que lhe deram um trabalho na livraria. Um literato desavergonhado e
mulherengo que viva fazendo referências aos clássicos junto com seus
comentários bem humorados sobre a virilidade masculina e os jogos de sedução
entre homens e mulheres. Mas Fermín é também um personagem que considero
curioso. Mesmo tendo sofrido horrores durante e depois da Guerra Civil, ele
conservava a alegria, a espiritualidade e a juventude que somente os
personagens mais jovens da trama conseguiam esboçar e até de forma mais intensa
do que esses.
Fermín juntamente com
Daniel são a alma da história e por isso, em meados da narrativa, o ex-mendigo se
torna o principal aliado de Daniel na investigação sobre o mistério de Carax.
Outros dois personagens
dignos de nota são Julian Carax e o inspetor Francisco Javier Fumero.
Carax se revela a maior
surpresa desse livro, pois ao contrário do que se poderia esperar de um
escritor, sua vida foi bastante conturbada e cheia de percalços. Um personagem
enigmático, sedutor, cuja existência foi capaz de interferir na vida de muitas
outras pessoas. Uma história digna de seus próprios livros.
Ao longo da trama vamos
aprendendo a amá-lo e odiá-lo, somos alimentados pelo mistério de sua vida e
agraciados com um final surpreendente. Carax figura para Daniel como um
personagem misterioso cujo mistério da vida o seduzia e tragava e no fim,
dividimos com o rapaz o seu fascínio por esse homem cheio de mistérios e pelas
várias formas que esse toma ao longo da vida.
Fumero, por seu turno, era
um homem asqueroso e louco com uma lista de assassinatos e torturas tão grande
que fazia dele o homem mais perigoso de Barcelona e o terror causado pelos anos
de ditadura é marcante na história através de sua figura sinistra. Ao longo do
livro o personagem vai ganhando espaço e importância como o principal
antagonista de Daniel e principalmente de seu companheiro de aventuras, Fermín,
a quem Fumero já perseguia desde a época da guerra, tomando-o como um de seus
maiores desafetos.
Gradativamente a trama vai
conectando cada personagem e expõe uma rede de relações conturbadas e perigosas
que conecta cada história entorno de Carax, Daniel e Fermín, entrelaçando as
vidas de todos eles como se fossem os fios de uma grande e complexa tapeçaria. Contudo,
nenhuma dessas conexões soa ao leitor como absurda ou forçada pelo autor para
dar um destino à história. Pelo contrário, demonstram a sagacidade de um escritor
acostumado ao mistério e que por isso sabe soltar cada revelação, cada segredo
no seu devido momento e assim reconstituir aos poucos cada passo do passado e
do presente de seus personagens.
Um livro onde cabe uma cidade inteira
Acho que dizer que
Barcelona é também uma personagem de A
Sombra do Vento não seria de todo um absurdo, porque nesse livro vivemos a
cidade catalã junto com Daniel, aprendemos o nome de suas ruas, de suas ramblas e plazas, conhecemos seus cantos e recantos, sua gente. Ela tem
também uma importância enorme para seus moradores que a vivem com intensidade e
conhecem-na intimamente.
Afirma Pedro Lacerda[4], em
artigo sobre o filme Las Insoladas, que a cidade pode possuir “um papel importante na condução dos seus
indivíduos e também é reflexo deles, estabelecendo uma troca que pode gerar,
por vezes uma apatia, em outros momentos a descoberta de novos sentidos
escondidos em parques, ruelas, paredes e topos de prédios”.
A Barcelona de Zafón é
cheio dessas identificações de que fala Lacerda. Ela guarda seus segredos
encantados como O Cemitério dos Livros Esquecidos, reduto de alguns poucos
escolhidos. Ela guarda lugares tenebroso e esquecidos como “O Anjo da Bruma”,
mas também é fonte de diversos laços subjetivos que seus moradores nutrem com
seus espaços. Isso torna Barcelona não só o cenário mas um personagem que
influi sobre a vida de seus personagens, em seu humor e estado de espírito. Além
disso sua história tem peso sobre os personagens tanto quanto eles tem peso
sobre a construção de sua história futura.
Daniel como narrador cita
e descreve lugares de Barcelona de uma forma espontânea e cheia de detalhes,
demonstrando que conhece-a em toda a sua intimidade, além de deixar nítido na
sua fala a relação de amor que nutre por sua cidade:
[...] O dia estava
esplêndido, com um céu azul de brigadeiro e uma brisa limpa e fresca que
cheirava a outono e a mar. A minha Barcelona favorita foi sempre a de outubro,
quando a nossa alma sai para passear e nos sentimos mais sábios só de beber
água na fonte de Canaletas que, por milagre, nesses dias se quer tem gosto de
cloro. Eu avançava a passos rápidos, esquivando-me dos engraxates, dos
empregados de escritório que voltavam do cafezinho da manhã, dos vendedores de
bilhetes de loteria e de um balé de lixeiros que pareciam limpar a cidade a
pincel, sem pressa e muito meticuloso. Nessa época, Barcelona começava a se
encher de automóveis, e na altura do sinal da Rua Balmes observei, de pé nas
duas calçadas empregados de escritório com capas de chuva cinzentas e olhar
faminto que comiam com os olhos um Studebaker como se ele fosse uma mulher de
roupa de banho. Subi pela Balmes até à Gran Via, aflito os sinais, bondes,
automóveis e até motocicletas com sidecar. [...]
Mas o garoto não apenas
vive cada pedaço de Barcelona como em certos momentos a cidade parece responder
aos seus sentimentos através da mudança das estações e do tempo.
[...] Ela vai ligar
depois, falei para mim mesmo. Alguém devia tê-la surpreendido. Não devia ser
fácil burlar o toque de recolher do senhor Aguilar. Não havia razão para
sustos. Com essa e outras desculpas arrastei-me até à mesa para fingir que
acompanhava o meu pai e Fermín no seu café da manhã. Talvez fosse a chuva, mas
a comida havia perdido todo o seu sabor.
Choveu a manhã
inteira e, logo depois de abrir a livraria, tivemos uma falta de luz geral no
bairro que durou até o meio-dia. [...]
Quase sempre que os
personagens se encontravam apreensivos ou tristes, como Daniel nessa passagem,
a cidade parece em sintonia com o sentimento vivido por eles. Por isso, falar
em Barcelona como um outro personagem da trama não me soa como exagero.
Ultimas considerações sobre um livro
marcante
Como disse em outro
momento, A Sombra do Vento é um livro
lindo e sincero e o principal responsável por despertar em mim um fascínio pela
Espanha, particularmente por Barcelona, que até então não existia. Em grande
parte esse fascínio se deve a narrativa tão cheia de imagens de uma Barcelona
antiga e pelo fato de Daniel nos pegar pela mão e ir apresentando cada recanto do
mais belo ao mais tenebrosos de uma cidade fantástica, mas que se encontrava
sempre encoberta por uma neblina criada pelo momento histórico.
Assim como o livro de
Carax se caracterizava por ser uma narrativa fantástica que envolvia o
sobrenatural e o misterioso, a obra de Zafón mergulha nesse mesmo universo de
ausências, mistérios, perdas e solidão. O autor ainda demonstra uma sensível
capacidade de compor imagens singelas e tenebrosas em que reúne beleza e
sensibilidade – “uma rosa rodeada de inverno”.
Ler A Sombra do Vento foi ainda mais interessante porque fala de um
apaixonado pelos livros, assim como eu. Além disso, a narrativa misturou tudo o
que gosto: lugares incríveis, mistério, uma boa escrita e aventura. É ao mesmo
tempo um livro que traça a história “recente” de uma cidade deslumbrante e com
séculos de existência provocando o seu leitor para ama-la tanto quanto os seus
personagens, e provavelmente o seu autor.
Só faz um ano que li esse
livro e essa releitura só veio reafirmar o que eu já sabia: A Sombra do Vento é um livro fantástico
que nunca me cansa, uma narrativa que eu amo. Só renovou um desejo que
expressei na primeira vez que resenhei esse livro, torno a repetir aqui: ainda
quero um dia encontrar o caminho para o Cemitério dos Livros Esquecidos, e
complemento que este caminho está em Barcelona cidade que definitivamente um
dia percorrerei assim como fizeram Daniel e Fermín.
Prévia do Google Books
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Resenhas
[1] https://www.todamateria.com.br/franquismo-na-espanha/
[2] Antiga
fortaleza militar situada em uma montanha com o mesmo nome. O local foi ponto
estratégico de defesa e palco de muitas prisões e torturas ao longo de diversos
conflitos ocorridos em Barcelona.
[3] Os
trechos publicados aqui foram extraídos da edição brasileira: ZAFÓN, Carlos R. A Sombra do Vento. Tradução: Marcia
Ribas. 1 ed. Rio de Janeiro: Suma de letras, 2007. 400 p.
[4] http://obviousmag.org/megafone_vermelho/2015/a-cidade-como-personagem.html