Por Eric Silva
21 de agosto de 2020
Citação
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Confira a resenha de O
Palácio da Meia-noite (El Palacio de
la Medianoche), mais uma obra do escritor barcelonês resenhado para o Especial Zafón.
Sinopse
do enredo
Maio de 1916, Calcutá, Índia.
Acossado por um assassino
implacável e sobre-humano, o tenente do Exército Britânico, Peake, corta a
noite úmida e escura da cidade indiana carregando consigo uma carga preciosa:
dois bebês recém-arrancados das unhas de seu perseguidor – o diabólico Jawahal.
Em clara desvantagem em
relação a seus adversários, o tenente percorre as ruelas da cidade negra, como era chamada a zona
norte de Calcutá, até alcançar o velho casarão bengali onde vivia Argami Bosé,
a última anciã da família Bosé e avó das duas crianças. Era preciso
entregar-lhe os gêmeos, avisar-lhe da morte de seus pais e do perigo que as
crianças e também ela corriam, o que ele felizmente consegue fazer antes de se
entregar ao seu destino certo enquanto tentaria, por fim, despistar seu
poderoso rival.
Sozinha com duas crianças
pequenas e sabendo dos riscos que corriam, a velha matriarca não tem tempo para
chorar a perda de sua única filha, mãe dos gêmeos, ou de seu genro, e resolve
partir o quanto antes de Calcutá. No entanto, sabendo do perigo e das
dificuldades de manter os irmãos juntos a ela, Argami resolve deixar para trás
uma das crianças, entregando o menino aos cuidados de um velho amigo de seu
falecido esposo, o inglês Thomas Carter, administrador do orfanato St
Patrick’s, onde a identidade da criança se matéria incógnita, e partiu, levando
consigo a menina, ainda que a estratagema não fosse o suficiente para apagar
todos os rastros das duas crianças.
Dezesseis anos se passam e
vivendo como órfão, Benjamin (Ben) está próximo de completar ele também seus 16
anos, idade na qual terá que deixar o orfanato com seus amigos mais próximos:
Isobel, Roshan, Siraj, Michael, Seth e Ian. Juntos eles haviam formado, anos
antes, um clube secreto, a Chowbar Society, cujas
reuniões aconteciam à meia-noite em um velho e decadente palacete abandonado e
por eles apelidados de “o Palácio da Meia-noite”, em alusão ao horário das
reuniões. Muito unidos, ali, os jovens juraram ajudar-se mutuamente, garantindo
a ajuda, o apoio e a proteção incondicional um dos outros, além de
compartilharem entre si os conhecimentos que possuíssem.
No entanto, com a proximidade
do décimo sexto aniversário de ingresso de Bem ao orfanato, a Chowbar Society se prepara para ser desfeita e ter suas últimas reuniões
antes que Ian embarque para a Inglaterra, onde pretende estudar medicina, e que
os demais tomem cada um seu próprio rumo na vida incerta que os esperava fora
dos muros de St Patrick’s.
Contudo, após conhecerem a
delicada e inteligente Sheere, as coisas começam a mudar rapidamente e eventos
estranhos começam a acontecer no velho orfanato, fazendo emergir os segredos de
um passado de dor e violência e prenunciando o retorno de um antigo inimigo
feito de maldade, fúria e fogo.
Resenha
De todos os livros que já li de Zafón para o projeto
do especial que leva seu nome, O Palácio da Meia-noite foi a obra que
menos me cativou, que menos me envolveu em sua leitura e em seus mistérios tão
infantis (talvez tão infantis quanto os presentes em O Príncipe da Névoa, mas aquele
lá me agradou bem mais). Todavia é natural que isso aconteça com qualquer
leitor fã de um dado escritor, e eu não me encontre isento disso, ainda que
goste muito do autor, de sua escrita e da qualidade de suas narrativas. Também
foi seu livro mais famoso, A Sombra do Vento, a inspiração para o projeto principal
do nosso blog, a Campanha
Anual de Literatura (CALCT), que já teve três edições desde 2016,
mas infelizmente foi interrompido em 2019, no começo de sua quarta edição
adiada para 2021. Ainda assim, gostar de um autor, não significa gostar de toda
a sua obra. Abdiquemos então dos fanatismos sempre desnecessários, prejudiciais
e que nada agregam, mas que, no entanto, costumam dividir e criar desarmonia.
Mas voltando ao texto….
Há pouco mais de um mês (contando a data em que redijo a
primeira versão desta resenha) entrei em contato com O Príncipe da Névoa, a primeira obra juvenil do autor
barcelonês. Apesar de considerar esta obra de qualidade abaixo da obra mais
madura do autor, teci vários elogios na resenha que escrevi sobre o livro,
sobretudo porque o autor conseguiu criar personagens maduros e um desfecho um
tanto incomum ao gênero; por fazer referências históricas que fizeram de um dos
personagens juvenis um convocado à segunda grande guerra (ainda que o tema seja
tratado com leveza) e, por fim, por optar por um terror não muito infantil
(ainda que o seja) e que agora me parece ainda mais familiar com o estilo de
Stephen King, sem, no entanto, ser propriamente similar ou copiado.
O que se pode julgar das minhas impressões sobre O Príncipe da Névoa, antecessor de O Palácio da Meia-noite, é que o livro de Zafón foi para mim
agradável e estimulante, mas não está entre as grandes obras que entraram para
o seleto grupo de meus livros preferidos, onde tem lugar cativo o já citado A Sombra do Vento, e obras de outros atores, a exemplo de A Catedral do Mar, do também espanhol Ildelfonso Falcones, Admirável Mundo Novo de Huxley, Os Miseráveis, do francês Victor Hugo, As Mil e Uma Noites, principal obra da
literária árabe, e, por fim, no universo literário nacional, O Caçador, de Ana Lúcia
Merege, Capitães da Areia, de Jorge
Amado, e Meu Pé de Laranja-lima, obra
infantojuvenil consagrada de José Mauro de Vasconcelos. O Palácio da Meia-noite, por seu turno, fica ainda mais distante
deste grupo de meus favoritos.
Como se vê, meu gosto é bem eclético, indo do clássico ao
infantojuvenil, mas em termos de gênero temático tende sobretudo para o drama.
Mas isso não me fez gostar de O Palácio
da Meia-noite, que me agradou bem menos do que seu antecessor, sobretudo
pela forma como sua narrativa foi construída e conduzida. O seu enredo em si
não me atraiu e a verdade é que achei a simplicidade de O Príncipe da Névoa mais atraente do que o desenvolvimento da
narrativa ambientada entre ruínas, palácios e ruas empoeiradas de uma Calcutá
escaldante e ainda sob domínio britânico (e aqui vejo agora algumas
similaridades com os cenários decadentes da Barcelona franquista onde se
ambienta A Sombra do Vento).
![]() |
Calcutá em 1945. Wikimedia Commons. |
As descrições que ele faz de Calcutá lembram de certa forma o
que Zafón faria mais tarde em A Sombra do
Vento ao construir a atmosfera melancólica e tensa da Barcelona franquista
dos anos de 1960. Com parte da minucia que é característica do autor, ele
descreve as divisões da cidade, seus guetos e áreas de maior presença
colonialista, mas, provavelmente por conta de seu público-alvo ou da pouca
maturidade de escritor em começo de carreira, não dá ao romance o peso criativo
e a vivacidade narrativa que fez com que Barcelona se despisse
ante os olhos de seus leitores tal como ela era na década de 60. E suspeito que
falar sobre terras estrangeiras tenha sido também motivo para a menor força
descritiva de seu livro juvenil. Ainda
que Calcutá se torne visível e compreensível em O Palácio da Meia-noite, não consegui me sentir na Índia, tal
como me senti caminhar à noite pelas ramblas
barcelonesas com suas luzes vaporosas na companhia soturna de Daniel e Fermín
em busca do paradeiro de Carax.
Talvez meu desalento com O
Palácio da Meia-noite tenha sido efeito da falta de algumas características
e marcas culturais das terras indianas que povoam o imaginário e senso comum
ocidental, mas que facilmente nos remeteriam àquelas paragens, a exemplo dos
desfiles de turbantes e saris
coloridos, vacas “pastando” tranquilamente pelas ruas, mercados sortidos de
especiarias multicores, brâmanes eremitas por toda parte e encantadores de
serpentes com seus cestos e najas (caso queiramos ser ainda mais clichês). Pela pouca exigência que o gênero juvenil
impõe, Zafón faz muito em suas descrições, mas não o faz com a vivacidade com a
qual nos acostumamos em sua série mais famosa, (mas talvez eu esteja querendo demais).
![]() |
Festival das Cores (Holi), Índia. Murtaza Ali/Pixabay. |
Por outro lado, Zafón consegue evidenciar na trama um pouco do
domínio cultural e político britânico sobre a cidade, o que se torna evidente
nas muitas referências aos britânicos e nos nomes ocidentais de alguns dos
integrantes da Chowbar Society, não esquecendo
das nacionalidades e posições sociais de dois dos personagens centrais da
trama, o tenente Peake e o administrador do orfanato, Thomas Carter, ambos
ingleses de origem.
O enredo
Em relação ao enredo, Zafón tece uma narrativa que não é tão gótica (seu principal estilo) quanto é fantasmagórica
e fantástica (o gênero), e que ele decide narrar sob dois focos
narrativos. O primeiro mais poético e saudoso feito pelos olhos do mais frágil
dos órfãos, Ian, que fora testemunha ocular de todos (ou quase todos) os fatos
narrados, e o outro foco – predominante na obra – feito em terceira pessoa por
um narrador onisciente e não-personagem.
A história dos jovens órfãos indianos gira entorno de lugares
arruinados e de um espírito maligno com domínio sobre o fogo. Mortes e
acidentes complementam o cenário que se inspira na velha fórmula de um grupo de
jovens extremamente inteligentes que reúnem suas forças, coragem e capacidades
para proteger uns aos outros. Por isso, o
romance de Zafón é uma obra que versa sobe a amizade, a coragem e o
companheirismo, mas também podemos acrescentar a esta lista a importância da união e do amor familiar,
tanto por parte dos gêmeos separados na infância, como por parte dos fortes
laços construídos entre os moradores de St
Patrick’s. São essa união e o espírito de coletividade que guiam os vários
personagens no enfrentamento a um adversário mais poderoso, com maiores
recursos (inclusive sobrenaturais) e com a vantagem de saber mais sobre eles do
que o grupo de adolescente, em contrapartida, possui sobre a identidade e
história de seu antagonista, inclusive esta é daquelas narrativas onde
conhecimento se torna crucial para virar o jogo.
A trama não é das mais instigantes, ainda que seja em
muitos aspectos bastante original. O
desenvolvimento é rápido e alguns pontos são propositadamente confusos, a fim
de despistar o leitor. Contudo algumas resoluções encontradas pelo autor no
desfecho poderiam ter sido melhor trabalhadas e acredito que este era um dos
pontos que na ocasião da publicação do livro Zafón manifestou a vontade de
mudar e reescrever a narrativa, mas não o fez para preservar a versão original
da obra.
Por seu tamanho um tanto reduzido e narrativa sem muitos
elementos a explorar, uma vez que a trama é demasiadamente simples, assim como
são limitadas as possibilidades de ramificação da mesma, o livro não consegue desenvolver profundamente o número
elevado e desnecessário de personagens (oito só no núcleo jovem que pouco
criativamente possuem todos eles a mesma idade). Contudo, por ser um escritor
talentoso, Zafón conseguiu imprimir em cada um deles um traço único que de
certa forma os individualizam dentro do conjunto.
O mais cinematográfico até então
Uma característica marcante
na narrativa de Zafón é sua estética particularmente cinematográfica. Zafón
redige com uma riqueza de detalhes e imprime o cenário e também na narração um número
tão grande de elementos estéticos, que ler seus livros se torna uma experiência
quase fílmica, o que não é mera coincidência, mas um recurso do qual o
barcelonês lançou mão para que não houvesse necessidade de que sua obra fosse
posteriormente adaptada nem para a TV, nem para a telona. Desta forma, toda a
narração de sua obra faz lembrar os planos de filmagem usados na
cinematografia. Sinto isso quando ele descreve lugares e cidades como se
quisesse desenhar long shots (planos gerais), ou quando vai descrevendo os interiores
de casarões e palacetes como se a câmera andasse (o travelling). Mas mais do que isso, ele constrói elementos que dão
ainda maior cinematografia ao texto, a exemplo da névoa, do jardim de pedra e
do navio afundado que emerge do fundo do mar em O Príncipe da Névoa, ou os cenários chuvosos, decadentes, góticos e obscuros
de A Sombra do Vento.
O Palácio da Meia-noite é, no entanto, o mais cinematográfico de todos, porque Zafón não só
explora elementos arquitetônicos fabulosos como a imensa estação de trem feita
de aço e ferro, arruinada pelo fogo e repleta de túneis obscuros que formam
verdadeiros labirintos (outro elemento comum na sua obra), como também explora
explosões e incêndios grandiosos (o fogo é outro fascínio de Zafón) e
acrescenta ao enredo um fantasmagórico trem em chamas que corre desgovernado
por sobre os trilhos e de onde se ouve os gritos de agonia de centenas de
crianças consumidas vivas pelo fogo, mas que desaparece tão repentinamente
quanto surge a sua frente. É quase uma cena de filme de terror num verdadeiro
show pirotécnico no qual acabe a você imaginar tudo enquanto lê. Um deleite
para os leitores de imaginação fértil. Enfim, o que quero dizer com isso é que,
o que tem de fraca a narrativa de O
Palácio da Meia-noite tem de riquíssima, por assim dizer, nestes elementos
cinematográficos.
Chegando ao fim….
O Palácio da
Meia-noite é exatamente o que propõe: um livro para adolescentes, sem muita profundidade, sem linguagem muito poética (salvo
algumas falas de Ian e a simbologia das “lágrimas de Shiva” que encerram
atrama), com linguagem nem rebuscada nem coloquial e infantil, com
desenvolvimento rápido para não se tornar cansativo e com certa originalidade.
Entretanto, no todo, seu enredo é mediano e sua melhor aposta está nos
elementos cinematográficos.
Enfim, acho que Zafón cumpriu com seu objetivo de
escrever uma obra que agrada uma faixa etária mais ampla, mas que não chama
muito a atenção de quem conhece o outro Zafón, o do Cemitério dos
Livros Esquecidos. Por isso, vamos a leitura de As Luzes de Setembro, livro que encerra a trilogia juvenil de
Zafón, e depois à Marina, que parece
ser a linha divisória entre aquele Zafón mais maduro de A Sombra do Vento, e este Zafón
dos romances juvenis.
A edição lida é da Editora
Suma das Letras, com tradução de Eliana Aguiar. Do ano de 2013 e possui 271
páginas. O título original em espanhol El Palacio de la Medianoche.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível
no Google Books.
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