quarta-feira, 18 de julho de 2018

A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Sr. Punch – Neil Gaiman e Dave McKean – Resenha

Por Eric Silva


Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.



A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Sr. Punch é uma graphic novel idealizada por Neil Gaiman e Dave McKean que fala sobre a passagem da infância para a idade adulta. Não foi um livro que tenha me tocado pela sua narrativa monocromática e melancólica, mas que chama a atenção por sua proposta estética criativa e original que ainda não tinha visto no gênero HQ. Hoje compartilho com vocês minhas impressões sobre a obra.

Sinopse

Escrito por Neil Gaiman com ilustrações de Dave McKean, A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Sr. Punch é uma graphic novel que narra as lembranças de um menino durante sua estadia na casa dos avôs, na cinzenta Portsmouth, uma cidade litorânea do sul da Inglaterra.

Ao longo de sua narrativa o narrador personagem vai rememorando momentos soltos daqueles dias, da sua infância e das pessoas com quem convivera, sobretudo seu avô, que enlouquecera, seu tio-avô deficiente físico, Morton, e um velho mestre de fantoches que interpretava a tradicional e violenta peça de Punch & Judy que dá nome a obra. Desta forma, também aos poucos vai desenterrando segredos de família e demarcando de forma subjetiva o momento do fim da sua infância.

Resenha

Antes de escrever este texto, logo que terminei a leitura, busquei na internet um texto que falasse sobre essa graphic novel. Queria entender essa que foi para mim uma leitura cheia de incógnitas e marcada pelo estranhamento e que me fez não gostar da obra – segunda vez que Gaiman não alcança meu coração.

Em minha busca me deparei com o texto inspiradíssimo de @Lokow, do LivroCast (link), que, em seu escrito, conseguiu de forma bem direta esclarecer quase tudo que não compreendi desta que foi a obra de Gaiman que mais me inquietou. Concordo em quase tudo com o que @Lokow escreveu, ainda que não divida com ele o mesmo entusiasmo, e por isso, tentarei não ser muito repetitivo, ou melhor tentarei segui caminho distinto e complementar.

Antes de tudo, Quem é Mr. Punch?

Teatro de fantoches.
Punch & Judy é uma tradicional peça de teatro de rua (itinerante) para fantoches e que vem sendo encenada por séculos com variações e modificações cada vez maiores e profundas. O livro recebe nome de A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Mr. Punch porque muitos dos personagens se veem diretamente ligados à peça, mas, sobretudo, ligados ao seu personagem principal, seja por dar-lhe vida como mestres marionetistas ou por ser por ele representados ou amedrontados.

Em seu livro, Teatro de Formas Animadas, a pesquisadora Ana Maria Amaral afirma que as origens desta peça proveem das tradições ítalo-francesas e teria chegado à Inglaterra ainda em 1662, pelas mãos do mestre marionetista Pietro Gimondi e com o nome de Polichinelle. Ali teria se misturado às tradições inglesas e, ao longo dos séculos, foi tomando o formato que é conhecido hoje.

Na peça, Punch é o principal personagem e o único que não sai de cena. O fantoche é quase sempre representado como um bobo da corte, perverso, de voz esganiçada e de humor negro que vai contracenando com diversos personagens que entram e saem de cena quase sempre de forma trágica, ou seja, assassinados pelo protagonista. Como os fantoches são manuseados por apenas uma pessoa, todas as cenas são sempre realizadas com somente dois personagens por vez, com Punch sempre na mão direita.

Em uma das suas mais conhecidas variações, adotada por Gaiman, as primeiras vítimas de Punch são o filho recém-nascido, jogado pelo pai para fora do palco, e a esposa Judy, morta a pauladas durante uma briga. Ao longo da peça, outros personagens tentam enfrentá-lo sem, no entanto, terem sucesso.

Conta Ana Maria que, de início, Punch aparecia como um “bufão escandaloso, satirizando os costumes, intrometendo-se nas cenas mais sérias” de outras peças mais clássicas e de temas mais circunspectos como as histórias bíblicas, lendas e histórias populares sobre a vida e amores dos reis. Contudo, com a decadência do teatro de fantoche de caráter literário e elitista, os mestres da época buscaram no povo mais simples das ruas, praças e feiras livres um novo público, e acabaram por alcançar grande popularidade com temas e histórias mais simples. E como relata a autora foi “no confronto diário com o povo [que] Punch adquiriu outras características”.

“A forma e o conteúdo mudaram. Em lugar dos longos seriados religiosos e dos dramas altamente literários, os bonequeiros ambulantes passaram a apresentar historinhas curtas, sintetizadas, com a preocupação de chamar a atenção dos passantes indiferentes”.

Mais afrente, a autora ainda afirma que, já na Inglaterra, Punch ganha uma mulher, um filho e um cachorro, passando a ter um formato mais próximo do atual Punch & Judy.

Segundo Ana Maria, entre outras coisas as peças representavam “a problemática do relacionamento entre homem e mulher”, onde “Punch sozinho é uma luta contra a ordem estabelecida, onde sua violência irracional nem sempre colabora para melhorá-la”.

É esta versão mais moderna que Gaiman se utiliza para compor o Punch do seu rol de personagens, contudo sem ressaltar o lado cômico da peça ou de seu protagonista. Digo personagem, porque, sobretudo Punch, aos poucos, vai se incorporando às lembranças do narrador e torna-se quase uma pessoa atuante e influente na vida do menino, ou como afirma @Lokow, uma “representação para o avô do menino”, “da própria loucura de seu avô”.

É sobretudo a presença de Punch, com seus atos violentos, assassínios e sua carranca grotesca, que dá a obra, sobretudo em seu começo, um tom mais sombrio que aos poucos vai sendo substituído pelo ritmo monótono das lembranças do narrador.

No fim desta resenha você pode conferir uma apresentação da peça em inglês.

O Enredo

O enredo de A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Sr. Punch é, para mim, dos mais monótonos, sacais, ainda que a subjetividade das lembranças e a complexidade das relações humanas ali engendradas deem assunto para uma tese de psicologia sobre memória, infância e história de vida.

Ao longo da narrativa somos apresentados a diferentes momentos monocromáticos da vida do menino na infância e em um passado próximo já na idade adulta. Acontecimentos que vão se costurando para dar sentido a outros mais remotos. Entretanto, a chave central da narrativa está no episódio de sua estadia na casa dos avós quando tinha oito anos, período anterior ao processo de enlouquecimento do avô. Inclusive o tema morte, é bastante presente, seja nas reflexões do narrador, seja na peça que dá nome a obra.

Por conta de uma doença que podia ser transmitida para mãe grávida, o menino é mandado para a casa dos avôs em Portsmouth. Lá passa seus dias invariáveis que oscilam entre a leitura de algum livro, o parque de diversões do avô e os diálogos nem sempre conclusos com algumas pessoas do ciclo de conhecidos da família ou membros dela mesma, como o tio-avô, Morton, que é portador de deficiência física.

Nesta mesma época, ele entra em contato com o teatro de fantoches da peça de Punch, que inicialmente lhe causa medo e uma certa aversão ao personagem principal, o que meio que persiste durante a fase adulta, ainda que admire o trabalho dos mestres do teatro de fantoche. É logo nas primeiras páginas que conhecemos o primeiro ato da peça no qual ocorre o macabro assassinato do filho de Punch, cometido por ele mesmo.

Coincidentemente, aquele período também fora o mesmo em que o parque do avô fecha as portas. Em decorrência ou como fator desencadeador disso, algumas situações e pessoas entram em cena para desenterrar o passado do avô, ao mesmo tempo, há desencadeamento de alguns acontecimentos marcantes e envolver o menino em segredos de família.

Ao longo de todo esse processo de recuos e retornos no passado recente e distante, vamos “assistindo” diferentes atos da peça, que tem na história seus aspectos violentos bem mais destacados do que os de comicidade, por isso me pergunto onde ficou a “comédia” do título. Assim como o menino, vamos conhecendo passagens da peça aos pedaços, em momentos esparsados da sua história e sempre pela perspectiva dele (e talvez por isso Punch & Judy ganhe um tom bem mais sombrio do que a história original tem na realidade).

O narrador, o personagem

Narrador e personagem
Dos personagens da narrativa o de maiores destaque é o próprio menino, uma vez que todas as lembranças são postas segundo sua própria percepção, reconstruídas, remontadas ou até distorcidas pela sua memória ao mesmo tempo que aumentadas pela visão que tinha do mundo ainda na infância. Por todas estas coisas descrevê-lo é difícil, porque a imagem do menino desta narrativa não é confiável, é a construção e reconstrução da percepção que o adulto tem de si mesmo, de como se lembra no passado, de como se imagina ter sido ante os fragmentos que restam de algo extinto, a reminiscência, a memória.

Contudo a imagem que é criada é a de uma criança apática, temerosa, monocromática que é levada ao sabor do desejo dos adultos pouco atenciosos e ensimesmados.

Não lembro o que respondi. Mas, não, não estava empolgado. Nunca ficava empolgado. Dormi profundamente àquela noite, e não tive sonhos de que me lembre”.

Por sua vez, o adulto é sofrido, amargurado por não poder alcançar o passado, fazer as perguntas que não fizera, preencher as lacunas de uma história que testemunhou em parte, mas que desconhece no todo e isso faz com que passado e morte sejam temas recorrentes:

Queria do fundo do coração que, agora, pudesse voltar e falar com eles, fazer perguntas, iluminar os escuros do passado. Mas estas pessoas estão mortas, e não vão falar. Agora que quero vasculhar o passado, não posso".

Da estética

Desenhos, colagem e tons escuros
Mais curiosa do que a narrativa é a estética dessa graphic novel, tão distante de tudo o que eu já tenha visto. Trabalho do desenhista de quadrinhos, ilustrador, cineasta e músico inglês Dave McKean, a ilustração se faz numa confusão de elementos.

Desenho, pintura, fotografia e até recorte de texto se sobrepõem como em uma colagem, volta e meia em um caos de elementos e objetos que se entrelaçam para compor um todo, oscilando entre tons pesados e sombrios, cores frias, neutras, vermelhos sanguíneos, muito bege e sépia. Mas, por vezes é também quadro bastante minimalista, quase desprovido de elementos, mas em iguais tons.

Os sentimentos de nostalgia da recordação, as sombras de um passado em parte incompreendido, o medo, a loucura, a monotonia das pessoas e do lugar, tudo isso é expresso pela cor e pela imagem que mistura fotografia e desenho.

Para compor as imagens Dave utiliza também muitos objetos antigos e até curiosos como um pequeno equipamento provido de uma lupa que ao mesmo tempo que mantinha aberto o livro, aumentava sua letra. Algumas imagens também são disformes e apenas conseguimos perceber silhuetas, contornos embaçados. Um tipo de arte que ainda não tinha visto em obras de HQ.

Por fim, o que tenho a dizer é que este HQ, demasiadamente melancólico, em alguns momentos amedrontador, não conseguiu me tocar com sua narrativa. Contudo, ele me impressionou bastante pela sua arte estética, pela proposta artística dos quadros e pela profundidade de algumas poucas passagens, como esta:

Cada imagem carrega consigo um sentimento de perda, mesmo que seja uma perda tingida, ainda que suavemente, de um certo alívio. A idade carrega estranhos fardos, e um deles, talvez inevitavelmente, é a morte.

Passagens carregadas de melancolia, mas nem por isso mentirosas.

A edição lida é da Editora Conrad, do ano de 2010 e possui 104 páginas.

Apresentação da peça Punch & Judy realizada em 2012 por conta do 350º aniversário do Sr. Punch

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