domingo, 19 de julho de 2020

[Novos Escritores] O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas – João Gabriel Leal – Resenha

Por Eric Silva para a Tag Novos Escritores

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Nos últimos tempos, navegando pelas redes sociais, tenho conhecido muitos autores novos com poucos anos de carreira, estreantes, além de autores independentes que lutam pelo seu espaço no tão competitivo e fechado mercado editorial. Esses encontros casuais acabaram por me lembrar de muito outros que possuo na estante e que nunca cheguei a ler. No final, isso me deu a ideia de uma nova tag: o “Novos Escritores”.

Na terceira resenha dessa nova tag apresento o primeiro livro da trilogia O Amaldiçoado de João Gabriel Leal, O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas conta a história de Lucas, um menino de aparência muito exótica que descobre ser um lobisomem, cuja missão é exterminar o mal dos vampiros que ameaçam a humanidade. Um livro de tema um pouco batido, mas com seu próprio charme, esse é uma obra com um protagonista cativante e com um estilo de narrativa que muito me lembrou as histórias reunidas na Coleção Vaga-lume.

Confira a resenha.

Sobre o autor

João Gabriel Leal tem 26 anos de idade é jornalista, baiano, e atua na imprensa esportiva. Começou a escrever ainda criança, com apenas oito anos de idade.

Na infância, João Gabriel escrevia histórias curtas sobre super-heróis, porém só depois de adulto se sentiu pronto para desafios maiores e escrever mais do que algumas folhas de caderno. Depois de assistir a um documentário sobre lobisomens, teve a inspiração para escrever seu primeiro livro publicado, O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas, primeiro volume de uma trilogia que já tem continuação em O Amaldiçoado e a Tarefa dos Lunáticos, lançado ano passado.

Atualmente, está produzindo o terceiro livro da trilogia.

Sinopse do Enredo

Eulália é uma mulher muito religiosa, mas se casa com Arthur Lupino, um dos maiores mulherengos da pequena cidade sulista de Vale dos Anjos. Aparentemente, aquela relação impensável dá certo até o dia que supostamente Arthur é convocado pelo exército e só retorna nove meses depois com um bebê nos braços. Esse bebê é Lucas, uma criança que supostamente Arthur encontrou abandonado em um ninho de cobras e acabou salvando-lhe a vida. Mesmo desconfiada da história e preocupada com o destino de Lucas, Eulália aceita adotar o menino.

Um tempo depois Arthur é assassinado por um vampiro que tenta atacar sua família. Ninguém descobre a forma como ele morreu e consideram a morte como resultado de um suicídio. Eulália sozinha não consegue tocar a fazenda e torna a se casar, indo morar com Lucas na casa de seu novo marido, Pedro Antônio, e de seu filho, Édipo.

Com o passar do tempo, Lucas vai crescendo e se tronando um menino de aparência estranha, fome descontrolada e temperamento difícil. Está sempre metido em brigas e confusões na escola e tem uma relação delicada e difícil com o padrasto e o enteado da mãe, o que o coloca em situação difícil também com a mãe. O rapaz se irrita muito facilmente e apesar de muito franzino possui uma força descomunal. Mas é quando completa 13 anos de idade que Lucas faz uma grande descoberta sobre si mesmo: um monstro vivia dentro dele.

No dia do seu aniversário, Lucas se desentende e acaba agredindo Édipo, mandando-o para o hospital. Irritado consigo mesmo o garoto passa aquela noite inquieto e sente febre. Como consequência da misteriosa febre, Lucas passa por uma transformação que o torna num lobo faminto, destrói a janela do quarto e desaparece na noite iluminada pela lua cheia. No dia seguinte, o garoto acorda nu no meio da floresta ao lado dos restos de um animal morto que ele, transformado em lobisomem, havia devorado naquela noite.

Desorientado o menino vaga pela floresta sem saber como chegar em casa. É nesse momento que ele encontra um Border Collie[1] que o guia até uma cabana. Morcego, forma como Lucas apelida seu novo companheiro, guia o menino até a casa de seu dono, Anselmo, um antigo amigo de Arthur que revela a Lucas o que havia acontecido com ele e o esclarece acerca de sua missão no mundo, a missão de todos os lobisomens: caçar e exterminar os vampiros. Mais do que isso, o menino lobo é o único capaz de deter o retorno da Rainha das Trevas, a mais poderosa vampira da história. É nesse momento que tudo muda na vida do garoto que passa a enfrentar desafios enormes e perigosas aventuras, ao mesmo tempo que tem que lidar com a chegada de Félix, um garoto novo na escola, mas de áurea misteriosa e sombria. 

Resenha

Vampiros, lobisomens e adolescência: apreciação crítica das temáticas

Histórias de vampiros são muito comuns e não são poucas as obras que possam ser citadas quando se fala do tema. Contudo, histórias de lutas entre lobos e vampiros e o tema da miscigenação entre estas raças parecem ter se tornado mais populares após obras de grande sucesso e divulgação internacional como jogos de RPG, a série Crepúsculo e a franquia de filmes Anjos da Noite.

É possível perceber na trama de João Gabriel influências de algumas obras, sobretudo dos jogos de RPG. Isso não significa, porém, que o O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas não seja original. Pelo contrário, se o autor inicialmente parece se inspirar em outras obras para sua ideia base, por outro lado esbanja originalidade ao apresentar uma proposta de narrativa completamente distinta, nem exageradamente adulta, violenta e pouco crível como o elétrico Anjos da Noite; nem melosa, enjoativa e clichê como o romântico água com açúcar, Crepúsculo; e bem mais literário e intimista do que costumam ser os jogos de RPG.

Romance de terror infantojuvenil, puxado para o subgênero da fantasia sombria, João Gabriel oferta ao seu leitor uma história com muitos personagens realistas e cativantes como Lucas e seu Anselmo. Uma narrativa que não é exageradamente infantil para ser desprovida de ação realista e mortes reais, nem exageradamente adulta para deixar de ser recomendável aos menores como é o caso do subgênero do terror: o vampirismo erótico.

Gravura no frontispício do livro "História dos vampiros e espectros malignos: com um exame do vampiro" Publicado por Masson, Paris 1820 por Collin de Plancy. Wikimedia Commons.


É um livro leve sem deixar de ser crível ou abusar do sentido de impossível. Possui mágica e elementos fantásticos que me fizeram lembrar do universo paralelo de Harry Potter e a originalidade de uma mente criativa que gosta de brincar com seu enredo.

O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas é um livro que me lembrou bastante as histórias e o estilo das narrativas da Coleção Vaga-Lume. Não apenas por seu estilo de escrita se assemelhar com a de alguns escritores da coleção mais lida do país, mas porque ele possui uma temática sólida por trás, e que busca discutir nas entre linhas um aspecto da vida do leitor jovem. Não é um livro apenas para entretenimento, sem, por outro lado, deixar de sê-lo.

Todo livro destaca ou espelha algum aspecto da vida e nos leva a pensar a nossa realidade mesmo quando a trama é de fantasia e tem em si uma verossimilhança unicamente interna. No caso do livro de João Gabriel esse aspecto é a adolescência.

A adolescência é uma fase difícil porque é marcada por uma série muito grande e complicada de mudanças físicas, psicológicas e comportamentais. É um momento de descobertas e de construção da personalidade, das paixões súbitas, da não aceitação do corpo e de uma maior preocupação com a aparência e com a imagem que o outro faz de si.

Como passagem para a vida adulta, essa é uma fase complicadíssima de muitas mudanças e incertezas, no qual o adolescente busca desafiar-se e integrar-se com o mundo social. É um período de formação do indivíduo que será adulto logo mais, um momento de buscar voltar os olhos para o social, tirando-os um pouco do âmbito familiar. Por isso, os jovens gostam de estar integrados a grupos, aos seus pares e estar mais com os amigos e menos com a família.

Lucas está entrando na adolescência e se sente deslocado porque se sente diferente dos demais, mais do que isso, porque é visto como diferente, como estranho e, por isso, sofre rejeição e bullying, e tem dificuldade de fazer amizades. Se aceitar como diferente é seu principal desafio. Mas temos o outro lado também. Mesmo sendo um alguém diferente, Lucas também sente dificuldades de lidar com as diferenças dos outros. O exemplo máximo dessa assertiva é seu único “amigo”, Chico.

Francisco Redondo (um sobrenome bem clichê para alguém gordinho) possui uma personalidade bem diferente da de Lucas, além de ser bastante invasivo, ou “entrão”, como se diz aqui na Bahia. Chico, assim como Lucas, é um garoto solitário e isolado socialmente e vê no menino lobo a oportunidade fazer uma amizade. Por conta disso, Chico tenta de todo modo forçar uma aproximação que Lucas não desejou e nem deseja. Por seu turno, Lucas não sabe lidar com Chico porque, não forma com ele exatamente um igual, um semelhante, e isso cria em Lucas uma certa rejeição ao garoto e uma dificuldade de aceitá-lo como amigo.

Outro ponto desse personagem complexo que vive o principiar da adolescência é a busca por seu lugar no mundo e o papel que desempenhará nele. Descobrir que é um lobisomem não só joga o peso do mundo em suas costas como lhe dá uma missão que ele não pediu, que parece irrealizável, mas, também inescapável. Para alguém que ainda está se conhecendo e se descobrindo, criando referência e desenvolvendo-se a missão de proteger o mundo do retorno de uma poderosa vampira é um fardo pesadíssimo.


Desenho de um lobisomem na floresta à noite.Mont Sudbury. Wikimedia Commons.

Se tudo isso não bastasse ele também está apaixonado e tem fé que conseguirá atrair a atenção da garota que gosta, Melissa, mas, ao mesmo tempo, está inseguro de tudo e não tem certeza de que um dia conseguirá. Na escola as relações com os colegas e professores é um desafio e, em casa, os atritos e brigas são constantes.

Enfim, a adolescência é uma fase de contradições e Lucas é a própria contradição em pessoa. O livro de João Gabriel mostra com maestria o que é ser adolescente pela perspectiva do mais estranho e deslocado de todos: um garoto lobisomem. O livro fala de bullying, de primeiro amor, de amizades, de amor familiar, de aceitação e por isso é diversificado e ultrapassa os limites de uma narrativa de fantasia ou terror infantojuvenil sobre lobisomens e vampiros.  

O pequeno lobisomem e outros personagens

Um dos pontos que mais gostei neste livro foi a construção de seu protagonista que de tão complexo parece real.

João Gabriel concebe um protagonista com quem muitos facilmente se identificariam. O menino estranho dos cabelos espetados que cheira a cachorro molhado, que vive isolado, mas que esconde uma pequena paixão pela garota bonita da classe. Um filho que ama sua mãe, mas que não consegue evitar de trazer-lhe desgostos. Um jovem cheio de energia e potencial, mas que é hostilizado por um padrasto que o considera um incômodo. O garoto diferente que é alvo de bullying do enteado da mãe e dos valentões da escola. O rapaz que tenta entender quem ele é e qual o seu propósito no mundo. Todos eles são Lucas Lupino.

Lucas é um garoto diferente com uma aparência estranha (isso é fato incontestável). Tem uma fome incontrolável e uma irritação ameaçadora que assusta muitos a sua volta. Para muitos ele é só mais um futuro delinquente, mas intimamente ele é só um garoto como outro qualquer, com seus medos, sonhos e paixonites. Ele também é um monstro, perigoso, ameaçador quase incontrolável, mas também tem a pureza de alguém que deseja ser bom e fazer o seu melhor. Enfim, Lucas é um personagem multifacetado e isso faz dele um personagem intrigante ao mesmo tempo que cativante.

Acompanhá-lo é ver uma criança perdida que tenta desesperadamente buscar respostas e controlar seus ímpetos agressivos. Ele é um garoto corajoso, mas cheio de medos e indagações. Sua instabilidade emocional o faz tão frágil quanto o faz forte e, mesmo sua natureza biológica, ao que tudo indica, parece desafiar as próprias leis naturais. O tipo de personagem que mais adoro porque tem uma construção que tende a ser complexa e realista.

Acredito que todo ser humano é um universo em si complexo e multifacetados. Não somos a mesma pessoa nem agimos igual ao tempo todo e como cebolas (sim, cebolas, você não leu errado) somos feitos de camadas sobrepostas de tamanhos distintos, porém, diferentes das cebolas, com tons ligeiramente dessemelhantes.

Não gosto de personagens planos, simples construídas em redor de uma única qualidade ou defeito, mas de personagens complexos e contraditórios, os ditos personagens redondos. Lucas é um deles e já vale pelo livro inteiro.

O Amaldiçoado é uma série com um elenco vasto e muitos outros personagens perfilam pela história. O misterioso Arthur Pedro Antônio, o padrasto burguês e hostil que só pensa em dinheiro; seu filho, Édipo, prepotente e que pensa ser superior a Lucas e por isso está sempre atormentando seu juízo. Chico, o “melhor” e praticamente único amigo de Lucas, mas que passa a maior parte da história forçando esta aproximação e amizade. Melissa, a menina bonita por quem Lucas é apaixonado. Cito ainda Félix, o menino novo da escola que acaba criando uma grande confusão em Vale dos Anjos e se tornando elemento-chave na narrativa.

Muitos outros personagens secundários foram criados por João Gabriel, contudo estes alongariam demais a resenha caso fossem citados com pormenores. Contudo, dois personagens precisam ser destacados. O primeiro é Eulália, a mãe de Lucas, o outo seu Anselmo, que se destaca como mestre e instrutor de Lucas.

Destaco Eulália porque foi um personagem que me chamou a atenção e me causou estranhamento. Eulália é uma religiosa fervorosa, descrita como uma verdadeira beata, porém a maior parte do tempo ela não me convenceu. Achei que o personagem está demasiadamente cercado de estereótipos por ter sido criado como uma mulher exageradamente pura, cristianizada e correta, um exemplo de retidão e probidade só porque é religiosa. Fora os seus momentos de irritação, quando Lucas apronta das suas, Eulália é comparável a Virgem de tão certinha, por isso achei sua construção um pouco caricata e fora da realidade.

Eulália é um exemplo de personagem plano e na maior parte do tempo permanece como um – ela só mostra as unhas uma única vez, já perto do final do livro. Como já disse não gosto de personagens planos, porque é meio difícil de acreditar na constância moral deles, eles não me parecem críveis ou realistas. É certo que a história esconde um propósito para ter um personagem assim, mas isso só fica claro muito tempo depois e é só nesse momento que Eulália ganha um pouco mais de profundidade.

Por seu turno, destaco seu Anselmo por ser um dos personagens mais exóticos e enigmáticos da trama. Ele é descrito como um senhor de idade, sempre portando seu chapéu panamá, e que vive isolado na sua cabana no meio da floresta. Como Lucas ele é um lobisomem, já tem mais de 100 anos e é na trama a chave central para entendermos o passado do menino e suas origens. Ele cumpre o papel de mestre e mentor de Lucas, e o ajuda em muitos aspectos, mas acho que ele poderia ter uma presença mais intensa na trama. Ele some nos momentos mais cruciais da narrativa, mas tenho impressão que será elemento-chave no segundo volume da série.

Para finalizar...

A escrita de João Gabriel é leve e fácil de compreender. Ele escreve bem, no entanto, a história do livro tem um começo fraco e só ficar realmente interessante quando Lucas passa por sua primeira transformação.  A partir dali a narrativa passa alternar entre momentos tranquilos, momentos de tensão e outros de ação e morte. A leitura só é cansativa nos primeiros capítulos, mas, à medida que a trama se torna mais dinâmica e consistente, passa a fluir rapidamente e se torna mais instigante.

O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas é uma história interessante com um protagonista cativante com o qual o leitor divide e reage aos anseios e medos do mesmo. Lucas é um menino problemático, mas com o qual você se compadece. Só acho que a obra deveria evitar as armadilhas de americanização da cultura brasileira. Uma cidade inteira que comemora o dia das bruxas não é exatamente comum no Brasil. Comemorações como estas em escolas, sobretudo particulares, são bem comuns, mas uma cidade inteira não é ainda algo existente.

Infelizmente, O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas possui alguns pontos negativos, três para ser exato. O primeiro deles já mencionei quando falava de Eulália: essa não é uma obra livre de alguns estereótipos inocentes, mas inegáveis e que deixam alguns personagens, como Eulália com um certo ar caricatural.

O segundo ponto é o narrador e suas piadas sem humor. Narrado em terceira pessoa, o livro tem um narrador ativo na narrativa. Ele opina, se compadece dos personagens e tenta se engraçado, mas nem sempre consegue êxito.

Mas o que mais me chamou a atenção foi um pequeno trecho, imperceptível quase, mas destaco porque achei muito incoerente e, até certo ponto, inadequado para um livro infantojuvenil. Trata-se de um comentário sobre um dos personagens relacionada a questão da autodefesa do porte de armas:

“Na sala, pegou uma lanterna potente de fazendeiro, uma faca de caça e uma espingarda calibre doze que deixava num armário para ocasiões como aquela. Era a favor da autodefesa. Achava que a polícia não fazia seu trabalho direito e a segurança no país estava um caos”.

O comentário é completamente desnecessário para o entendimento da trama e de seu personagem. Sem querer, a passagem faz aos jovens uma espécie de apologia ao porte de armas, um posicionamento político do personagem desnecessário a obra que, para sua faixa etária e temática, deveria ser politicamente neutra. Na minha opinião, bastava mencionar que ele pegava uma espingarda, arma comum entre caçadores de animais.

O desfecho é sem dúvida um dos melhores aspectos da narrativa. Cheio de acontecimentos inesperados, mistérios e reviravoltas, a conclusão do primeiro livro nem de perto dá um ponto final na narrativa ou esgota suas possibilidades. João Gabriel soube o exato momento onde encerrar a escrita de O Amaldiçoado e o Príncipe das Trevas para deixar seu leitor curioso e ansioso pelo segundo volume da série.

O destino de Lucas fica em aberto bem como da maioria dos personagens. O seu futuro e o destino da humanidade ficam em suspenso e você curioso para saber como Lucas fará para enfrentar os novos desafios que se abrem a sua frente. Quais aliados fará nessa empresa e como seguirá em frente em direção ao seu destino? As possibilidades são imensas, mas tudo depende de como o autor conduzirá a segunda edição que já foi publicada sob o título de O Amaldiçoado e a Tarefa dos Lunáticos. Esperemos pelos desfechos do próximo livro.

A edição lida é independente e está disponível na Amazon, porém o livro já foi publicado em edição impressa pela Editora Giostri, no ano de 2017 e possui 188 páginas.



[1]Raça canina do tipo Collie desenvolvida na região da fronteira anglo-escocesa na Grã-Bretanha para o trabalho de pastorear gado, em especial, de ovelhas. (Wikipédia)


domingo, 5 de julho de 2020

A Espada que dá Vida – Yagyu Munenori – Resenha


Por Eric Silva
11 de abril de 2020

“Se os pensamentos estão dentro, suas tintas serão manifestadas fora”
(Yagyu Munenori)

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Um tratado de esgrima, um texto clássico do zen-budismo e lições de vida, A Espada que dá Vida do espadachim japonês que viveu ativamente as primeiras décadas do xogunato Tokugawa, Yagyu Munenori, é um livro por sua filosofia desafiante, mas, ao mesmo tempo, repleto de valiosas reflexões sobre a mente humana.

Sinopse do livro

Espadachim e mestre de artes maciais fundador do ramo Yagyū Shinkage-ryu de Edo[1], Yagyu Munenori é considerado como o maior rival de Musashi, outro famoso espadachim japonês, ainda que nunca o tenha conhecido pessoalmente. Retentor direto da casa Tokugawa, e instrutor de espadas de três gerações sucessivas de xoguns: Ieyasu, Hidetada e Iemitsu. Contudo, mais do que um instrutor de artes marciais, Yagyu, foi também um importante conselheiro do xogunato Tokugawa e uma figura influente na vida do terceiro xogum, Iemitsu.

Na arte da espada, Yagyu foi um mestre de grande respeito e fama, tendo aperfeiçoado o estilo de espada de seu clã ao introduzir nele uma série de ideias e conceitos do zen-budismo. A Espada que dá Vida (Heihō kadensho – 兵法家伝書)[2] é o tratado de Yagyu através do qual ele passou às gerações seguintes de seu clã toda a filosofia de seu estilo de espada, uma reflexão sobre a Não Espada.

O tema central dessa obra, que ainda hoje é considerada como um texto clássico do zen, é a arte de utilizar a espada mais como instrumento de vida do que de morte, através de um controle sobre o oponente por meio da preparação espiritual para lutar, muito mais do que pela luta propriamente dita. Trata-se de um livro de estratégia que leva o seu leitor a refletir como vencer uma batalha sem necessariamente usar força ostensiva e evitando perda para todas as partes envolvidas. Um livro que extrapola o universo da esgrima, ainda que este seja seu tema central.

Resenha

Detalhe dos suportes (koshirae) para um par de espadas (daishō), período Edo.
Autor: Marie-Lan Nguyen. Wikimedia Commons.
Comecei a ler esse livro por conta de um aluno novo que ao saber da minha opção religiosa me pediu que lesse esse importante texto do kendō (剣道), arte marcial praticada por ele, mas que também é considerado um texto clássico da literatura zen, fortemente influenciado pelo pensamento do monge Takuan Soho, que era amigo próximo de Munenori. Por conta disso, A Espada que dá vida nos apresenta uma série de ideias filosóficas aplicáveis em muitos aspectos da vida cotidiana. Princípios que pode ser utilizado no convívio social, bem como nos negócios. Isso se deve porque a ideia central desse texto não é unicamente ensinar técnicas de manuseio da espada, mas ensinar um estilo de espada que considera que não é a derrotar o oponente a maior vitória que você pode conquistar, mas torná-lo seu parceiro, evitando o conflito.

Escrito no século XVII, A Espada que dá Vida, foi concebido em plena era de domínio do Xogunato Tokugawa, o Período Edo. Nessa época, o Japão vivia um momento político marcado tanto pelo forte isolamento político-econômico do país, como pelo controle rígido exercido pelos xoguns[3], generais que comandava o exército imperial, mas que a partir do século XII, haviam se tornado governantes de facto de todo o país[4].

Durante o período Edo, o Japão foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, da qual foram membros Ieyasu, Hidetada e Iemitsu, os três primeiros xoguns da linhagem que governaria as terras nipônicas de 1603 até 1868. Foi durante o governo dos primeiros três xoguns que Yagyu Munenori (1571 – 1646) viveu grande parte de sua vida, e foi ao lado deles que o espadachim fez seu nome na história das artes marciais japonesas.

Yagyu era filho caçula de um espadachim de renome e aristocrata de um vale em Yamato[5], Yagyu Sekishusai Muneyoshi, e herdou deste os segredos de seu estilo de espadas, o Shinkage-ryu. Em certa ocasião, o futuro xogum, Ieyasu, convidou Sekishusai para visitá-lo em sua vila de Takagamine, fora da capital. Ieyasu queria conhecer a famosa técnica de Sekishusai de derrotar um homem armado usando apenas as mãos livres – a técnica da Não Espada.

Sekishusai foi ao encontro de Ieyasu acompanhado de Munenori, na ocasião com 22 anos, e lá explicaram ao xogum os princípios do Shinkage-ryu e o demostraram numa luta entre Sekishusai e Ieyasu.

Impressionado, Ieyasu pediu que o velho mestre se tornasse seu instrutor pessoal. Recusando educadamente, Sekishusai declarou que tinha uma idade já avançada e recomendou seu filho para o posto oferecido. Foi desse modo, que Munenori tornou-se instrutor de três xoguns da casa de Tokugawa, passando a ter também, com o tempo, uma forte influência política dentro do xogunato como conselheiro de Iemitsu, neto de Ieyasu. 

Por volta de 1632, Munenori concluiu o Heihō kadensho (A Espada que dá Vida), livro no qual ensinaria a prática da espada Shinkage-ryu e como seus princípios poderia ser aplicado em um nível macro à vida e também à política[6].

Filosofia, zen-budismo e artes marciais

Monge zen-budista japonês da escola Soto em meditação.
Autor: Marubatsu. Wikimedia Commons.
A Espada que dá vida é um livro difícil de descrever – tanto quanto está sendo complicado resenhá-lo. Essa dificuldade nasce porque ele não é só um livro de artes marciais, é também um livro de estratégia. Contudo além de um livro de estratégia, ele é também uma obra que mergulha na tradição zen, e como tal é repleto de ideias sofisticadas oriunda de uma filosofia cuja compreensão e aplicação podem ser muitas vezes bastante complexo, ainda que tudo pareça ser muito simples. Se não bastasse, além do zen, o livro também tem fortes influências confucionistas[7].

Sou zen-budista, e como tal posso atestar que a simplicidade do zen e de sua prática meditativa, o zazen, são apenas a superfície de um lago profundo no qual repousam conceitos que em certos momentos parecem muito simples de compreender, mas, em outros, parece flertar com o paradoxal porque exige de você enxergar além do aparente (muito além). A Espada que dá Vida é assim também, e lê-lo é um convite a meditar cada ideia antes de prosseguir com a leitura, o que desacelera bastante o ritmo desta leitura.

O zen é uma tradição religiosa associada ao Budismo do ramo mahayana, que foca, sobretudo, na prática, no zazen, ou seja, em sentar-se em meditação (em zen), acalmar a mente, e, nas palavras de Rodrigo Daien, “existir, ser uno com todas as coisas, ouvir os sons sem julgá-los, não fazer cogitações ou viagens para passado ou futuro”[8]. Parece simples, entretanto não é.
Mas como em toda tradição religiosa, há uma filosofia complexa que da base ao Zen: os ensinamentos do Dharma, a lei verdadeira ensinada pelo Buda histórico, Shakyamuni, ou Sidarta Gautama.

Após atingir a iluminação, o próprio Shakyamuni Buda buscava ensinar as quatro nobres verdades sobre o sofrimento de maneiras muito diversas, indo das formas mais simplificadas, às mais complexas, para que independente do grau de conhecimento e instrução de cada um, todos pudessem entender a mensagem do Dharma. Logo, apesar de muito evidentes, muitos ensinamentos de Buda podem ser dificílimos de compreender à primeira vista. Um livro que bebe dessa tradição, inevitavelmente, fará emergir algumas coisas bem complexas.

Mesmo para mim, que tenho uma certa familiaridade com o Zen e com o budismo (dentro do nível mais básico que um recém-convertido pode ter), houve momentos que ler A Espada que dá Vida foi ficar perdido com conceitos abstratos de uma filosofia muito diferente da nossa, mas que fala de nós e do nosso mundo com imensa precisão. Por diversas vezes prossegui na leitura em meio a névoas até alcançar um novo ponto onde as coisas voltassem a ser compreensivas no todo, mas é inegável que as palavras de Munenori, em vários momentos, têm um peso imenso e uma profundidade arrepiante.

O livro original é dividindo em três partes, nas quais Munenori vai mesclando as técnicas do Shinkage-ryu com a filosofia zen e as ideias confucionistas. No entanto, a edição lida também contém um longo prefácio (intitulado aqui como introdução), no qual o editor da tradução inglesa, William Scott Wilson, faz um apanhado geral da trajetória de vida de Munenori e das origens do estilo de espada por ele herdada e aperfeiçoada.

O primeiro capítulo, “A Ponte do Sapato de Presente”, é o menor dos três e apresenta as técnicas fundamentais do estilo, bem como orienta seu treinamento. Além disso, esse capítulo aborda a importância da estratégia criada “ainda dentro dos limites do nosso território”, tendo o inimigo ainda longe, e também de entender nas artes márcias “os limites do território são a nossa mente”. Uma mente que deve ser livre de negligências e observadora dos movimentos e atividades do oponente, buscando falhas e planejando estratégias.

A parte seguinte, “A Espada que Traz Morte”, fala das estratégias e da postura a ser adotada pelo aprendiz do Shinkage-ryu, enfatiza o aspecto técnico mas dá um grande destaque ao aspecto mental, falando sobre o ch’i, a intensão, a ilusão como base das artes marciais, sobre a essência do atacar e do aguardar, assim como a relação entre a mente e os ritmos na luta.

Um ponto muito interessante deste capítulo é quando o livro trata do que Munenori chama de doença nas artes marciais.

Nas palavras de Munenori, pensar apenas em vitória ou em só usar as artes marcais, ou em demonstrar resultados nas mesmas é doença, e nos ensina a usar o pensamento para atingir o não pensar e usar a conexão para desconectar. Confusão, não? Mas trata-se de usar o pensamento para expulsar o mal, expulsar pensamentos usando pensamentos, e que leva ao não pensar. Me farei mais claro.

Imagine uma situação onde você se encontra dominado por pensamentos obsessivos relacionados a algo ou alguém. Uma frustração, uma insatisfação, uma dor. Sua mente está inquieta, dispersa, e você, doente. Mas através de outros pensamentos, de outra coisa que tome sua atenção e ocupe passageiramente sua mente você se libertará, tanto dos pensamentos obsessivos quanto daqueles que os substituíram, e alcançará o não pensar.

Nas artes marciais, quando você está obcecado pela vitória, a derrota pode ser a única realidade que você conhecerá, por isso, o não pensar te traz ao equilíbrio necessário para estar atento ao seu oponente e a sua própria espada e seu próprio corpo. A mente se equilibra, e ela é a senhora de seu corpo. Isso vale para a vida também.

Finalmente, em “A Espada que dá Vida”, é explorada a ideia da “não-espada” citada no começo da resenha e que foi demonstrada ao xogum. Além disso, o capítulo fala sobre como usar a distância na luta com espadas, posicionamentos a serem adotados, da importância de que a mente jamais fique parada numa ação já ocorrida. Além disso, outros conceitos filosóficos zen-budistas são discutidos como o conceito de apego, da existência e da não-existência, do falso vazio e do verdadeiro vazio, do potencial e da função e outras discussões sobre a mente e o corpo.

Enfim, A Espada que dá Vida é um livro que será muito interessante àqueles que praticam artes marciais, porque, mais do que ensinar técnicas de esgrima, a obra ensinará sobre a vida e como vivê-la de forma a evitar conflitos desnecessários. Para os budistas, será uma fonte de mais alguns ensinamentos. Já para os demais, ela também será uma fonte de conhecimento sobre a história de alguns importantes personagens da história do Japão. Ainda assim, pode ser uma leitura difícil e em vários momentos exaustiva. Eu mesmo tive muitas dificuldades de concentração e de prosseguir a leitura toda vez que me deparava com algum pensamento mais complexo. Foram 52 dias de leitura – ressaltando que meu trabalho também influiu no atraso da leitura.

Ademais, acrescento que a tradução é impecável e o texto original de Yagyu é conciso. A introdução achei excessivamente longa. Por fim, a edição tem uma capa muito elegante e foi produzida em papel em tom amarelado.

A edição lida é da Editora Cultrix, do ano de 2013 e possui 184 páginas.




[1]https://institutoguanyu.wordpress.com/2015/06/02/yagyu-munenori/
[2]https://en.wikipedia.org/wiki/A_Hereditary_Book_on_the_Art_of_War
[3]https://pt.wikipedia.org/wiki/Per%C3%ADodo_Edo
[4]https://pt.wikipedia.org/wiki/Xogum
[5]O texto não deixa claro se Yamato seria alguma das muitas cidades japonesas com esse nome ou se faz referência a antiga Província de Yamato, que atualmente corresponde à atual prefeitura de Nara em Honshū.
[6]https://en.wikipedia.org/wiki/Yagy%C5%AB_Munenori
[7]Referente às ideias de Confúcio (孔子551 a.C. – 479 a.C.), pensador e filósofo chinês do Período das Primaveras e Outonos. (Wikipédia)
[8]https://sobrebudismo.com.br/o-zen-e-enganadoramente-simples/

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