Por Eric Silva
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A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Sr. Punch é uma
graphic novel idealizada por Neil
Gaiman e Dave McKean que fala sobre a passagem da infância para a idade adulta.
Não foi um livro que tenha me tocado pela sua narrativa monocromática e
melancólica, mas que chama a atenção por sua proposta estética criativa e
original que ainda não tinha visto no gênero HQ. Hoje compartilho com vocês
minhas impressões sobre a obra.
Sinopse
Escrito por Neil Gaiman com
ilustrações de Dave McKean, A Comédia
Trágica ou a Tragédia Cômica de Sr. Punch é uma graphic novel que narra as lembranças de um menino durante sua
estadia na casa dos avôs, na cinzenta Portsmouth, uma cidade litorânea do sul
da Inglaterra.
Ao longo de sua narrativa o
narrador personagem vai rememorando momentos soltos daqueles dias, da sua
infância e das pessoas com quem convivera, sobretudo seu avô, que enlouquecera,
seu tio-avô deficiente físico, Morton, e um velho mestre de fantoches que
interpretava a tradicional e violenta peça de Punch & Judy que dá nome a
obra. Desta forma, também aos poucos vai desenterrando segredos de família e
demarcando de forma subjetiva o momento do fim da sua infância.
Resenha
Antes de escrever este texto,
logo que terminei a leitura, busquei na internet um texto que falasse sobre
essa graphic novel. Queria entender essa que foi para mim uma leitura cheia de
incógnitas e marcada pelo estranhamento e que me fez não gostar da obra –
segunda vez que Gaiman não alcança meu coração.
Em minha busca me deparei com
o texto inspiradíssimo de @Lokow, do LivroCast (link), que, em seu
escrito, conseguiu de forma bem direta esclarecer quase tudo que não compreendi
desta que foi a obra de Gaiman que mais me inquietou. Concordo em quase tudo
com o que @Lokow escreveu, ainda que não divida com ele o mesmo entusiasmo, e
por isso, tentarei não ser muito repetitivo, ou melhor tentarei segui caminho
distinto e complementar.
Antes de tudo, Quem é Mr. Punch?
Teatro de fantoches. |
Em seu livro, Teatro de Formas Animadas, a pesquisadora
Ana Maria Amaral afirma que as origens desta peça proveem das tradições
ítalo-francesas e teria chegado à Inglaterra ainda em 1662, pelas mãos do
mestre marionetista Pietro Gimondi e com o nome de Polichinelle. Ali teria se
misturado às tradições inglesas e, ao longo dos séculos, foi tomando o formato
que é conhecido hoje.
Na peça, Punch é o principal
personagem e o único que não sai de cena. O fantoche é quase sempre
representado como um bobo da corte, perverso, de voz esganiçada e de humor
negro que vai contracenando com diversos personagens que entram e saem de cena
quase sempre de forma trágica, ou seja, assassinados pelo protagonista. Como os
fantoches são manuseados por apenas uma pessoa, todas as cenas são sempre
realizadas com somente dois personagens por vez, com Punch sempre na mão
direita.
Em uma das suas mais
conhecidas variações, adotada por Gaiman, as primeiras vítimas de Punch são o
filho recém-nascido, jogado pelo pai para fora do palco, e a esposa Judy, morta
a pauladas durante uma briga. Ao longo da peça, outros personagens tentam
enfrentá-lo sem, no entanto, terem sucesso.
Conta Ana Maria que, de
início, Punch aparecia como um “bufão
escandaloso, satirizando os costumes, intrometendo-se nas cenas mais sérias”
de outras peças mais clássicas e de temas mais circunspectos como as histórias
bíblicas, lendas e histórias populares sobre a vida e amores dos reis. Contudo,
com a decadência do teatro de fantoche de caráter literário e elitista, os
mestres da época buscaram no povo mais simples das ruas, praças e feiras livres
um novo público, e acabaram por alcançar grande popularidade com temas e
histórias mais simples. E como relata a autora foi “no confronto diário com o povo [que] Punch adquiriu outras características”.
“A forma e o conteúdo mudaram. Em lugar dos longos
seriados religiosos e dos dramas altamente literários, os bonequeiros
ambulantes passaram a apresentar historinhas curtas, sintetizadas, com a
preocupação de chamar a atenção dos passantes indiferentes”.
Mais afrente, a autora ainda
afirma que, já na Inglaterra, Punch ganha
uma mulher, um filho e um cachorro, passando a ter um formato mais próximo do
atual Punch & Judy.
Segundo Ana Maria, entre
outras coisas as peças representavam “a
problemática do relacionamento entre homem e mulher”, onde “Punch sozinho é uma luta contra a ordem
estabelecida, onde sua violência irracional nem sempre colabora para
melhorá-la”.
É esta versão mais moderna
que Gaiman se utiliza para compor o Punch do seu rol de personagens, contudo
sem ressaltar o lado cômico da peça ou de seu protagonista. Digo personagem,
porque, sobretudo Punch, aos poucos, vai se incorporando às lembranças do
narrador e torna-se quase uma pessoa atuante e influente na vida do menino, ou
como afirma @Lokow, uma “representação
para o avô do menino”, “da própria
loucura de seu avô”.
É sobretudo a presença de
Punch, com seus atos violentos, assassínios e sua carranca grotesca, que dá a
obra, sobretudo em seu começo, um tom mais sombrio que aos poucos vai sendo
substituído pelo ritmo monótono das lembranças do narrador.
No fim desta resenha você
pode conferir uma apresentação da peça em inglês.
O Enredo
O enredo de A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Sr. Punch é, para mim, dos mais monótonos, sacais, ainda que a subjetividade
das lembranças e a complexidade das relações humanas ali engendradas deem
assunto para uma tese de psicologia sobre memória, infância e história de vida.
Ao longo da narrativa somos
apresentados a diferentes momentos monocromáticos da vida do menino na infância
e em um passado próximo já na idade adulta. Acontecimentos que vão se
costurando para dar sentido a outros mais remotos. Entretanto, a chave central
da narrativa está no episódio de sua estadia na casa dos avós quando tinha oito
anos, período anterior ao processo de enlouquecimento do avô. Inclusive o tema
morte, é bastante presente, seja nas reflexões do narrador, seja na peça que dá
nome a obra.
Por conta de uma doença que
podia ser transmitida para mãe grávida, o menino é mandado para a casa dos avôs
em Portsmouth. Lá passa seus dias invariáveis que oscilam entre a leitura de
algum livro, o parque de diversões do avô e os diálogos nem sempre conclusos
com algumas pessoas do ciclo de conhecidos da família ou membros dela mesma,
como o tio-avô, Morton, que é portador de deficiência física.
Nesta mesma época, ele entra
em contato com o teatro de fantoches da peça de Punch, que inicialmente lhe
causa medo e uma certa aversão ao personagem principal, o que meio que persiste
durante a fase adulta, ainda que admire o trabalho dos mestres do teatro de
fantoche. É logo nas primeiras páginas que conhecemos o primeiro ato da peça no
qual ocorre o macabro assassinato do filho de Punch, cometido por ele mesmo.
Coincidentemente, aquele
período também fora o mesmo em que o parque do avô fecha as portas. Em
decorrência ou como fator desencadeador disso, algumas situações e pessoas
entram em cena para desenterrar o passado do avô, ao mesmo tempo, há
desencadeamento de alguns acontecimentos marcantes e envolver o menino em
segredos de família.
Ao longo de todo esse
processo de recuos e retornos no passado recente e distante, vamos “assistindo”
diferentes atos da peça, que tem na história seus aspectos violentos bem mais
destacados do que os de comicidade, por isso me pergunto onde ficou a “comédia”
do título. Assim como o menino, vamos conhecendo passagens da peça aos pedaços,
em momentos esparsados da sua história e sempre pela perspectiva dele (e talvez
por isso Punch & Judy ganhe um tom bem mais sombrio do que a história
original tem na realidade).
O narrador, o personagem
Narrador e personagem |
Contudo a imagem que é criada
é a de uma criança apática, temerosa, monocromática que é levada ao sabor do
desejo dos adultos pouco atenciosos e ensimesmados.
“Não lembro o que respondi. Mas, não, não estava empolgado. Nunca ficava
empolgado. Dormi profundamente àquela noite, e não tive sonhos de que me lembre”.
Por sua vez, o adulto é
sofrido, amargurado por não poder alcançar o passado, fazer as perguntas que
não fizera, preencher as lacunas de uma história que testemunhou em parte, mas
que desconhece no todo e isso faz com que passado e morte sejam temas
recorrentes:
“Queria do fundo do coração que, agora, pudesse voltar e falar com eles,
fazer perguntas, iluminar os escuros do passado. Mas estas pessoas estão
mortas, e não vão falar. Agora que quero vasculhar o passado, não posso".
Da estética
Desenhos, colagem e tons escuros |
Desenho,
pintura, fotografia e até recorte de texto se sobrepõem como em uma colagem,
volta e meia em um caos de elementos e objetos que se entrelaçam para compor um
todo, oscilando entre tons pesados e sombrios, cores frias, neutras, vermelhos
sanguíneos, muito bege e sépia. Mas, por vezes é também quadro bastante
minimalista, quase desprovido de elementos, mas em iguais tons.
Os
sentimentos de nostalgia da recordação, as sombras de um passado em parte
incompreendido, o medo, a loucura, a monotonia das pessoas e do lugar, tudo
isso é expresso pela cor e pela imagem que mistura fotografia e desenho.
Para
compor as imagens Dave utiliza também muitos objetos antigos e até curiosos
como um pequeno equipamento provido de uma lupa que ao mesmo tempo que mantinha
aberto o livro, aumentava sua letra. Algumas imagens também são disformes e
apenas conseguimos perceber silhuetas, contornos embaçados. Um tipo de arte que
ainda não tinha visto em obras de HQ.
Por fim, o que tenho a dizer é que este HQ,
demasiadamente melancólico, em alguns momentos amedrontador, não conseguiu me
tocar com sua narrativa. Contudo, ele me impressionou bastante pela sua arte
estética, pela proposta artística dos quadros e pela profundidade de algumas
poucas passagens, como esta:
Cada imagem carrega consigo um sentimento de
perda, mesmo que seja uma perda tingida, ainda que suavemente, de um certo
alívio. A idade carrega estranhos fardos, e um deles, talvez inevitavelmente, é
a morte.
Passagens
carregadas de melancolia, mas nem por isso mentirosas.
A edição lida é da Editora Conrad,
do ano de 2010 e possui 104 páginas.
Apresentação
da peça Punch & Judy realizada em 2012 por conta do 350º aniversário do Sr.
Punch
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