Por Eric Silva
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“Chegamos até aqui porque não temos medo de rastejar [...]. É isso o que acontece quando se é forçado contra o chão por tanto tempo. Aprendemos a não temê-lo”
(Ordem Vermelha, Felipe Castilho).
Ler livros de fantasia escritos por brasileiros já é algo
rotineiro para mim. Na verdade, leio-os mais do que obras do gênero escritas
por estrangeiros. Mas quando me decidi por ler Ordem Vermelha, o fato que me chamou a atenção não foi bem a sua
nacionalidade, mas por ser a primeira obra de fantasia nacional publicado
pela Editora Intrínseca.
Lançado em parceria com a Comic Con Experience (CCPX)[1],
Ordem Vermelha é obra do escritor
paulista Felipe Castilho e o primeiro livro da duologia Filhos da Degradação, nome tão forte quanto o conteúdo de sua
narrativa. O conceito do livro, porém, nasceu de um trabalho conjunto de Felipe
com o escultor digital e modelador 3D, Victor Hugo Sousa, e com o também
escultor, pintor e artista conceitual, Rodrigo Bastos Didier, ambos responsáveis
pela elaboração da arte visual dos personagens principais da trama.
Nesta obra temas como escravidão, opressão, religião, mito,
cultura e multirracialidade se misturam a uma narrativa de ação e fantasia que
não deve nada a nenhuma obra estrangeira.
Enredo
Mapa de Untherak. Arte: Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier. |
Seis grandes deuses criaram o mundo, a humanidade e além dela
outras cinco raças: os Anões, os Kaorshs, os Gnolls, os Gigantes e os Sinfos.
No plano terreno cada raça possuía seus próprios dons e papéis, porém, os humanos,
incitando a discórdia e a inveja entre as raças, iniciaram uma guerra entre
espécies, o que muito desagradou aos deuses.
Enfurecidos com a ingratidão de suas criaturas, os deuses
puniram severamente cada uma das espécies e reduziram o mundo a um grande deserto,
onde só um pequeno pedaço de terra continuaria a ser habitável. Esse deserto
era a Degradação, e a última terra seria chamada de Untherak. Por fim, como
para completar o castigo divino, os seis se tornaram uma, Una, a deusa de seis faces. Una tingiu o sol de negro e dele tirou
o principal símbolo do governo tirânico que instauraria sobre as raças
sobreviventes reunidas em Untherak: a mácula, um líquido negro, maldito, que
atormentava a alma daqueles que nele fossem batizados e nos humanos fazia
corroer a carne.
Em mil anos de governo tirânico, Una comandou Untherak com mãos
de ferro, através do medo e da violência e com ajuda de seus sacerdotes, a
Centípede, e de seu poderoso e imortal general, Proghon. A Deusa ainda concedeu
aos súditos obedientes que lhe serviam diretamente a condição de Autoridades e
reservou aos demais a pobreza e a condição “subumana” de escravos, podendo
comprar apenas a sua semiliberdade. De tal modo, Una erigiu uma sociedade
desigual, temente ao seu poder absoluto e ao castigo da mácula e penitenciada
pelo trabalho forçado e mal remunerado. Mas em si, a Deusa carregava consigo um
grande segredo que ameaçaria seu governo milenar. De posse desse segredo e
guiados por um misterioso guerreiro de capa vermelha, a cor proibida por Una,
um pequeno e inesperado grupo insurgente tenta derrubar o regime.
Universo
“tolkieniano”?
Falar de Ordem Vermelha
é algo complicado, porque qualquer detalhe pode se tornar um grande spoiler. A
trama, pode se dizer é relativamente breve, porque não percorre um longo
período cronológico, mas é tão cheio de detalhes e reviravoltas, que resenhar
sem, digamos, “entregar o ouro”, é
algo complicado.
Logo que se começa a leitura de Ordem Vermelha somos apresentados à história do surgimento das
várias raças que compõem o universo de Untherak (anões, kaorshs, gnolls,
gigantes e sinfos). Também ficamos sabendo como estes entraram em conflito e
como acabaram encarando uma sina miserável. Nesse momento é muito difícil não
se pensar em uma referência a obra de J. R. R. Tolkien, autor da saga do Hobbit e d’O Senhor dos Anéis.
Tolkien é mundialmente conhecido na literatura fantástica por
ter criado todo um complexo e completo universo ficcional centrado na Terra
Média, onde diferentes raças coexistem (raramente de forma pacífica): os hobbits, os anões, os humanos, os maiar,
os elfos, os entes, os orcs, para citar só algumas destas raças.
É neste universo multirracial que se dão todas as histórias narradas nos livros
do autor que se preocupou inclusive em criar um idioma com estrutura gramatical
e fonética própria, o Quenya.
Em Ordem Vermelha temos
também um mundo multirracial, mas bem menos complexo e não menos original. Se
houve uma inspiração na obra de Tolkien ela se limitou à criação da raça dos
anões e a ideia de coexistência de diferentes raças com diferentes visões de
mundo. Em todo o resto a criação de Castilho é originalíssima com a criação dos
kaorshs,
indivíduos “altivos e esguios, preparados
para transpor obstáculos e responsáveis por dar cor ao mundo”, mas que
passaram a ter as cores presas dentro de si; os gnolls, seres “silenciosos como a chuva, velozes como os
rios” que foram condenados a andar sobre as quatro patas e se tornaram
criaturas horrendas e brutais, reduzidos posteriormente a meros cães de guarda;
e por fim, dos sinfos, criaturas que nasciam das árvores e eram “leves como o pólen carregado pelo vento”
e “mensageiros da magia invisível”,
mas que tiveram seu tempo de vida bastante reduzido. São criaturas imaginadas
pelo autor e que possuem culturas próprias o que só enriquece o universo de
Untherak.
Alguns resenhistas ainda citam uma certa familiaridade do enredo
de Ordem Vermelha com a narrativa do
livro Mistborn, do escritor
norte-americano de fantasia e ficção científica Brandon Sanderson. Mas este eu
nunca li, então não emitirei opinião nem em acordo, nem em desacordo.
Quase
saídos de um RPG: Personagens e Movimento
Aelian Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier. |
Mas se Ordem Vermelha
é um livro de forte inspiração medieval que nos faz lembrar do universo
tolkieniano, por outro lado ele é também um livro que tem um pé na modernidade.
Castilho escreve uma trama que parece ter saído de um jogo de
RPG e, alternando entre "matizes cruas" e leves, trata em sua obra de diversos
temas marcantes: religião, escravidão, selvageria, multiplicidade racial,
corrupção, opressão, questões de gênero e cultura.
Ordem Vermelha é do tipo do livro de fantasia que vai além
dos elementos mágicos e sobrenaturais que caracterizam o gênero. Ele trata de
visões de mundo com a leveza de quem sabe que a realidade é composta de muitas
“cores” e de diferentes olhares.
A sensação de ler um RPG surgiu logo no início quando autor
descreve os movimentos extravagantes com os quais o personagem principal,
Aelian, manejava a sua espada. Ao longo da leitura essa sensação só aumenta
quando nos damos conta do quão cinematográfica é a narrativa, sobretudo, em seus
últimos capítulos.
Raazi Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier. |
Mesmo para mim, que não sou um gamer, bastava fechar os olhos para imaginar os cenários e os
personagens dentro de um grande jogo virtual. Além disso há muito movimento na
narrativa e cenas de fugas por telhados e construções que me fizeram lembrar de
parkour[2]. Quando se soma ao
seu estilo cinematográfico a narrativa se torna dinâmica e imaginá-la como um
jogo é algo muito fácil.
A construção
dos personagens é outra coisa fabulosa e que se harmoniza completamente com o
RPG. Felipe dá um destaque todo especial a descrição e composição
de cada raça e também dos personagens que figuram o elenco principal. Aparência, estilo de luta, personalidade, raízes culturais e
crenças, conhecimentos e habilidades, filosofia de mundo e de vida, tudo é
primorosamente destacado e descrito sem cometer excessos ou valer-se de textos
longuíssimos, dando uma naturalidade incrível à narração.
Cada personagem possui sua própria personalidade, muito própria
e demarcada. Aelian, o jovem
falcoeiro humano que desde criança trabalhava como escravo, é, sem dúvida, o
personagem mais destacado, mas ele divide seu protagonismo com muitos outros
tão importantes quanto ele na composição da trama: Aparição, Raazi, Yanisha,
Ziggy e Harun.
Aelian é impulsivo, mas inteligente. Está sempre fugindo do Poleiro (seu local de trabalho) pelos
telhados da cidadela e tem como fiel amigo um falcão que o ajuda em suas
aventuras e em vários momentos salva sua vida. É com ele que Aparição, um misterioso e habilidoso
rebelde, tem seu primeiro contato com a trama. Também será esse encontro com o
guerreiro que trajava uma capa vermelha (a cor proibida em Untherak), que
revolucionará não só a história de Aelian como de toda a Untherak.
General Proghon. Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier. |
As Kaorshs Raazi e Yanisha
formam a dupla mais destemida e corajosa da trama. Guerreiras tremendas e quase
suicidas, elas são destacadas também como duas pessoas extremamente ligadas à
cultura e às crenças quase extintas de seu povo.
O sinfo Ziggy é, dos
personagens, o mais intrigante. Ele parece inocente e infantil, mas, em muitos
momentos, pega-nos de surpresa com a profundidade de algumas das suas
colocações. É também um alguém de coração forte e valoroso, mas igualmente
gentil. Total oposto dos antagonistas: Una e Proghon, esse último, o principal
general da Deusa, uma criatura em forma de homem coberto de mácula e que
ostentava uma máscara de caveira feita de ouro. Ambos representam, junto com
seus subordinados, tudo o que há de mais cruel, autoritário, obscuro, corrupto
e opresso em Untherak.
Mas de todos os personagens, o anão Harun é o que mais guarda surpresas dentro da narrativa. Por isso
não falarei nada sobre ele nesta resenha.
Multitemático
A princípio Ordem Vermelha
tem uma narração arrastada, mas que gradualmente vai se tornando dinâmica e
revelando uma obra multitemática que alia ação, fantasia e denúncia, ou seja,
aos poucos o livro se revela tematicamente muito rico, ainda que muitos de seus
temas sejam trabalhados com sutileza e dentro dos limites de uma ficção de fantasia.
Na obra de
Felipe Castilho a temática central é, sem dúvida, a opressão imposta por um
governo teocrático, ditatorial e escravocrata e esse tema central é tratado de
forma crua e realista sem nenhum eufemismo.
Una Arte de autoria de Victor Hugo Sousa e Rodrigo Bastos Didier. |
O sistema social criado por Una sobrevive do trabalho forçado e
mal remunerado de centenas que vivem à mercê dos humores e brutalidades dos
Autoridades e sob o julgo do poder de uma deusa ferina. Um sistema opressor que
não só eliminava a liberdade e ceifava vidas, mas que tentava também suprimir e
destruir parte da identidade de cada povo escravizado. Desse último ponto
emergem os outros temas que orbitam entorno da temática central: a questão da religião nascida do mito e das
narrativas incessantemente reproduzidas; a abundância de culturas e visões de
mundo nascidas da multirracialidade e a imposição de uma crença sobre os
costumes, tradições e filosofias de outros grupos na tentativa de suprimi-las e
eliminá-las, mantendo um controle social maior sobre diferentes grupos étnicos
(etnocídio).
Ao detalhar a cultura e as visões de mundo de cada raça o livro
deixa evidente a riqueza cultural dos povos que compõem a população de
Untherak, mas, ao mesmo tempo, demonstra também como pelo domínio milenar de
Una esses aspectos culturais vão desaparecendo, se diluindo e sendo esquecidos.
Esses são temas trabalhados de modo mais leve, mas que
caracterizam uma narrativa que é mais do que pura ação e fantasia. Há uma mensagem nas entrelinhas que fala
muito da história humana de imposição cultural-religiosa, no qual a dominação
de um povo ou grupo sobre o outro é feita pelo medo, pela violência, pelo
cerceamento da liberdade e pela fé ou cultura imposta.
Por fim, outros dois temas explorados tangencialmente à
narrativa principal são o homossexualismo feminino e o vício em carvão (droga ilegal comercializada no
mercado negro de Untherak e que serve de alento aos miseráveis que padecem dos
horrores do sistema de governo de Una). De um lado Felipe trata com muita
leveza e naturalidade do tema das relações homoafetivas e do companheirismo
nestas relações, trazendo para trama duas personagens que formam um casal, e de
outro, faz uma alusão aos difíceis tempos modernos nos quais as pessoas escapam
da realidade através do uso de entorpecentes.
A
título de conclusão
Ordem Vermelha
não
foi um livro que me surpreendeu, porque venho aprendendo que no Brasil há
escritores de fantasia muito bons e que estão pouco a pouco conquistando seu
espaço: Ana Lúcia Merege, Eduardo Kasse, J. M. Beraldo, Eduardo Spohr, Gerson Lodi-Ribeiro e, agora,
Felipe Castilho. Cada qual com seu estilo, temáticas e referências, mas todos
excelentes escritores.
Castilho escreve uma narrativa instigante, criativa, que busca
ser original e também multitemática, sem, por outro lado, tornar-se uma sopa
confusa cheia de temas divergentes. Tudo se conecta harmoniosamente e tem seu
lugar, conduzindo, por fim, a um desfecho em aberto – como se deve esperar de
uma duologia. Mas trata-se de um desfecho épico, cinematográfico e instigante
que revela um breve deslumbre dos desdobramentos da narrativa e do que
acontecerá no livro seguinte. Um desfecho que atiça a curiosidade do leitor e
deixa-o ansioso pela continuação.
Enfim, do meu
ponto de vista, Ordem Vermelha é um
livro que busca de forma sutil, mas visível, integrar temas que constroem uma
narrativa para além da fantasia pura (de mundos meramente mágicos), ou da ação
pura (de guerras sem muito sentido), para falar de lutas que unem raças na
busca pela liberdade e pela verdade. Uma luta que não é só formada de baixas,
mas que busca igualmente derrubar símbolos de opressão. Foi essa multiplicidade
temática o ponto de que mais gostei na obra de Felipe Castilho.
A edição lida é da Editora
Intrínseca, do ano de 2017 e possui 448 páginas. Abaixo você pode conferir uma
prévia do livro disponível no Google Books além de um vídeo promocional da editora Intrínseca com um rápido bate papo com o autor e seus colaboradores.
Sobre
o autor
Paulista, Felipe Castilho é autor de livros de fantasia e
contos, estes últimos publicados quinzenalmente no site Quotidianos. É autor da
obra O legado folclórico, que une
mitologia brasileira com o mundo dos videogames. Pelo quadrinho Savana de Pedra foi indicado ao Prêmio
Jabuti.
Preview do Google Books
[1]Comic
Con Experience (também conhecida apenas como CCXP) é um evento brasileiro de
cultura pop nos moldes da San Diego Comic-Con cobrindo as principais áreas
dessa indústria como: jogos, quadrinhos, filmes e TV. Realizado pela primeira
vez em dezembro de 2014 pelas equipes do site Omelete, da Piziitoys e pela
agência Chiaroscuro Studios, é considerado o maior evento nerd já organizado no
país e a terceira maior Comic Con do mundo em público (em 2016). (Wikipédia)
[2]Atividade
recreativa e esportiva, praticada em áreas urbanas ou rurais, que consiste em
deslocar-se o mais rápida e eficientemente de um ponto a outro usando
habilidades atléticas para superar os obstáculos (Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa).
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