quinta-feira, 15 de março de 2018

Ordem Vermelha: filhos da degradação – Felipe Castilho – Resenha

Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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“Chegamos até aqui porque não temos medo de rastejar [...]. É isso o que acontece quando se é forçado contra o chão por tanto tempo. Aprendemos a não temê-lo” 
(Ordem Vermelha, Felipe Castilho).


Ler livros de fantasia escritos por brasileiros já é algo rotineiro para mim. Na verdade, leio-os mais do que obras do gênero escritas por estrangeiros. Mas quando me decidi por ler Ordem Vermelha, o fato que me chamou a atenção não foi bem a sua nacionalidade, mas por ser a primeira obra de fantasia nacional publicado pela Editora Intrínseca.

Lançado em parceria com a Comic Con Experience (CCPX)[1], Ordem Vermelha é obra do escritor paulista Felipe Castilho e o primeiro livro da duologia Filhos da Degradação, nome tão forte quanto o conteúdo de sua narrativa. O conceito do livro, porém, nasceu de um trabalho conjunto de Felipe com o escultor digital e modelador 3D, Victor Hugo Sousa, e com o também escultor, pintor e artista conceitual, Rodrigo Bastos Didier, ambos responsáveis pela elaboração da arte visual dos personagens principais da trama.

Nesta obra temas como escravidão, opressão, religião, mito, cultura e multirracialidade se misturam a uma narrativa de ação e fantasia que não deve nada a nenhuma obra estrangeira.


Enredo     

Mapa de Untherak. Arte: Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Seis grandes deuses criaram o mundo, a humanidade e além dela outras cinco raças: os Anões, os Kaorshs, os Gnolls, os Gigantes e os Sinfos. No plano terreno cada raça possuía seus próprios dons e papéis, porém, os humanos, incitando a discórdia e a inveja entre as raças, iniciaram uma guerra entre espécies, o que muito desagradou aos deuses.

Enfurecidos com a ingratidão de suas criaturas, os deuses puniram severamente cada uma das espécies e reduziram o mundo a um grande deserto, onde só um pequeno pedaço de terra continuaria a ser habitável. Esse deserto era a Degradação, e a última terra seria chamada de Untherak. Por fim, como para completar o castigo divino, os seis se tornaram uma, Una, a deusa de seis faces. Una tingiu o sol de negro e dele tirou o principal símbolo do governo tirânico que instauraria sobre as raças sobreviventes reunidas em Untherak: a mácula, um líquido negro, maldito, que atormentava a alma daqueles que nele fossem batizados e nos humanos fazia corroer a carne.

Em mil anos de governo tirânico, Una comandou Untherak com mãos de ferro, através do medo e da violência e com ajuda de seus sacerdotes, a Centípede, e de seu poderoso e imortal general, Proghon. A Deusa ainda concedeu aos súditos obedientes que lhe serviam diretamente a condição de Autoridades e reservou aos demais a pobreza e a condição “subumana” de escravos, podendo comprar apenas a sua semiliberdade. De tal modo, Una erigiu uma sociedade desigual, temente ao seu poder absoluto e ao castigo da mácula e penitenciada pelo trabalho forçado e mal remunerado. Mas em si, a Deusa carregava consigo um grande segredo que ameaçaria seu governo milenar. De posse desse segredo e guiados por um misterioso guerreiro de capa vermelha, a cor proibida por Una, um pequeno e inesperado grupo insurgente tenta derrubar o regime.

Universo “tolkieniano”?

Falar de Ordem Vermelha é algo complicado, porque qualquer detalhe pode se tornar um grande spoiler. A trama, pode se dizer é relativamente breve, porque não percorre um longo período cronológico, mas é tão cheio de detalhes e reviravoltas, que resenhar sem, digamos, “entregar o ouro”, é algo complicado.

Logo que se começa a leitura de Ordem Vermelha somos apresentados à história do surgimento das várias raças que compõem o universo de Untherak (anões, kaorshs, gnolls, gigantes e sinfos). Também ficamos sabendo como estes entraram em conflito e como acabaram encarando uma sina miserável. Nesse momento é muito difícil não se pensar em uma referência a obra de J. R. R. Tolkien, autor da saga do Hobbit e d’O Senhor dos Anéis.

Tolkien é mundialmente conhecido na literatura fantástica por ter criado todo um complexo e completo universo ficcional centrado na Terra Média, onde diferentes raças coexistem (raramente de forma pacífica): os hobbits, os anões, os humanos, os maiar, os elfos, os entes, os orcs, para citar só algumas destas raças. É neste universo multirracial que se dão todas as histórias narradas nos livros do autor que se preocupou inclusive em criar um idioma com estrutura gramatical e fonética própria, o Quenya.

Una (canto direito) e representantes de algumas das raças de Untherak.
Da esquerda para direita: kaorsh, humano, sinfo, anão.
O animal que serve de montaria ao sinfo seria um betouro.
Arte: Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Em Ordem Vermelha temos também um mundo multirracial, mas bem menos complexo e não menos original. Se houve uma inspiração na obra de Tolkien ela se limitou à criação da raça dos anões e a ideia de coexistência de diferentes raças com diferentes visões de mundo. Em todo o resto a criação de Castilho é originalíssima com a criação dos kaorshs, indivíduos “altivos e esguios, preparados para transpor obstáculos e responsáveis por dar cor ao mundo”, mas que passaram a ter as cores presas dentro de si; os gnolls, seres “silenciosos como a chuva, velozes como os rios” que foram condenados a andar sobre as quatro patas e se tornaram criaturas horrendas e brutais, reduzidos posteriormente a meros cães de guarda; e por fim, dos sinfos, criaturas que nasciam das árvores e eram “leves como o pólen carregado pelo vento” e “mensageiros da magia invisível”, mas que tiveram seu tempo de vida bastante reduzido. São criaturas imaginadas pelo autor e que possuem culturas próprias o que só enriquece o universo de Untherak.

Alguns resenhistas ainda citam uma certa familiaridade do enredo de Ordem Vermelha com a narrativa do livro Mistborn, do escritor norte-americano de fantasia e ficção científica Brandon Sanderson. Mas este eu nunca li, então não emitirei opinião nem em acordo, nem em desacordo.

Quase saídos de um RPG: Personagens e Movimento

Aelian
Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Mas se Ordem Vermelha é um livro de forte inspiração medieval que nos faz lembrar do universo tolkieniano, por outro lado ele é também um livro que tem um pé na modernidade.

Castilho escreve uma trama que parece ter saído de um jogo de RPG e, alternando entre "matizes cruas" e leves, trata em sua obra de diversos temas marcantes: religião, escravidão, selvageria, multiplicidade racial, corrupção, opressão, questões de gênero e cultura.

Ordem Vermelha é do tipo do livro de fantasia que vai além dos elementos mágicos e sobrenaturais que caracterizam o gênero. Ele trata de visões de mundo com a leveza de quem sabe que a realidade é composta de muitas “cores” e de diferentes olhares.

A sensação de ler um RPG surgiu logo no início quando autor descreve os movimentos extravagantes com os quais o personagem principal, Aelian, manejava a sua espada. Ao longo da leitura essa sensação só aumenta quando nos damos conta do quão cinematográfica é a narrativa, sobretudo, em seus últimos capítulos.

Raazi
Arte de autoria de  Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
Mesmo para mim, que não sou um gamer, bastava fechar os olhos para imaginar os cenários e os personagens dentro de um grande jogo virtual. Além disso há muito movimento na narrativa e cenas de fugas por telhados e construções que me fizeram lembrar de parkour[2]. Quando se soma ao seu estilo cinematográfico a narrativa se torna dinâmica e imaginá-la como um jogo é algo muito fácil.

A construção dos personagens é outra coisa fabulosa e que se harmoniza completamente com o RPG. Felipe dá um destaque todo especial a descrição e composição de cada raça e também dos personagens que figuram o elenco principal. Aparência, estilo de luta, personalidade, raízes culturais e crenças, conhecimentos e habilidades, filosofia de mundo e de vida, tudo é primorosamente destacado e descrito sem cometer excessos ou valer-se de textos longuíssimos, dando uma naturalidade incrível à narração.

Cada personagem possui sua própria personalidade, muito própria e demarcada. Aelian, o jovem falcoeiro humano que desde criança trabalhava como escravo, é, sem dúvida, o personagem mais destacado, mas ele divide seu protagonismo com muitos outros tão importantes quanto ele na composição da trama: Aparição, Raazi, Yanisha, Ziggy e Harun.

Aelian é impulsivo, mas inteligente. Está sempre fugindo do Poleiro (seu local de trabalho) pelos telhados da cidadela e tem como fiel amigo um falcão que o ajuda em suas aventuras e em vários momentos salva sua vida. É com ele que Aparição, um misterioso e habilidoso rebelde, tem seu primeiro contato com a trama. Também será esse encontro com o guerreiro que trajava uma capa vermelha (a cor proibida em Untherak), que revolucionará não só a história de Aelian como de toda a Untherak.

General Proghon.
Arte de autoria de  Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
As Kaorshs Raazi e Yanisha formam a dupla mais destemida e corajosa da trama. Guerreiras tremendas e quase suicidas, elas são destacadas também como duas pessoas extremamente ligadas à cultura e às crenças quase extintas de seu povo.

O sinfo Ziggy é, dos personagens, o mais intrigante. Ele parece inocente e infantil, mas, em muitos momentos, pega-nos de surpresa com a profundidade de algumas das suas colocações. É também um alguém de coração forte e valoroso, mas igualmente gentil. Total oposto dos antagonistas: Una e Proghon, esse último, o principal general da Deusa, uma criatura em forma de homem coberto de mácula e que ostentava uma máscara de caveira feita de ouro. Ambos representam, junto com seus subordinados, tudo o que há de mais cruel, autoritário, obscuro, corrupto e opresso em Untherak.

Mas de todos os personagens, o anão Harun é o que mais guarda surpresas dentro da narrativa. Por isso não falarei nada sobre ele nesta resenha.

Multitemático

A princípio Ordem Vermelha tem uma narração arrastada, mas que gradualmente vai se tornando dinâmica e revelando uma obra multitemática que alia ação, fantasia e denúncia, ou seja, aos poucos o livro se revela tematicamente muito rico, ainda que muitos de seus temas sejam trabalhados com sutileza e dentro dos limites de uma ficção de fantasia.

Na obra de Felipe Castilho a temática central é, sem dúvida, a opressão imposta por um governo teocrático, ditatorial e escravocrata e esse tema central é tratado de forma crua e realista sem nenhum eufemismo.

Una
Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier.
O sistema social criado por Una sobrevive do trabalho forçado e mal remunerado de centenas que vivem à mercê dos humores e brutalidades dos Autoridades e sob o julgo do poder de uma deusa ferina. Um sistema opressor que não só eliminava a liberdade e ceifava vidas, mas que tentava também suprimir e destruir parte da identidade de cada povo escravizado. Desse último ponto emergem os outros temas que orbitam entorno da temática central: a questão da religião nascida do mito e das narrativas incessantemente reproduzidas; a abundância de culturas e visões de mundo nascidas da multirracialidade e a imposição de uma crença sobre os costumes, tradições e filosofias de outros grupos na tentativa de suprimi-las e eliminá-las, mantendo um controle social maior sobre diferentes grupos étnicos (etnocídio).

Ao detalhar a cultura e as visões de mundo de cada raça o livro deixa evidente a riqueza cultural dos povos que compõem a população de Untherak, mas, ao mesmo tempo, demonstra também como pelo domínio milenar de Una esses aspectos culturais vão desaparecendo, se diluindo e sendo esquecidos.

Esses são temas trabalhados de modo mais leve, mas que caracterizam uma narrativa que é mais do que pura ação e fantasia. Há uma mensagem nas entrelinhas que fala muito da história humana de imposição cultural-religiosa, no qual a dominação de um povo ou grupo sobre o outro é feita pelo medo, pela violência, pelo cerceamento da liberdade e pela fé ou cultura imposta.

Por fim, outros dois temas explorados tangencialmente à narrativa principal são o homossexualismo feminino e o vício em carvão (droga ilegal comercializada no mercado negro de Untherak e que serve de alento aos miseráveis que padecem dos horrores do sistema de governo de Una). De um lado Felipe trata com muita leveza e naturalidade do tema das relações homoafetivas e do companheirismo nestas relações, trazendo para trama duas personagens que formam um casal, e de outro, faz uma alusão aos difíceis tempos modernos nos quais as pessoas escapam da realidade através do uso de entorpecentes.

A título de conclusão

Ordem Vermelha não foi um livro que me surpreendeu, porque venho aprendendo que no Brasil há escritores de fantasia muito bons e que estão pouco a pouco conquistando seu espaço: Ana Lúcia Merege, Eduardo Kasse, J. M. Beraldo, Eduardo Spohr, Gerson Lodi-Ribeiro e, agora, Felipe Castilho. Cada qual com seu estilo, temáticas e referências, mas todos excelentes escritores.

Castilho escreve uma narrativa instigante, criativa, que busca ser original e também multitemática, sem, por outro lado, tornar-se uma sopa confusa cheia de temas divergentes. Tudo se conecta harmoniosamente e tem seu lugar, conduzindo, por fim, a um desfecho em aberto – como se deve esperar de uma duologia. Mas trata-se de um desfecho épico, cinematográfico e instigante que revela um breve deslumbre dos desdobramentos da narrativa e do que acontecerá no livro seguinte. Um desfecho que atiça a curiosidade do leitor e deixa-o ansioso pela continuação.

Enfim, do meu ponto de vista, Ordem Vermelha é um livro que busca de forma sutil, mas visível, integrar temas que constroem uma narrativa para além da fantasia pura (de mundos meramente mágicos), ou da ação pura (de guerras sem muito sentido), para falar de lutas que unem raças na busca pela liberdade e pela verdade. Uma luta que não é só formada de baixas, mas que busca igualmente derrubar símbolos de opressão. Foi essa multiplicidade temática o ponto de que mais gostei na obra de Felipe Castilho.

A edição lida é da Editora Intrínseca, do ano de 2017 e possui 448 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books além de um vídeo promocional da editora Intrínseca com um rápido bate papo com o autor e seus colaboradores.

Sobre o autor

Paulista, Felipe Castilho é autor de livros de fantasia e contos, estes últimos publicados quinzenalmente no site Quotidianos. É autor da obra O legado folclórico, que une mitologia brasileira com o mundo dos videogames. Pelo quadrinho Savana de Pedra foi indicado ao Prêmio Jabuti.

Preview do Google Books








[1]Comic Con Experience (também conhecida apenas como CCXP) é um evento brasileiro de cultura pop nos moldes da San Diego Comic-Con cobrindo as principais áreas dessa indústria como: jogos, quadrinhos, filmes e TV. Realizado pela primeira vez em dezembro de 2014 pelas equipes do site Omelete, da Piziitoys e pela agência Chiaroscuro Studios, é considerado o maior evento nerd já organizado no país e a terceira maior Comic Con do mundo em público (em 2016). (Wikipédia)
[2]Atividade recreativa e esportiva, praticada em áreas urbanas ou rurais, que consiste em deslocar-se o mais rápida e eficientemente de um ponto a outro usando habilidades atléticas para superar os obstáculos (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

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