domingo, 17 de fevereiro de 2019

[Novos Escritores] Cerberus – a ascensão da trindade – Jefferson Lessa – Resenha

Por Eric Silva
17 de fevereiro de 2019, ano da Itália

“Pois não há nada de escondido que não venha a ser revelado, e não existe nada de oculto que não venha a ser conhecido".
(Lucas 8:17)

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Nos últimos tempos, navegando pelas redes sociais, tenho conhecido muitos autores novos, com poucos anos de carreira, estreantes, além de autores independentes que lutam pelo seu espaço no tão competitivo e fechado mercado editorial. Esses encontros casuais acabaram por me lembrar de muito outros que possuo na estante e que nunca cheguei a ler. No final, isso me deu a ideia de uma nova tag: o “Novos Escritores”. A resenha de hoje é sobre uma dessas produções independentes muito bem-acabadas e de alta qualidade narrativa.

O mundo está ameaçado e tudo o que conhecemos pode deixar de existir abrindo espaço para o caos completo e indescritível. É nesse momento que emerge duas forças antagônicas que como o dia e a noite brigarão para decidir o futuro da humanidade. Com muita ação e num caldeirão de referências Cerberus – a ascensão da trindade, primeiro livro do escritor brasileiro Jefferson Lessa, traz uma corrida alucinante para salvar o mundo de forças desconhecidas e ocultas que nunca deveriam ter sido incomodadas.

Confira a resenha.

Sinopse do enredo

Enzo Geovanni é um grande ocultista conhecido no submundo das sociedades secretas tanto por suas proezas e poder como por seu caráter prepotente e oportunista. Há muito tempo ele havia abandonado os idealismos e as grandes paixões da juventude e se tornado uma pessoa orgulhosa que se utilizava de todos os artifícios e organizações para aumentar seu próprio poder. Contudo, uma explosão nuclear sobre o Castelo Houska, na República Checa, abre as portas para uma grande tragédia que ameaça o mundo humano e todos os cinco planos que formam o multiverso. Mais do que isso, com o caos provocado pela explosão emerge também uma misteriosa organização que subjuga todas outras sociedades secretas: o Punho de Ferro.

Ciente da grande ameaça que o rompimento do tecido da realidade representa para a humanidade e também para seus interesses, Enzo resolve agir e reunir um pequeno grupo que o ajude a combater o Punho de Ferro e restabelecer o frágil equilíbrio que mantém separados os vários planos.

O mundo mergulha no caos sendo invadido por demônios e outras criaturas vindas dos cinco planos, e em uma corrida alucinada pelo mundo e contra o tempo, o velho ocultista atravessa o mundo e segue em direção à Inglaterra, onde, reúne duas figuras singulares que com ele lutariam para levar a acabo o plano de restaurar o tecido da realidade: o demonologista tatuado Atila, que aprisiona demônios em sua própria pele, e a ciborgue Elise, que detentora de uma avançada tecnologia alienígena se predispõe a salvar o mundo com a ajuda técnica de seu inteligente cachorro de estimação, Luddy.

Elise, Atila e Enzo então formam a Cerberus que enfrenta a difícil tarefa de concertar o equilíbrio universal nos cinco cantos do planeta enquanto luta contra a poderosa Punho de Ferro e o mundo que conhecemos começa a ruir.

Sobre o autor

Jefferson Lessa nasceu em Londrina e desde cedo é apaixonado por comics, animes, livros de fantasia, RPG, videogames, card games e rock 'n' roll.

Cresceu colecionando em sua cabeça tudo o que pôde sobre mundos fantásticos que não obedecem às regras de nossa boa e velha Terra, sistemas para conjuração de magia, batalhas épicas capazes de decidir o futuro de todos, artefatos detentores de poderes incomensuráveis e dragões deitados sobre pilhas de tesouros deixadas por aventureiros abatidos.

Resenha

Cerberusa ascensão da trindade é o primeiro volume de uma série independente idealizada pelo escritor brasileiro Jefferson Lessa. Um romance fantástico e de aventura que trabalha o tema do ocultismo com criatividade e bastante originalidade, ainda que em alguns momentos apresente problemas.

É bastante curioso como Lessa brinca com a literatura de terror lovecraftiana, com referências a lugares tidos como mal-assombrados como Castelo Houska e Amityville, e com a história de várias sociedades secretas e ocultistas conhecidas, para contar uma história moderna e cheia de aventuras, cenas de ação e luta contra entidades sobrenaturais.

Esse mix torna Cerberus um livro ambicioso. As palavras que melhor definem o trabalho de Lessa são ambição, originalidade e criatividade. Não há muitos lugares comuns nessa narrativa que possui personagens bem singulares e uma proposta, em meu ponto de vista, ainda pouco explorada na literatura brasileira.

Cerberus é uma fusão de muitas referências, assim os principais diálogos que posso estabelecer com outras obras são da esfera da literatura estrangeira, do cinema e principalmente com a literatura ocultista.

Lessa pega emprestado a ideia de planos astrais separados por um "tecido da realidade" para a construção de sua trama, um conceito recorrentemente debatido por diversas seitas e que foi amplamente explorado também na obra de Eduardo Spohr, As Batalhas do Apocalipse. Trabalha também com ideias ufológicas e com a cultura dos exorcismos de demônios, e da união dessas ideias tece uma história de aventura.

As principais referências diretas são ao cinema que imortalizou o caso real da casa de Amityville e à literatura de Lovecraft. Mas as principais fontes de inspiração de Lessa são sem dúvidas as histórias das muitas seitas ocultistas que existem a séculos espalhadas pelo mundo e que até os dias de hoje alimentam centenas de teorias de conspiração. Organizações como o Illuminati, Skull and Bones e a Mão Negra são citadas no livro ou são base para a construção de sua narrativa.

Enfim, Lessa nos pega pela mão e nos conduz por uma viagem ao coração do ocultismo, das teorias de conspiração e de tudo que é sobrenatural e que já foi debatido ou especulado por muitos ao longo de anos.

Com uma pesquisa cuidadosa, ele faz a construção do enredo e dos elementos presentes na trama buscando informar e ao mesmo tempo construir sua verossimilhança. No entanto, em algumas passagens esse cuidado levou a algumas descrições excessivas que visavam explicar coisas pouco relevantes como a autoria de uma música clássica ou a composição de um dos coquetéis mais caros do mundo, o Magie Noir. São descrições que poderiam ter sido colocadas em notas de rodapé ou deixadas à curiosidade de quem lê, evitando sobrecarregar a narrativa com elementos secundários. Porém, a medida que o enredo segue sentimos a evolução da escrita e o texto vai se tornando menos denso e mais dinâmico.

Não obstante, começar a leitura de Cerberus pode ser um desafio para quem lê e, a depender do grau de exigência do leitor, o livro pode ser abandonado prematuramente. Vou explicar o porquê, mas adianto que aqui exponho apenas a minha opinião, meu ponto de vista, e não necessariamente todos concordarão comigo, ainda mais que leitores são diferentes, com gostos e manias peculiares e distintas.

Em toda a primeira parte do livro Lessa é apressado na construção e apresentação da problemática principal da história. O enredo já começa correndo e, por isso, não tem um desenvolvimento instigante.

De imediato somos apresentados a problemática de que o tecido da realidade foi danificado pela explosão de uma bomba nuclear lançada sobre a capital checa, Praga, e nosso principal protagonista rapidamente percebe tudo o que está acontecendo e, em poucos minutos conversando com um antigo aliado, consegue até mesmo precisar prováveis culpados do incidente. Isso tudo se dá no primeiro capítulo que conta com pouco menos de 10 páginas!

Depois de dois capítulos curtos que nos dão uma melhor dimensão de quem é Enzo Giovanni e nos dá amplas demonstrações da riqueza que o mesmo ostenta, além de sua personalidade autoritária e irritante, a tríade de personagens entorno do qual girará todos os acontecimentos (que até então não se conheciam) se reúne de uma forma inusitada (em um fast food às moscas, gerenciado por um demônio e aberto às três horas da madrugada enquanto Londres vive um caos com pessoas fugindo em debandada). Ali, tudo se arranja facilmente, com direito a uma pequena demonstração de força dos novos integrantes que dão cabo de um demônio que possuía o corpo de um homem incrivelmente obeso.

Resumindo a ópera: achei que o começo é rápido demais e não há um preâmbulo, um desenvolvimento inicial dos personagens antes que as coisas se compliquem. Há uma certa pressa em iniciar a trama principal, o que me incomodou.

Mas até então só havia lido 11% do livro e não desisto de obra nenhuma antes dos 50%, porque podemos sempre ser surpreendidos por uma evolução inesperada da história. Isso acontece nesse livro que em alguns momentos têm o desenvolvimento acelerado e em outros toma uma cadência mais natural e bem desenvolvida. Mas confesso que, nesse ponto inicial da obra, fiquei com uma certa dúvida se esse livro realmente seria bom, porque a forma como o trio de ocultistas se encontram e se organizam para dar solução ao problema central não teve uma boa construção e pareceu um tanto cômico demais e improvisado. Entretanto, Cerberus gradativamente vai evoluindo e a escrita e o desenvolvimento se tornando mais refinada. Com um pouco de paciência você se identifica com os personagens e com a trama e logo se sente envolvido.

Como disse essa é a mainha opinião, não necessariamente os leitores acharão o mesmo. Há pessoas que gostam de livros mais dinâmicos e que vão direto ao ponto, ou melhor, direto à ação. A questão é que prefiro narrativas com desenvolvimento mais equilibrado (nem tão rápido nem lento demais).

Um contraponto que posso citar é Os Miseráveis, de Victor Hugo, clássico da literatura francesa que eu adoro. Os Miseráveis têm um começo com desenvolvimento muito arrastado e irritante, isso, porém, não tirou a qualidade do conjunto e o mesmo se dá com Cerberus, cujo autor está buscando firmar e afinar o seu estilo. Nesse sentido, nota-se, por exemplo, que aos poucos, ao longo do livro, o autor também vai refinando o seu humor. Isso é um sinal de que o talento e o estilo de Lessa vão maturando e ainda possui muitos potenciais a serem explorados.

A tríade e o desfecho

O título do livro faz referência ao Cérbero (em grego antigo: Κέρβερος), entidade da mitologia grega que possuía a forma de um monstruoso cão de três cabeças e guardava a entrada do mundo inferior, o reino subterrâneo dos mortos[1]. Contudo, na obra de Lessa, o Cerberus é também a organização improvisada por Enzo e composto por ele, Atila e Elise. Dessa forma, cada um dos membros representaria uma das cabeças do cachorro feroz que guarda a entrada do reino de Hades.

Enzo Giovanni é o personagem mais velho (105 anos!) e principal protagonista da obra. Ele é um homem ranzinza, orgulhoso, arrogante e autoritário, mas com profundos conhecimentos místicos. Trata-se de um personagem de temperamento forte e difícil.

Inicialmente foi difícil para mim me afeiçoar a Enzo e em muitos momentos ele passa consideravelmente dos limites com seu ego narcisista e despótico. Contudo, a aventura que ele vive ao lado dos dois outros protagonistas se revela ao longo da trama como uma forma de redenção dos seus pecados e, no final, vemos um Enzo um tanto mudado.

Atila representa um meio termo entre uma pessoa equilibrada e um perigo eminente. Ele é capaz de exorcizar demônios poderosos prendendo-os em sua própria pele como se fossem tatuagens. Contudo essa habilidade exige dele uma ininterrupta luta para manter as perigosas bestas sob o controle, mas é justamente quando tudo dá errado que o personagem ganha maior destaque no romance. Ele é caracterizado como um homem com uma aparência bastante alternativa, um mix de viking moderno com punk:

Aproximou-se do balcão e, para sua infelicidade, só havia um jovem debruçado sobre o móvel. Era coberto de tatuagens, tinha o cabelo bagunçado cobrindo os olhos castanhos e uma barba negra que se dividia em duas tranças; além disso, era possível contar quatro brincos em cada uma de suas orelhas. Não era robusto, mas, ainda assim, parecia ser forte, pois, mesmo relaxado, não havia espaço para flacidez nos músculos de seus braços.

Elise, por sua vez é a otimista do grupo. Até certo ponto ingênua, Elise é uma ciborgue com tecnologia alienígena que substituiu grande parte do seu corpo por poderosas próteses mecânicas. Em muitos momentos seu comportamento soa infantil o que contrasta bastante com seu corpo atlético e robótico, mas mais do que um ciborgue rápido e poderoso ela é uma garota sincera, amorosa e que tem um código moral muito forte, se recusando a tirar a vida de seus inimigos.

Elise é bastante curiosa e procura ver as coisas de um ponto de vista mais leve, por isso o personagem é também o ponto de equilíbrio da narrativa, colocando-se entre dois protagonistas masculinos de personalidades fortes e, até certo ponto, agressivas.

Enfim, o que temos aí é uma tríade (trindade, como sugere o subtítulo) muito atípica e, por isso, bastante original. Em certos momentos, principalmente no começo do livro, tive certa relutância de aceitá-los, mas gradativamente eles crescem na história e vão se tornando mais criveis e realistas.

Por fim, Cerberus – a ascensão da trindade é um livro que exige um pouco de boa vontade no começo por parte do leitor, mas no final não tem uma leitura cansativa, ainda mais que a obra está dividida em 49 pequenos capítulos muito dinâmicos e cheio de aventuras e cenários diferentes. É um livro original e criativo, com uma pesquisa excepcional que foi feita para a montagem do enredo. Esses elementos positivos amenizam seus problemas que, no entanto, não são nem um pouco incomuns em uma obra independente e de estreia.

O desfecho agrada e fica em aberto, porém toda a história é contada (começo meio e fim) sugerindo que o livro de continuação terá uma trama completamente nova e até, quem sabe, independente do primeiro livro. Esperemos para saber quais aventuras aguardam a Cerberus no futuro.




[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A9rbero

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