Por Eric Silva.
Mais uma leitura do grupo Ler é Viver
Três mulheres muito diferentes entre si mas que juntas
– cada uma em sua perspectiva – compõe uma narrativa, com certeza, interessante
e magnética, mas que está longe de ser o melhor thriller que já li.
Sinopse
Rachel é uma quarentona
alcoólatra que amarga uma rotina tediosa de levantar cedo todos os dias e pegar
um trem para Londres a caminho de um trabalho que, na verdade, não existe,
apenas para esconder de sua amiga e locadora[1] mais
um dos seus fracassos como pessoa. Mas mais do que isso o caminho por ela
trilhada todos os dias lhe permite vislumbres de uma vida que já não lhe
pertence, mas do qual não consegue se desvencilhar: o casamento fracassado com
Tom que a deixou para ficar com sua amante Anna e que agora têm uma filha e
mora na antiga casa do casal.
Mas seu consolo, além da
bebida, está também no que ela pode observar do trem, nessas idas e vindas. Da
janela, Rachel pode ver pequenos lances da vida de um jovem casal, vizinhos de
rua de seu ex-marido. A intimidade e as demonstrações de afeto fazem com que
ela idealize naquele casal, supostamente perfeito, tudo o que ela mesma não
pôde ser com Tom. Além de dar-lhes nomes, ela imagina suas ocupações e suas
rotinas demonstrando uma completa obsessão pela vida dos dois. Porém, um dia
algo estranho chama sua atenção, algo que mudaria de vez não só a vida dela
como a de todos os personagens envolvidos e que se complicaria quando surge a
notícia de que Megan está desaparecida.
Resenha
Concorde comigo quem
quiser, mas A Garota no Trem me
parece uma mistura de vários gêneros, sem se concretizar inteiramente como
nenhum deles. Vou explicar por quê.
Em primeiro lugar, o livro
se assemelha ao romance psicológico, mas não abraça todos os elementos comuns a
este gênero e que ficaram marcados em obras clássicas como Dom Casmurro, de
Machado, ou em seu conterrâneo O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë. Porém, digo que isso é de certa forma um
alívio, porque assim a história não ficou cansativa. Ainda que eu goste
muito da essência da história contada em Dom Casmurro, em diversas passagens
Machado é bastante cansativo.
Foi escrito para ser um
thriller, mas somos de tal forma envolvidos nos dramas pessoais e no conflito
psicológico de Rachel que elementos como
“suspense, tensão e excitação”[2]
são perigosamente secundarizados, até chegarmos aos capítulos de desfecho
quando a história realmente chega ao seu clímax e a narrativa se torna
verdadeiramente tensa.
Considerá-lo como policial? Impensável. Sou fã de Agatha Christie e uso seus livros e de
outras mentes brilhantes do gênero como referência, e, em muitos aspectos, o
livro de Hawkins foge do que convenciono chamar de romance policial. A começar
pela falta de protagonismo policial na trama e pelo distanciamento da narrativa
dos trâmites da investigação que só chegam ao leitor de forma indireta, através
do que os personagens são superficialmente informados ou do que é noticiado nos
famosos e mal afamados tabloides ingleses. Concordo inteiramente com a
definição e descrição de Ana Lucia Santana[3]
acerca do gênero policial e para mim, A
Garota no Tem é pobre do elemento mais marcante do gênero: foco no
“mecanismo de desvendamento dos segredos envolvidos no crime”, ou seja, falta
proximidade da narrativa com o trabalho de investigação do crime, tanto que [SPOILER] não é a polícia a responsável
por desvendar o mistério da trama.
Contudo, quando parei para pesquisar mais, vejo que o
livro se enquadrar melhor com o conceito mais restrito de um subgênero do
thriller – o thriller psicológico.
Traços comuns a esse subgênero estão presentes no livro: eventos descritos a
partir do ponto de vista do personagem, nos possibilitando entender o
funcionamento de sua mente, com resgates de fatos passados, para justificar
atitudes e comportamentos atuais e, principalmente, um forte destaque para “a
percepção do personagem do mundo à sua volta, sua tentativa de distinguir o
verdadeiro do irreal, sua mente confusa, busca por sua identidade”[4].
Posso dizer que gostei da história porque ela foi
muito bem escrita e eu sempre ficava curioso para saber o que aconteceria a
Rachel – sem sombra de dúvidas a
grande protagonista da história. Mas não
me cativou como livro de “suspense” – o principal motivo de tê-lo lido.
O que verdadeiramente toma a cena é a instabilidade emocional das três narradoras, cada uma com seus complexos e que de longe não são pessoas equilibradas. Devido a isso algumas vezes nos esquecemos que há um mistério ali a ser solucionado,principalmente
quando somos engolidos pelo furacão Rachel.
O que verdadeiramente toma a cena é a instabilidade emocional das três narradoras, cada uma com seus complexos e que de longe não são pessoas equilibradas. Devido a isso algumas vezes nos esquecemos que há um mistério ali a ser solucionado,
Tamanha é a força da
presença das três personagens femininas que a autora fez com o livro algo que
vem sendo bastante explorado por alguns autores contemporâneos, mas que ainda
não tinha visto no gênero thriller: a alternância de narradores.
A Garota no Trem é
narrado sob três perspectivas diferentes:
Rachel, Megan e Anna, as três
personagens principais. Desta forma somos envolvidos na história sobre o olhar
diferenciado das três e os diferentes ângulos nos permite ver as distintas
versões da realidade que nos é apresentada. Por exemplo, Rachel fantasiava
sobre como era a vida de Jess (Megan) e Jason (Scott), mas é através da voz de
Megan que conhecemos quem de fato era o casal, seus problemas, suas fraquezas. Não gostei dos títulos repetitivos do
capítulos e que levavam o nome de sua respectiva narradora, mas compreendo que
esta foi uma forma encontrada pela autora de identificar a perspectiva que
narrava, por outro lado, as personalidades das três eram tão distintas e
particulares que se tornou totalmente desnecessário identificá-las, poderíamos
fazê-lo nós mesmos.
Por sua vez, a alternância
de narradores tornou a história interessante devido, novamente, às
peculiaridades de cada personagem, nos permitindo acompanhar a trama através de
narrações, ritmos e falas distintas. Talvez o livro fosse menos interessante se
tivesse sido escrito de outra maneira. Além disso, conhecemos intimamente cada
uma das personagens, conhecendo os seus desvios de caráter, suas fragilidades e
derrotas.
Rachel é a mais sintomática das três. Uma alcoólatra derrotada, um trapo humano sem nenhuma
perspectiva de superação que se agarra nas lembranças felizes de um casamento
que ela mesma afundou, mas do qual não consegue se desvencilhar. Rachel não é
só infeliz, ela é fraca e desesperada por qualquer migalha de amor ou pequenos
momentos de ação que venha tirá-la de sua rotina tediosa e vazia. Mas você acha
que isso a torna desinteressante? Não, ao contrário, quem lê quer saber em qual
roubada ela vai se meter; o que ela fez antes de acordar de um quase coma
alcoólico completamente desmemoriada; e até quando as pessoas terão paciência
com ela.
O que eu percebo na
narrativa é que Rachel toma conta do cenário ela está em tudo e em todos os
lugares, mesmo quando não está presente. Não é Megan, e muito pior Anna, o
centro das atenções, ainda que a primeira seja o pivô da problemática que
desencadeia toda a história.
Megan é, a meu ver, outro polo de instabilidade. Sob a falsa capa de esposa perfeita e feliz – que
quem de verdade a idealiza assim é Rachel – é uma mulher inconformada com a sua
vida, ansiosa por fugir da sua rotina e aventurar-se. Para além disso, Megan se
mostra uma mulher vulpina[5],
dissimulada e que gosta de exercer seu poder sobre os homens, de jogar com o
fascínio que provoca neles.
Por fim, Anna é a perspectiva menos explorada, mas que ainda assim tem seus traços psicológicos muito bem demarcados como uma mulher preocupada unicamente com a manutenção da felicidade conjugal e familiar que “conquistou” e que ela acha que não se concretiza por completo devido as interferências incessantes de Rachel. A verdade é que ela é uma pessoa mesquinha e indiferente ao sofrimento da “rival”, cuja vida ela ajudou a terminar de afundar – não que a vida de Rachel já não fosse o próprio Titanic. Além disso Anna conseguiu se realizar em tudo o que Rachel não foi capaz, e isso só serve para alimentar a rixa entre as duas.
Por fim, Anna é a perspectiva menos explorada, mas que ainda assim tem seus traços psicológicos muito bem demarcados como uma mulher preocupada unicamente com a manutenção da felicidade conjugal e familiar que “conquistou” e que ela acha que não se concretiza por completo devido as interferências incessantes de Rachel. A verdade é que ela é uma pessoa mesquinha e indiferente ao sofrimento da “rival”, cuja vida ela ajudou a terminar de afundar – não que a vida de Rachel já não fosse o próprio Titanic. Além disso Anna conseguiu se realizar em tudo o que Rachel não foi capaz, e isso só serve para alimentar a rixa entre as duas.
Uma colega skoober, fez um
comentário de que acha as personagens rasas, mas não concordo com ela. É
verdade que uma evolução é pouco perceptível em alguns personagens, mas também
é verdadeiro que eles são reflexos de uma realidade que nós leitores preferimos
comodamente ignorar: as pessoas do mundo real não mudam facilmente, algumas, ao
contrário seguem suas vidas cometendo os mesmos erros, porque são incapazes de
fazê-lo sozinho – e até mesmo com ajuda.
Mas uma coisa é fato, o
desfecho foi digno. [SPOILER] Não
digo que fiquei surpreso, de forma alguma, mas fomos de tal forma enganados
pela personalidade do personagem, que era ela a última pessoa da minha lista de
suspeitos – uma lista pequena por sinal.
Trailer da versão para o cinema.
Não indico necessariamente aos amantes do romance policial, do thriller policial ou de mistério, porque pode ser uma decepção, mas de qualquer forma não é um livro para ser rejeitado, porque a trama é bem escrita em outros aspectos, caso contrário eu o teria descartado ou me entediado, e esse não foi o caso. Agora está lançando o filme e estou curioso para saber quais traços do livro eles reforçarão. Se vão dar uma maior cara de suspense ou dará foco ao seu caráter de livro psicológico. Bem, e para finalizar... QUAL ERA A DAQUELE MALDITO SACO DE LIXO À MARGEM DO TREM???!!!
A edição lida é da editora
Record, digital e publicada em 2015. A versão impressa é do mesmo ano e contém
378 páginas.
Confira uma prévia do livro no Google Books.
[1] “Que ou aquele que cede a outrem (o locatário) o uso e gozo de bem móvel ou
imóvel, num contrato de locação” (HOUAISS, 2001)
[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Thriller_(g%C3%AAnero)
[3] Sobre o gênero Santana afirma: “O Romance Policial é uma categoria literária estruturada em torno da ocorrência de um assassinato, das indagações, pesquisas, inquirições de testemunhas e, finalmente, da descoberta do criminoso. Todo o enfoque do autor recai sobre o mecanismo de desvendamento dos segredos envolvidos no crime, levado a cabo normalmente por um detetive profissionalizado ou de natureza amadora”. Disponível em: http://www.infoescola.com/literatura/romance-policial/. Acesso em: 10 jul. 2016
[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Thriller_(g%C3%AAnero)
[5] Astuta, ardilosa, hábil com ardis.
Parabéns pela resenha, gostei muito. Gostei da forma como escreveu e conseguiu transmitir um pouco desse mistério, e diferenças das personagens, e até mesmo um pouco da tensão do livro. Nem li e já tenho uma suspeita para quem deu fim na Megan. kkkkk
ResponderExcluir