Por Eric Silva
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
(O Jogo do Anjo, Carlos Ruiz Zafón)
Ano passado
lancei no Conhecer Tudo um especial sobre o escritor barcelonês Carlos Ruiz Zafón, onde pretendo
ler e resenhar todos os livros publicados pelo autor. Alguns meses após ter
relido A Sombra do Vento volto a série do Cementerio de los libros olvidados (Cemitério dos Livros
Esquecidos) com a leitura de seu segundo volume, O Jogo do Anjo.
Um livro de
forte atmosfera gótica e carregado de mistérios, O Jogo do Anjo explora com mais intensidade o talento de Zafón para
escrever sobre o sobrenatural sem deixar de lado o misterioso e temas como a
loucura e a solidão. Um livro muito bem escrito no mais autêntico estilo do
escritor espanhol.
Sinopse
Em O Jogo do Anjo,
voltamos à Barcelona, nos anos de 1920, para conhecer David Martín, um jovem e
talentoso escritor perseguido por desgraças desde a infância. Com uma doença
terminal e vendendo barato o seu talento para editores oportunistas, David vive
o seu pior momento e nenhuma perspectiva de futuro. É nesse momento que surge
Andreas Corelli, um misterioso editor estrangeiro que trazia consigo uma
proposta irrecusável: o restabelecimento da saúde de David e uma pequena
fortuna em troca de escrever um livro que influenciaria milhões de pessoas.
Contudo, a medida com que prossegue o trabalho com Corelli, David descobre-se
enredado a segredos perturbadores e a um rastro de sangue e mortes que vai
surgindo em seu caminho..
Resenha
O enredo
![]() |
Barcelona, les Rambles 1920. |
David, assim como a maioria dos personagens de Zafón, teve uma
infância solitária e conturbada. Seu pai era um ex-combatente que retornou da
guerra miserável e desiludido, e que logo depois foi abandonado pela esposa que
nunca mais quis saber nem dele nem do único filho. Um homem truculento e
envergonhado com sua condição analfabeta, que nunca conseguiu reconhecer as
potencialidades do filho e não se contentava com o seu interesse pelos livros,
atividade que considerava uma perda de tempo. O pouco afeto que o pequeno David
encontraria seria a do livreiro Sempere (avô de Daniel de A Sombra do Vento). O velho
Sempere sempre lhe presenteava com um novo livro e anos mais tarde o levaria
para conhecer a colossal e secreta biblioteca de livros esquecidos.
Sozinho no mundo após a morte repentina do pai, David encontra
apoio e incentivo na caridade de Pedro Vidal, milionário excêntrico e escritor
boêmio que o ajuda na fase mais difícil de sua vida. Através de Vidal David
conseguiria um trabalho no jornal La Voz
de La Industria e conheceria Cristina, a filha do motorista de seu
benfeitor.
No La Voz o rapaz se
torna jornalista e depois escritor de novelas policiais que publicava ali mesmo
no periódico. Após conseguir alguma fama com as histórias que escrevia para o
jornal e novamente com a ajuda de Vidal, David consegue dois editores, Barrido
e Escobillas, para quem passa a publicar com exclusividade.
O jovem escritor abandona o trabalho no La Voz e com o dinheiro do acordo editorial aluga um antigo casarão
com fama de assombrado, onde passa a viver enclausurado em seu escritório,
dedicando-se a cumprir os prazos ridículos previstos em seu contrato.
A rotina incessante de trabalho, o desejo de escrever uma obra
que levasse seu nome e o pouco cuidado com a própria saúde levam o escritor a
uma situação desesperadora. Mas é quando tudo a sua volta parecia ruir que David
recebe uma tentadora proposta que mudaria o seu destino.
Em troca de uma pequena fortuna, Andreas Corelli, um misterioso
e sombrio editor francês, propõe a David escrever um livro que mudaria o mundo.
Mesmo relutante David aceita aquilo que parecia uma tarefa impossível, mas que
na verdade o enreda em uma ciranda de acontecimentos, na qual estaria sempre a
ponto de resvalar em um poço negro e sem fundo.
Ao longo da narrativa os mistérios entrono de Andreas Corelli se
tornam cada vez mais intrincados e sombrios. Desconfiado dos reais intensões de
Corelli David decide investigar a nebulosa vida do editor, enquanto um rastro
de sangue vai sendo deixado pelo caminho.
Personagens importantes
![]() |
Universidade de Barcelona. 1920-1930. |
O desesperançado David é bem mais velho
e maduro do que Daniel, protagonista de A
Sombra do Vento, e por isso, com ele, a narrativa perde o ar de juventude
que Daniel imprime no primeiro livro. Os dissabores de sua vida difícil
tornaram David irônico e sarcástico, além de sínico, e essas características se
tornam a armadura de defesa do personagem. Também desapaixonado e desiludido
com o mundo, o protagonista só consegue se demonstrar afetuoso com os Sempere e
com Cristina, sua paixão mal resolvida. Em muitos momentos da narrativa temos
dúvidas sobre a sanidade do personagem e de até onde os fatos contados por ele
são de fato reais ou produto de uma mente convalescente.
Em contraste a David, temos a
determinada, solícita e igualmente irônica Isabella a personagem mais jovem da
trama que se torna assistente do protagonista e futuramente a mãe de Daniel
Sempere. De tordo os personagens ela é a
mais viva e vibrante e por isso a identificação com ela é imediata. O que
contrasta bastante também com altivez e inconstância de Cristina e com a
timidez e continência de Sempere Filho. Em relação a este último, o futuro pai
de Daniel, possui na trama presença bem mais apagada na narrativa do que no
primeiro livro. O Jogo do Anjo nos
mostra um Sempere mais novo, mas desde já trabalhador, cauteloso, sério e até
melancólico.
A grande surpresa é o avô de Daniel,
denominado apenas como Sr. Sempere. Este, ao contrário do filho, é muito mais
espontâneo e vivo. Um homem bonachão e muito afável e que preenche a carência
paterna e afetiva de David, defendendo-o até o fim.
Mas
de todos os personagens o mais inquietante é Corelli. Figurando
como um personagem central da narrativa e o principal elo que liga todos os
fatos ocorridos com David, o editor francês é um homem muito bem-vestido que
traz na lapela de seu paletó a figura de um anjo. Sinistro e de presença
sombria, Corelli parece na trama alguém revestido de sobrenaturalidade e é, dos
personagens, o mais bem construído, com vida e existência quase própria. Sarcástico e crítico, Corelli ainda possui
uma visão muito fria e clínica da vida, do homem e da humanidade o que revela nele
também uma personalidade que beira a racionalidade fria e calculista dos
psicopatas.
Mais gótico e focado no sobrenatural
O
Jogo do Anjo é sem dúvidas um bom livro e uma obra genuína ao estilo já
consagrado do escritor espanhol, mas dentro do conjunto da série Cemitério dos Livros Esquecidos ele se
difere em vários aspectos em relação A
Sombra do Vento, livro que abre a coleção.
A história de O Jogo do Anjo se passa 30 anos antes dos acontecimentos narrados
em A Sombra do Vento, numa Barcelona
diferente daquela vivida por Daniel e anos antes de estourar a Guerra Civil Espanhola que
culminaria com a instauração do regime franquista. Por conta disso, a Barcelona
descrita por Zafón em O Jogo do Anjo
dista bastante em relação ao primeiro livro.
O Jogo do Anjo é essencialmente mais gótico do que A Sombra do Vento e flerta muito mais
com o sobrenatural. A loucura e o desalento são bem mais fortes na
vida de seus personagens e por isso contrasta com a melancolia e o sentimento
de perda que é bem mais forte no séquito que povoa o primeiro livro. Por essas
características que eu diria que O Jogo
do Anjo seria um livro mais “noturno”,
mais sombrio. Acho que devido a isso que, nesse livro, Barcelona se reveste de
uma áurea bem mais soturna e pesada do que no primeiro.
Se,
em A Sombra do Vento, Barcelona é ao
mesmo tempo misteriosa e bela, em O Jogo
do Anjo ela se carrega com o peso de sua existência secular e demonstra-se
ainda mais hostil e sombria, gótica e antiga, uma cidade cheia de seus segredos
e de dramas silenciosos.
Outra
distinção está na organização da obra. Muito
diferente de A Sombra do Vento, onde
o livro era dividido em anos que acompanham o crescimento de Daniel e o
desenvolvimento desse personagem, em O
Jogo do Anjo, Zafón divide a trama em três grandes atos como se
assistíssemos a uma tragédia gótica.
No primeiro deles, A Cidade dos Malditos, conhecemos a
fundo a história e a personalidade do narrador enquanto ele nos conta sua
infância conturbada ao lado de um pai violento e intransigente, sua vida
regrada e sem brilho de jornalista de pouco sucesso, a ascensão de sua carreira
como escritor de histórias policiais, sua paixão desencontrada por Cristina e
nos apresenta aos principais personagens que o orbitarão ao longo de toda a
narrativa. Mas é nesse ato também que o mais tenebroso dos personagens do livro
tem suas primeiras aparições e acompanhamos como gradualmente a vida e a saúde
de David vão se deteriorando.
A partir do segundo ato, Lux Aeterna, também o mais longo, a
trama vai ganhando corpo e se complexifica. Novos personagens emergem e a
existência de uma teia de mistérios que envolvem Corelli e seu último escritor
vão se tornando mais evidentes, porém cada vez mais sombrios e difíceis de
deduzir.
Ainda assim, de todos os
atos, o último e que leva o mesmo nome da obra, é de longe o mais intenso. Nele
O Jogo
do Anjo ganha gradativamente mais ritmo e, até alcançar os últimos
capítulos, o desenvolvimento da trama ganha celeridade.
Zafón preserva nesse livro o que há de melhor em sua
escrita: o magnetismo e a originalidade que marcadamente brinca com as palavras
e faz construções de grande beleza estética.
A escrita de Zafón é o que
acho de mais precioso no conjunto de sua obra. Ela é muito bem estruturada e
flui muito bem sem nunca ser cansativa. Por vezes ela parece se aproximar do
poético sem deixar de ser gótica, mas sempre segue um fluxo contínuo e
compassado que me embala e me faz esquecer do que acontece no meu entorno.
Mesmo quando o narrador é irônico e desapaixonado como David, ela se sobressai
como algo intrínseco e muito próprio do escritor. Ainda que se mescle com a
personalidade individual de cada narrador, em cada livro, a marca do autor é
evidente, porque Zafón domina a arte de
escrever bem.
Em conclusão
![]() |
Foto: Eric Silva. Fevereiro de 2018. |
A solidão, a descrença, a
ironia e a quase insanidade de David influencia o tom da obra, são os reflexos
de sua personalidade e os principais sentimentos presentes na obra. Se A Sombra do Vento é povoado pelo
sentimento da solidão e da perda, O Jogo do Anjo tem muito
disso e mais a acidez da ironia de David tornando
ainda mais rica a escrita originalíssima de Zafón.
Não gostei mais de O Jogo do Anjo porque havia lido A Sombra do Vento antes. Os estilos, como já disse, diferem um pouco e me deixaram
confuso em relação ao que esperar dos próximos volumes: O prisioneiro do Céu e O
Labirinto do Espíritos. Mas algo que me chamou a atenção é como os
personagens de O Jogo do Anjo,
sobretudo Corelli, parecem tão vivos, tão reais e quase palpáveis. Nunca havia ficado ansioso e desconfortável
com um personagem como fiquei a cada nova aparição do editor francês. Isso
mostra como a escrita do barcelonês evoluiu de um livro para o outro. Por isso
fico imaginando se encontrarei um Zafón ainda mais maduro nos dois livros que
se seguirão.
Contudo, mesmo
os bons livros possuem pontos fracos. Em O
Jogo do Anjo, o principal deles é a desproporção de velocidade entre a
maior parte da narrativa e o seu desfecho. Em todo o Primeiro e Segundo Ato encontramos um desenvolvimento despreocupado com o tempo e
dedicado a contar com calma e riqueza de detalhes os lances da narrativa.
Porém, na segunda metade do Terceiro Ato
a história ganha uma velocidade muito grande que se apodera do leitor. Por
vezes somos induzidos a ler cada vez mais rápido como se quiséssemos acompanhar
a celeridade do desenvolvimento do desfecho. A trama só vai retomar seu ritmo
normal nas últimas páginas quando são descritos os destinos de cada personagem e
o grande mistério da trama é por fim (e acredito eu, parcialmente) revelado.
Enfim, o autor
repete a fórmula de uma história completa, ou seja, de enredo com desfecho
fechado, o que aumenta as expectativas em relação ao volume seguinte da série,
mas de um jeito diferente. A expectativa não é com o que acontecerá em seguir,
mas como a história dos dois primeiros livros vão se ligar aos demais. Estou ansioso
para saber como tudo se dará, mas, sinceramente, estou mais ansioso é por
reencontrar Daniel e Firmino.
A edição lida é da Editora
Suma de Letras, do ano de 2008 e possui 410 páginas. Abaixo você pode conferir
uma prévia da última edição do livro disponível no Google Books.
Preview do Google Books
Postagens Relacionadas
Resenhas