Por Eric Silva
15 de janeiro de 2022, ano de Moçambique
“Transexualidade
é a sintonia que une feixes de luzes desassociados entre si para ajustar o foco
de maneira nítida e real. Não configura uma aberração e nem caracteriza um ser
bizarro.
O gênero de uma pessoa é apenas uma
condição que não afeta sua alma, seus sentimentos, crenças e tão pouco seu caráter.”
Luiza Gosuen
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Abordando
um tema cujo debate é tão polêmico quanto necessário, o escritor brasileiro,
Felipe Saraiça publica, em 2019, pela Editora Pendragon, um livro cujo título
chama a atenção pelo tom poético e até certo ponto melancólico e com uma capa
tão bela quanto delicada. Mas mais do que isso, o faz nos primórdios de um
momento obscuro da história de nosso país, no qual a intolerância, a
ignorância, o fanatismo e o radicalismo vem endurecendo corações de muitos
contra a causa LGBTQIA+. Saraiça não podia ter escolhido momento melhor para
fazê-lo.
Descolorindo Eloáh apesar de algumas falhas literárias é uma obra
importante porque discute a transexualidade por uma dimensão ainda pouco
debatida: a relação entre fé e sexualidade. Um debate que precisa ser
aprofundado, porque ainda é gestora de aberrações como a terapia de reversão
sexual, ou, no popular, “cura gay”, abordada pelo autor em seu livro.
Sinopse
do enredo
Quando Eloáh nasceu seu
pai, Silas, escolheu seu nome porque significava literalmente Deus, um nome um
tanto incomum para um menino, mas que refletia a imagem de religioso e de pastor
respeitado da pequena Cidade de Confete que Silas desejava construir. A esposa
havia desejado uma menina, mas a chegada de um garoto encheria o pai de felicidade
e de orgulho. E por um tempo foi bom.
As coisas, no entanto,
começaram a ruir quando a pequena Eloáh, ao saber por sua mãe que todos na
família esperavam que nascesse uma menina, questionou inocentemente ao pai se
ela poderia ser menina quando crescesse. A aquele foi o último dia que Silas
olhou com amor a própria criança e o marco inicial de sua cruzada por eliminar o
que para ele era repulsivo, inaceitável e danoso ao seu status social: a identidade
transexual de Eloáh. Era necessário “curá-lo”, ainda que isso custasse destruir
todos a sua volta, inclusive a filha.
Agora, com 17 anos de
idade e flertando rotineiramente com o desejo de suicidar-se, Eloáh enfrenta todos
os dias a submissão, o silêncio e a omissão de sua mãe em relação aos excessos
violentos de Silas. Uma situação que reforça na cabeça da jovem a certeza que
não existe amor para ela naquela casa, apenas o desejo insano de seu pai em preservar
as imagens de pastor e de família perfeita e conservadora que com muita
falsidade, talento teatral e hipocrisia ele construiu ao longo do tempo.
Sentindo que não há lugar
para ela na vida, Eloáh vivencia na pele um circo de horrores cujo espetáculo
se repete diariamente, tendo como palco principal a casa onde vive, mas também a
escola onde é obrigada a conviver com o bullying e com a impunidade de seus
agressores que atuam protegidos por seus sobrenomes e status sociais.
Resenha
Descobri esse livro por acaso, no Twitter, em uma publicação
da editora que naquela ocasião fazia uma promoção de alguns dos seus ebooks.
Nunca havia ouvido falar de seu autor e nem de sua obra, mas
de imediato Descolorindo Eloáh me
chamou a atenção pelo título criativo e sugestivo emoldurado por um delicado
desenho que fazia supor uma aquarela. E caso você não saiba, aquarelas perdem
parte de suas cores ao secarem e com o tempo podem desbotar (sobretudo as
aquarelas líquidas de má qualidade); isso
faz das cores de uma aquarela recém pintada uma beleza efêmera e mutável.
Sugestivo, não? Por isso, não perdi tempo em adquirir minha cópia deste e de
outros livros de Felipe, mas comecei minha excursão por esta que aparentemente
é a segunda obra publicada pelo autor, tendo estreado apenas três anos antes
com o livro Palavras de rua.
Adianto que gostei e não gostei de Descolorindo Eloáh, o que ironicamente me deixou tão dividido
quanto a própria Eloáh. E para que as coisas fiquem mais claras dividirei a
resenha em dois tópicos. O primeiro abordando a relevância política desta obra
e o segundo apontando minha apreciação crítica da obra em quanto peça
literária.
Descolorindo Eloáh como
obra com relevância política
Não é nenhuma novidade que
a questão LGBTQIA+ é permeada por lutas, tabus, polêmicas e muito
desconhecimento. O Brasil é um dos países que mais matam homossexuais e
transexuais no mundo, e o conservadorismo religiosos muito presente no país pouco
contribui na convivência sobretudo familiar destas pessoas. Tudo isso num
contexto no qual a família é o principal porto seguro para o desenvolvimento
equilibrado e saudável de uma pessoa LGBT.
Não estou aqui com a
pretensão de criticar nenhuma religião, mas é nítido que muitos discursos
proferidos pelo país usam os escritos sagrados como escudos para camuflar
preconceitos e intolerância, quando a palavra de ordem no cristianismo é o
AMOR. E quando falta amor e entendimento
numa família que tem uma pessoa LGBT, os problemas de ansiedade e depressão, de
uso abusivo de substâncias lícitas e ilícitas e o desejo de cometer suicídio
são muito maiores e frequentes, porque estas pessoas não só enfrentam desafios
dentro de suas casas, mas sobretudo fora delas onde são alvos corriqueiros de
preconceito, discriminação e violência. E quando se fala de Brasil, o que
mais há é muito desconhecimento sobre a complexidade da sexualidade humana e de
seus gêneros; pouca disposição para um debate saudável e racional da questão, e
abundantes quantidades de preconceito, discriminação, homofobia e transfobia impregnadas
em muitas das esferas que compõem a sociedade brasileira, sejam elas religiosas
ou não.
Falar de homossexualidade, de bissexualidade, de
transexualidade ou de transgênero é ainda difícil e, por vezes, perigoso. Isso torna a discussão penosa, bem como torna árduo explicar
o quão complexas são a sexualidade e a identidade de gênero do ser humano, sendo
elas compostas por muitas matizes e com fronteiras muito tênues.
A tendência é partir para uma
simplificação tosca que insiste em enquadrar sexualidades e gêneros em
caixinhas rígidas e pré-moldadas que só reconhecem a existência de dois gêneros
definidos biologicamente e de duas sexualidades – heterossexualidade e
homossexualidade –, sendo a primeira considerada como legítima e natural e a
segunda, como marginal, anormal e pecaminosa. Desta concepção cria-se um
sistema social discriminativo ao qual se dá o nome de heteronormatividade.
Em muitos países a homossexualidade
é criminalizada e a transgeneridade é vista como distúrbio mental. Até
recentemente a Organização Mundial de Saúde (OMS) mantinha a transgeneridade na
lista de doenças mentais presente no manual de Classificação Internacional de
Doenças (CID).
Só em 2018 a Suprema Corte da Índia decidiu revogar uma decisão de 2013 que
validava uma lei britânica de mais de 150 anos e que, na prática, criminalizava
a homossexualidade no país. O próprio Reino Unido só descriminalizou
completamente a homossexualidade em 1982,
quando a Irlanda do Norte foi seu último "país constituinte" a
fazê-lo. Esses são apenas três exemplos dos muitos e variados reflexos da
heteronormatividade.
As consequências sociais,
psicológicas e familiares para aqueles que não se enquadram nessa normatividade
são terríveis, mas nem sempre visíveis.
Mas das questões LGBTs pouco conhecidas pelo brasileiro médio, sem dúvida
nenhuma, a questão da transgeneridade é uma das mais ignoradas – por vez até mesmo
pela comunidade LGBTQIA+.
Em uma explicação
grosseira, transgênero é o indivíduo que possui uma identidade de gênero que
difere do que é considerado típico ao sexo atribuído ao nascer. Desta forma, o
indivíduo transexual o qual ao nascer foi atribuído o sexo masculino, pode
identificar-se com a identidade de gênero oposta a este sexo, sendo ela uma
mulher trans.
Isso significa dizer que,
a medida que se desenvolve, esse indivíduo olha para si no espelho e não vê em
seu corpo correspondência com o que ele sente que realmente é e se identifica. Porque
os gêneros masculino e feminino são muito mais uma construção histórica e social
do que biológica, e se não fosse a pressão sociocultural, as pessoas
perceberiam o quão complexo é o gênero. Um exemplo disso é o gênero fluído. Pessoas que são fluídas de gênero ou não se identificam
com um único papel de gênero ou com uma única identidade de gênero, ela acaba flui
entre eles. Há ainda o caso daqueles cujo gênero muda de tempos em tempos.
O mesmo se dá com a
sexualidade que pode ser mais ou menos flexível e as vezes fluídas.
É neste terreno que Felipe
insere sua narrativa, criando para Descolorindo
Eloáh uma protagonista transexual – tema ainda pouco representado na
literatura LGBT –, e vai longe ao inserir na trama outras duas questões
tangenciais, igualmente polêmicas e ainda menos exploradas (agora não só na
literatura como socialmente): a relação
entre fé, família e pessoas LGBTs e as terapias que prometem a reversão sexual.
Escrito como o diário de
uma refém da intolerância, Descolorindo
Eloáh narra pela voz de uma garota trans a sua rotina de terror
psicológico, de violência física e simbólica perpetrada sobretudo por seu pai e
por seus colegas de escola, e alimentado pela omissão da mãe e da escola.
O pai de Eloáh é pastor e
profundamente homofóbico e transfóbico. Para ele a filha é uma aberração e seu
comportamento, os sintomas de uma doença. Ele não perde uma oportunidade para
hostilizar, humilhar e diminuir Eloáh. A situação doméstica é a pior possível:
tóxica, violenta, sufocante.
Pelo fato de ser pastor
poderíamos simplificar dizendo que ele rejeita a identidade de gênero da filha
porque considera isso uma violação dos desígnios divino, concebendo-a como
pecaminosa e antinatural. Mas é anda pior, porque é também uma questão de
imagem e status social.
Silas é um homem corrupto,
hipócrita e misógino que se esconde atrás da fé para criar uma imagem de bom
moço e pessoa religiosa, logo, digna de mérito e respeito por ser um homem
cristão que construiu uma família temente a Deus. Este homem que é respeitado
pela cidade e que em casa se alcooliza, violenta psicologicamente a filha,
trai, manipula e agride verbalmente a esposa, é o mesmo que lidera uma
comunidade religiosa que – pelos indícios deixados pelo autor – tem a mesma
visão distorcida sobre as questões de identidade de gênero e de sexualidade que
seu pregador. Para esta comunidade, Silas necessita ser a verdadeira
personificação da integridade, retidão e honestidade, e se esta é uma
comunidade conservadora, ele também não pode ter como filho uma garota trans.
Ela precisa “ser homem” e se comportar como “homem”. Aqui temos uma mistura perigosa e explosiva: uma pessoa que considera a transegeneralidade
(e também a homossexualidade) pecaminosa e antinatural e que necessita manter
uma coerência entre o que prega e a imagem de si e da família que exibe à
sociedade.
Ainda que tenha aqui corrido
o risco de generalização, o autor denuncia uma das três posturas comuns das
igrejas cristãs no Brasil em relação às uniões homoafetivas e que são descritas
pelas pesquisadoras Daniele Trindade Mesquita e Juliana Perucchi:
***
“De modo geral, as posturas das igrejas cristãs no
Brasil em relação às uniões homoafetivas podem ser classificadas em três tipos:
a rejeição à homossexualidade, concebendo-a como pecaminosa e antinatural.
Assim, há o acolhimento dos/as homossexuais pela igreja, desde que eles/as
reconheçam que precisam mudar seu comportamento. Outro tipo de postura
encontrada no meio cristão é aquela que aceita a conduta homossexual, embora a
considere inferior à heterossexual. Existem ainda os defensores da ideia de que
a homossexualidade tem o mesmo nível de dignidade que a heterossexualidade
(Jurkewicz, 2005). Dentre os três posicionamentos, o mais presente e
disseminado é o primeiro, segundo o qual a homossexualidade estaria em um nível
inferior na hierarquia das sexualidades (Rubin, 2003), o que justificaria o uso
de dispositivos religiosos regulatórios e corretivos com os/as homossexuais.
Esta postura é justificada muitas vezes por trechos da Bíblia, interpretados de
forma literal pelos/as religiosos/as, de modo que não são consideradas a época
histórica e a cultura em que os textos foram escritos originalmente. Dessa
maneira, tanto o Antigo, quanto o Novo Testamento são reiterados para
justificar a condenação aos homossexuais pelas igrejas. Trechos dos livros de
Gênesis, Levítico e Coríntios são os mais citados, sendo que as narrativas de
Sodoma e Gomorra e as cartas paulinas recebem destaque”.
***
Eu ainda não havia visto
na literatura alguém entrar neste terreno antes, mas pelas sinopses de seus
outros livros é nítido que Felipe é atraído pelos temas difíceis e polêmicos, o
que acho ótimo, porque é um deleite literário sair dos lugares comuns. Mas
aqui, especificamente, a coragem de
Felipe é tão digna de nota quanto a relevância que a obra ganha por três
motivos iniciais: dar
visibilidade a questão trans e pôr na mesa o preconceito religioso contra os
LGBTs, bem como muitas vezes a fé é usada como justificativa para a violência
psicológica e moral contra estas pessoas.
Mas não para por aí. Silas
tenta “corrigir” sua filha, ou melhor, “curá-la” através de um tratamento
psicológico duvidoso com uma psicóloga tão amoral e antiética que faz arrepiar
os cabelos de qualquer profissional da área. Eloáh é submetida ao que o jargão
médico chama de Terapia de Reorientação
Sexual (chamada ainda terapia de conversão, terapia reparativa ou terapia
de reversão sexual), ou como no popular: cura gay. Uma falsa medicina que parte
da ideia de que a homossexualidade e a transgeneridade são patologias, doenças
ou desvios que podem ser “curados” com terapia, ou práticas, testemunhos e
conversões de fé.
As consequências para a
saúde psicológica e emocional das pessoas submetidas a tais tratamentos
costumam ser devastadoras, mas a prática é comum em diversas comunidades
religiosas, e como denunciam Flávio Conrado, Gabriella Morena e Bob Luiz
Botelho:
***
“Centenas de igrejas, ministérios e comunidades
"terapêuticas" em todo o país continuam usando a prerrogativa de sua
liberdade religiosa para ofertar a possibilidade de mudança da sexualidade. Sem
base científica e comprovadamente ineficaz, ela causa danos muitas vezes
irreparáveis à saúde mental de pessoas LGBTQIA+ o recorrerem ao apoio de suas
lideranças religiosas por imaginarem sua sexualidade ou gênero errado ou
desordenado.
Profissionais "reversionistas" defendem que
"uma pessoa homossexual infeliz com sua sexualidade tem o direito de
procurar ajuda", mas este suposto acolhimento guarda, na verdade, uma
perniciosa armadilha: quem procura apoio está assolado por dúvidas sobre si,
sobre sua fé e com medo de rompimentos na família e na comunidade religiosa. O
discurso de ajuda pode soar esperançoso, mas é extremamente violento. Por que
tais profissionais não questionam a estrutura de exclusão a que pessoas
LGBTQIA+ estão submetidas, contexto onde emerge sua sensação de inadequação,
angústia e pedido de mudança?”.
***
Um ano antes da publicação
de Descolorindo Eloáh, a prática de reversão sexual por via psicológica foi
liberada no Brasil após decisão do juiz federal Waldemar Claudio de Carvalho,
da 14ª Vara Federal no Distrito Federal, o que contraria a resolução CFP n°
001/99, de 22 de março de 1999 cujo artigo 3, parágrafo único, determina que
“os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento
e cura das homossexualidades”.
Contra a decisão do magistrado, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) entrou
no Supremo Tribunal Federal com ação que pedia cassação do disposto pelo juiz
da 14ª, o que aconteceu em abril de 2019, depois de uma liminar concedida pelo
STF.
Essa é a quarta razão pelo qual Descolorindo Eloáh é relevante ao debate.
A quinta e última é a
descrição que Felipe faz do transtorno
de disforia de gênero
vivido por Eloáh e que lhe causa a sensação de incompatibilidade entre seu sexo
anatômico (masculino) e sua identidade de gênero (feminina) e que lhe causa
angústia e um sentimento de rejeição a própria imagem.
Felipe só comete alguns
deslizes aparentes e que foram primeiro percebido pela minha colega skoober Luisa
Leão (ou Diva). Até certo ponto concordo com minha colega em alguns pontos. O
primeiro deles é a cura um tanto rápida e quase completa da disforia. De fato,
foi pouco realista a forma como as coisas foram feitas. Elóah quase que
resolveu sozinha um problema que perdurou anos e que é de tratamento longo com
acompanhamento terapêutico.
Segundo, se Eloáh é uma
mulher trans (e esse foi o entendimento que eu tive tanto pela sua pergunta se
poderia ser menina como a forma como o personagem Luis se refere a ela no fim
do livro, usando o feminino), ela não se referiria a si mesma usando o
masculino como acontece insistentemente ao longo de toda a obra. Ela poderia
até usar o masculino para se comunicar com as outras pessoas diante das
circunstâncias difíceis que vivia, mas usaria o feminino ao se referir a si
mesma na narração dos fatos.
Talvez tenha faltado um
pouco mais de cuidado com os detalhes.
Vamos a crítica literária.
Descolorindo Eloáh como peça
literária: minha crítica
Em termos literários, Descolorindo
Eloáh revela ainda que Felipe estava ainda na época um pouco “verde”. Um
escritor ainda em busca de um estilo próprio ou definitivo.
Uma das coisas que me chamaram a atenção na forma como a
narrativa foi pensada, foi algumas escolhas feitas pelo autor, detalhes, coisas até certo ponto irrelevantes,
mas algumas delas me pareceram bastante
estranhas enquanto outras me encantou pelos significados imbuídos.
A primeira destas miudezas eu já abordei de certa forma: o título da narrativa.
Descolorindo Eloáh tem um significado dentro da história que
lhe é não só poético como bastante apropriado. Ao longo do livro, a personagem vai
sendo vítima constante de bullying dos colegas da escola, negligência e
indiferença dos educadores funcionários, do desamor e crueldade dos pais e da
falsa ciência da suposta psicóloga contratada por seu pai. Isso vai, pouco a
pouco, minando o mundo da garota, sua autoestima, o seu amor e sua identidade,
seu desejo de viver, sua confiança na vida e nas pessoas. “Como um quadro de aquarela barata jogado na chuva” ela vai perdendo suas cores, sua
vivacidade. Nada mais apropriado do que o título que o autor confere a sua
obra.
O segundo detalhe que me chama a atenção é o nome da personagem que também fala
muito da mesma.
Eloáh não é exatamente um nome comum e por isso se destaca
facilmente, chama a atenção. Mas mais do que isso, há dois outros aspectos
peculiares neste nome. Em primeiro lugar, o nome Eloáh, no Brasil, é
majoritariamente escolhido para meninas, mas aqui nomeia um personagem de sexo
masculino. Além disso é um dos muitos nomes que designam a divindade dos
cristãos e dos judeus, que - apesar das muitas representações artísticas
insistirem em representá-lo como alguém do sexo masculino, na verdade é uma
divindade sem gênero definido e que no passado já foi referido em ambos os
gêneros.
Não sei até
onde Felipe pretendia, mas ele faz aqui uma associação bastante peculiar. Eloáh é
uma pessoa trans e todos os seus
problemas estão ligados a essa não
correspondência entre sexo biológico e o gênero que ela reconhece como seu,
e seu nome – visto no Brasil como
feminino – é um dos nomes de uma entidade sem gênero definido, pois como a
igreja católica mesma já afirmara: Deus
não é homem ou mulher, é Deus. Seja como for, o nome escolhido sugere
antecipadamente essa ambivalência (?) ou transitoriedade (?) entre gêneros e ao
mesmo tempo - e isso é certo - dá a ideia de que a definição binária do gênero
é algo que não dá conta da diversidade de identidades existentes na
complexidade do que é ser humano.
As outras miudezas revelam algumas fraquezas da escrita do livro.
O primeiro é um
problema de estilo. Felipe na época ainda estava amadurecendo seu estilo,
por isso, há uma insistência – bastante repetitiva – de concluir ideias e
sobretudo capítulos com frases de efeito. Esse tipo de recurso é interessante e
em alguns momentos elegante, poético ou reflexivo, mas quando usado em demasia
torna-se cansativo.
O segundo problema é uma questão de desenvolvimento. A
narrativa se desenvolve segundo um padrão, uma rotina, o que torna enfadonho e
previsível o próximo passo que a trama dará, ainda que o autor sempre
acrescente um pequeno elemento a mais em cada novo capítulo.
O ciclo
quase sempre é: Eloáh está em casa e enfrenta os problemas familiares;
sai de casa e vai para a escola e lá assiste às aulas e enfrenta seus problemas
escolares (sempre nas aulas da mesma professora – o que não é nenhum pouco
realista, sou professor, posso falar); depois retorna para casa e o ciclo
recomeça. Um pouco mais a frente quando avança a narrativa essa rotina ganha
mais um acréscimo: as visitas ao consultório da psicóloga e o padrão passa a se
repetir com mais este elemento, de modo que o leitor já intui o cenário em que
se dará o capítulo seguinte.
Tipo isso: se Eloáh
está em casa, no capítulo seguinte estará na escola. Se sai da escola, é
provável que irá direto para casa ou para o consultório. E em um desses dois
movimentos (na ida ou na volta da escola) certamente encontrará Luís, o vizinho
idoso por quem Eloáh cultiva – e por Luís é também cultivado – um misto de
piedade e de carinho filial. Em quase a totalidade do livro, Eloáh não escapa
disso, não faz grandes desvios, não se aventura pela cidade, não tem um
refúgio, um lugar secreto, uma casa na árvore que fosse ou um banco de praça de
onde gostasse de olhar o tempo. Ela não tem momentos de loucura, de rebeldia,
de fulga! E isso, sério, cansa muito!
Toda narrativa que já li e que fala
de jovens e seus problemas existenciais tem, ocasionalmente, grandes mudanças
de cenários, momentos de viverem a cidade, a vila, o campo. Há sempre pontos de
ruptura com a rotina e isso é um descanso para o leitor. Um ponto a mais para
mantê-lo interessado.
Vejo
bastante esta fórmula nos animes: há sempre um acampamento, uma ida à
praia, um encontro – o famoso dēto suru
(デートする) ou só dēto
(デート), um festival com hanabi
(花火 – fogos de artifícios) e coisas do
gênero que ajudam – sem abandonar a essência da narrativa – a lhe dar mais
dinamismo, novos cenários, momentos mais suaves antes de situações mais
pesadas, tensas ou depressivas. Bons exemplos são: Koe no Katachi (聲の形), conhecido no Brasil como A Voz do Silêncio, que é uma animação que trata de temas delicados
como suicídio e bullying; e o j-drama (dorama japonês), Fujoshi, Ukkari Gay ni Kokuru (腐女子、うっかりゲイに告る, algo meio intraduzível para mim), que
trata de forma delicada e muito melancólica da homossexualidade masculina na
adolescência, do fenômeno Boy Love (BL) e a questão do suicídio em um país
ainda muito conservador e preconceituoso.
A
história contada por Felipe é potente, é dramática e forte. Eloáh vive em carne viva, e sei que a rotina é um elemento
que dá maior realismo a trama, além de figurar o quão esvaziado de sentido se
encontrava a vida dela. Mas senti que – literariamente e para os padrões de
exigência dos leitores atuais – esse fluxo repetitivo da rotina de Elóah se reproduziu
demasiadas vezes, acabando por se tornar um vício da trama. Inclusive, trata-se
de um vício tão arraigado que em um dos capítulos o livro apresenta uma falha
de continuidade por conta do costume de se seguir o já citado roteiro (casa – escola
– consultório – casa).
A falha é minúscula mas não me
escapou.
No capítulo 44, após chegar da rua
Silas questiona o que a filha foi fazer naquele dia, um sábado (e isso foi
bastante enfatizado), e depois há um conflito entre os dois. Eloáh se recolhe
ao seu quarto e uma tempestade se instala sobre a cidade. Contudo, no capítulo
seguinte, quando o dia amanhece (ou seja, no dia seguinte a briga e que deveria
ser domingo), Eloáh acorda e, ao ver o noticiário, agradece pela suspensão das
aulas em decorrência do temporal ocorrido durante a noite.
“Aula
no domingo?” Foi meu questionamento na hora que li, e como o texto não é
claro se a suspensão era apenas para aquele ou para vários dias, só pude supor
uma falha de continuidade na narrativa.
Felipe ainda tem algumas esquisitices
meio estranhas. Uma delas é a escolha do nome da cidade que – apesar dos muitos
nomes estranhos de municípios brasileiros – para mim não fez o menor sentido (Cidade
de Confete). Outra é o fato da psicóloga usar "cubos de açúcar" (isso
existe no Brasil?).
Mas críticas a parte, ele me aparenta
ser um talento em desenvolvimento. Ademais, é valido recordar que quer outro
escritor que hoje é renomado, um dia foi – na aurora de sua carreira – alguém
que escrevia de forma ainda crua, com falhas ou imitando o estilo algum autor
ou movimento já consagrado. É plenamente compreensível e nem Machado de Assis
escapou disso (leiam Helena – livro chatíssimo e piegas da fase romântica de
Machado).
Mas chega! Acho que já deu para
entender minha dificuldade de me identificar com a escrita do autor, ainda que
eu recomende veementemente a leitura da obra.
Conclusão
Para finalizar gostaria apenas de
falar do que achei da construção psicológica de Eloáh e, na tangente, dos
personagens de um modo mais generalizado.
De um modo mais geral,
alguns personagens foram construídos de uma forma um tanto caricatural ou um
pouco sem personalidade, a exemplo de Silas (que é demasiadamente perverso para
se fazer completamente crível); do aluno e terror de Eloáh, o playboy Nicolas
(que nada mais é que um valentãozinho que se apoia no prestígio de sua família
e na permissividade interesseira da direção da escola); da psicóloga picareta
Elisa (que é um pouco sem personalidade, mas que me fez crer que os órgãos de
regulamentação da profissão deveriam ficar mais atentos aos profissionais em
exercício); e da mãe dominada – e um tanto marionete – de Eloáh (que encarna o
papel clássico de mulher muda e dominada, vítima e cúmplice da violência
perpetrada em casa).
Qualquer um deles poderiam ser reais? Acredito que sim, porque personificam realidades de
fato: hipocrisias religiosas, violência doméstica, clientelismo, privilégios
sociais, picaretagem de falsos médicos e mulheres que “por amor” se silenciam
frente a violência contra elas e contra seus filhos. No entanto, não consegui
ver muita profundidade e complexidade nestes personagens. Eles são reflexos da
realidade, mas não me pareceram de fato reais. Eloáh, no entanto, me convenceu
muito mais.
Eloáh é repleta de medos,
frustrações, complexos, receios, desejos e dores. Uma miscelânea de sentimentos. E mais do que isso, ela é sensível, e
não apenas porque consegue sentir no ar as tensões entre seus pais, a
hipocrisia e a transfobia nas ações e falas de seu pai ou porque lê o
preconceito estampado nos olhares dos moradores da Cidade de Confete ou na
crueldade de seus colegas de turma. Não. Eloáh é sensível sobretudo porque
ainda preserva dentro de si a força para ser gentil mesmo com quem negligencia
o seu bem-estar (a mãe), ou com aqueles que só necessitam de um pouco de
atenção (Luís, o vizinho idoso e viúvo que remói a perda da esposa).
Eloáh não sabe lidar muito
bem com o afeto e atenção que Samuel (único amigo de Eloáh, negro, homossexual[?]
e que se torna o principal porto seguro da garota), que Lilian (professora nova
de língua portuguesa) ou mesmo que Luís lhe ofertam – porque só conheceu a dor
e a violência onde deveria haver carinho e proteção. Mas ainda assim, consegue
manter parte de si íntegra, amorosa, yasashī
(やさしい).
Isso não quer dizer que
ela não guarde dentro de si sentimento de revolta, de raiva, mas o que mais
transborda por seus poros é uma sensação de cansaço misturado a aflição que lhe
faz flertar com o suicídio. Mas em meio a esta névoa, Eloáh é fundamentalmente
uma jovem capaz de pequenos e belos atos de gentileza. Tudo isso a torna bem
mais complexa do que aparenta e isso me fez me identificar bem mais com ela do
que com a maioria dos protagonistas de sua vida.
Enfim, penso que Felipe tem futuro e provavelmente seu
livro mais recente, Para onde vão os
Suicidas?, deve corrigir parte das limitações que percebi em Descolorindo Eloáh, porque todo autor é
um escritor em construção. Gostaria apenas de pontuar que achei o desfecho (epílogo)
um pouco exagerado. Havia como dar destino a Silas de outra forma, com
resultado semelhante, porém mais crível. E senti falta de um “o que aconteceu depois” mais detalhado
no caso da protagonista.
Ademais, independente de minhas críticas, o livro é
importante, sua leitura é necessária, principalmente como porta de entrada para
conhecer o tema da transgeneridade em sua relação com os conflitos familiares,
religiosos, sociais e psicológicos. Importante também porque denuncia a
falsidade dos tratamentos que prometem a “cura” de algo que não é doença, não é
pecaminoso e muito menos anormal.
A edição lida é da Editora
Pendragon, do ano de 2019, digital, e sua versão física possui 242 páginas.
Sobre
o autor
Felipe Saraiça é vencedor do prêmio Pérolas da literatura e
escreve desde 2016. É autor de Palavras
de rua — que foi adaptado para o cinema —, Para onde vão os suicidas, Descolorindo
Eloáh e o livro de poemas O amor é um
plágio. Já quis ser jogador de futebol, cantor, mas acabou se encontrando
verdadeiramente na literatura, um sonho que surgiu de forma repentina, mas se
tornou parte essencial da sua vida. Aborda assuntos delicados em suas
narrativas e acredita que os livros têm o poder de transformar as pessoas. Também
ganhou o Festival de Cinema de Caruaru com o longa-metragem baseado em seu
primeiro livro, ao qual escreveu o roteiro junto ao produtor Léo Batista.
Preview do Google Books
Abaixo você pode conferir uma prévia do livro
disponível no Google Books.
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