sábado, 5 de fevereiro de 2022

[Especial Zafón] Marina - Carlos Ruiz Zafón - Resenha

Por Eric Silva

14 de março de 2021, Ano da Itália

“Cedo ou tarde, o oceano do tempo nos devolve as lembranças que enterramos nele”.

(Carlos Ruiz Zafón, Marina)

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Terror e mistério se misturam neste que é, sem dúvida nenhuma, o livro de transição entre o Zafón que escreveu a Trilogia da Névoa e aquele que cativou leitores do mundo todo com a quadrilogia do Cemitério dos Livros Esquecidos. Unindo um pouco de cada proposta, Marina é um livro sobre perdas, separações, loucura, genialidades deturpadas, intrigas, ambições, família e amor juvenil, mas em cujas páginas habitam criaturas malignas nascida do ódio e da perversão de alguém do passado. Uma narrativa que antes de A Sombra do Vento desnuda e viola os segredos da milenar cidade de Barcelona, e que apesar do enredo muito mais fantástico do que real, aborda o quanto são frágeis a sanidade e a vida humana.

Sinopse do enredo

Barcelona, setembro de 1979. Óscar Drai é apenas um menino solitário de 15 anos que vê seus dias transcorrerem na penumbra das galerias do internato onde seus pais o colocaram, mas seria naquele final de ano, percorrendo as ruelas do decadente bairro de Sarrià que sua vida mudaria para sempre.

Tudo começa quando, em uma de suas deambulações pelas ruas do bairro, ele se depara com um casarão aparentemente abandonado. Tomado pela curiosidade, o garoto aventura-se para além dos portões da propriedade e lá dentro é atraído pelo som de uma bela voz de mulher acompanhada pelo som de um piano. O indescritível som partia de uma galeria envidraçada onde cem velas bruxuleavam um brilho tênue.

Hipnotizado e sem se dar conta de sua imprudência, Óscar adentra o recinto e nele se depara com outro objeto enfeitiçado que lhe chama a atenção: ao lado do megafone que reproduzia aquela canção, repousava um relógio de bolso quebrado e muito antigo. Mas, subitamente, o encantamento se quebra quando o garoto se dá conta de que durante todo aquele tempo não esteve sozinho naquele lugar. Assustado com a presença inesperada, ele foge, mas por reflexo leva consigo o relógio.

Dias depois, ao retornar à casa para devolver o objeto roubado, Óscar conhece Marina, a jovem de olhos cinzentos que seria a chave para uma revolução nos dias monótonos do rapaz. Marina era filha de Germán, proprietário do casarão, e ainda que fosse tão jovem quanto Óscar, já carregava nos ombros a responsabilidade de cuidar do pai idoso na imensa e descaída propriedade, onde viviam com o espectro de uma felicidade passada que se deteriorou após a morte da mãe da garota. Ainda assim, o calor e a amorosidade daquelas duas pessoas enleiam o garoto que não consegue mais deixá-los, fugindo do internato sempre que possível para a casa daquela pequena família.

É convivendo com Marina que Óscar passa a aventurar-se pelos mistérios do passado de Barcelona, e em uma dessas aventuras, os dois presenciam uma cena estranha num antigo cemitério, onde uma mulher coberta por um manto negro visita uma sepultura sem nome, sempre à mesma data, à mesma hora.  Em um ímpeto imprudente, os dois se lançam ao desconhecido, passando por palacetes e estufas abandonadas, lutando contra manequins vivos e se defrontando diversas vezes com o símbolo de uma mariposa negra, numa busca desesperada por solucionar um mistério antigo e envolto em perigos que remontam aos anos de 1940.

Resenha

O último livro de Zafón que me restava resenhar, Marina é um livro de transição dentro da obra do escritor barcelonês e com ele me despeço definitivamente de meu querido autor. Depois desse texto resta-me apenas algumas postagens de análise de sua obra e encerrarei enfim esse longo projeto que se arrasta já há alguns anos (desde 2017).

Marina, como disse agora a pouco, é um livro de transição que demarca uma fronteira tênue entre o estilo narrativo inicial de Zafón que remonta as suas histórias infanto-juvenis de terror e povoa as páginas dos livros da série Trilogia da Névoa, e o estilo que se desenham na sua série mais famosa, O Cemitério dos Livros Esquecidos, com a qual ficou conhecido e foi consagrado como um dos maiores escritores espanhóis da história recente. Marina é um livro de transição, porque agrega em si o terror e as criaturas sombrias e macabras das primeiras narrativas do autor com a transformação de Barcelona em cidade-personagem, desterro de passados sombrios e trágicos no bom estilo investigativo de A Sombra do Vento.

Óscar Drai ainda não é um Daniel Sempere (vive no tempo futuro deste último e não tem um passado prévio que se misture simbioticamente ao passado da cidade), mas em muitas passagens do texto parece ser seu eco, seu alter ego. Ainda assim, Marina prenuncia a atmosfera sombria, decadente e antiga da cidade catalã envolta em brumas e vapor. O livro revira o passado de seus habitantes, exuma seus cadáveres, revolve o pó de seus palacetes para ouvir o eco de tragédias esquecidas, e nisso tudo faz lembrar o magnum opus de seu criador, como se fosse esta obra o epílogo de uma imersão na cidade mais goticamente hipnotizante da Catalunha. Claro que em 1999, quando foi publicada na Espanha, ninguém suspeitava destas coisas, porque de fato Marina foi o marco final dos textos infanto-juvenis de terror ao estilo de O Príncipe da Névoa e O Palácio da Meia-Noite com suas criaturas demoníacas. Cidades permeadas de segredos e um par ou mais de jovens investigando o passado das mesmas, na tentativa de saírem vivos da confusão para a qual – involuntariamente – são arrastados. Depois dessa obra Zafón só preservaria os conceitos investigativo e de cidade permeada de segredos e desgraças.

Marina preserva características que a aproximam bastante de As Luzes de Setembro, sobretudo na estética de seu terror pautado em criaturas mecânicas que diabolicamente possuem vida própria. No entanto, inicia lentamente a fórmula de A Sombra do Vento marcada por personagens mais complexos e pelo estilo gótico, histórico-investigativo que mergulha nas brumas de Barcelona, descortinando a cidade, nos fazendo vivê-la, percorrê-la, senti-la como se fosse nossa, como se fosse parte de seus personagens, como se fosse ela mesma a maior e a principal protagonista do enredo: tudo vem da história de Barcelona e diz respeito a ela. Descortinar os segredos por trás da mulher de preto e da marca da mariposa negra é antes de tudo descortinar o passado da cidade, entrar em sua intimidade.

Assim como os demais escritos de Zafón (contos, romances e novelas) Marina foi escrito de forma cinematográfica. É uma narrativa que propicia ao leitor imaginar grandes cenas como se estas fossem resultado do enquadramento de uma câmera. Cenários, a movimentação dos personagens, a forma como as marionetes se movem e atacam, tudo é tão bem descrito que você é capaz de “ver” a cena se desenrolar como se acompanhasse os personagens ao longos dos becos, ruas, ramblas e palacetes arruinados de Barcelona. Os mais imaginativos talvez consigam até mesmo crer que sentem o ar frio da noite barcelonesa.

A escrita do autor é aqui tão impecável quanto já seria nos seus livros posteriores. Estão lá as construções estilísticas, o texto instigante e elegantemente escrito, bem como as descrições muito bem construídas e com detalhes que ajudam a construir toda a atmosfera da trama sem ser econômico nem excessivo.

Quando se trata de mistério, Marina não é tão intrincado ou complexo quanto as obras que o sucederam, mas está um pouquinho além do que vemos nos livros que o antecedem. A história envolve mais personagens, mais histórias; é necessário acompanhar pistas e testemunhas são deixadas pelo meio do caminho. Mas quando se trata de terror, para mim, ela está no mesmo patamar de As Luzes de Setembro e suas repulsivas criaturas mecânicas (os de Marina me pareceram piores). Não sei se a razão seja pelo fato de eu odiar bonecas, mas achei tenebrosas as criaturas que povoam as páginas de Marina e, por isso, tenho para mim que – dos seus romances – este é o que contém o terror mais bem-acabado e desenvolvido. Contudo eu avaliaria melhor se gostasse e lesse com maior frequência o gênero terror. Prefiro o thriller e o suspense.

Mas a verdade é que Marina – sobre o fundo de uma trama de mistério e terror – é mais uma narrativa sobre perdas, separações, loucura, genialidades deturpadas, intrigas, ambições, família e amor juvenil, temas que foram caros a Zafón. A pesar de ser uma narrativa muito mais fantástica do que real, ela aborda o quanto são frágeis a sanidade e a vida humana.

Ademais, não conseguirei perscrutar muitos detalhes sobre os personagens, porque quase um ano separa a minha leitura do livro (fevereiro de 2021) e a escrita desta resenha (janeiro de 2022), contudo achei que a grande lacuna do livro é o passado de Óscar.

O rapaz a pesar de ser o principal personagem da trama – ao lado, é claro, de Marina –, está bem distante do foco da narrativa. Quase nada da sua vida antes e depois de Marina é abordado e isso é – com toda a certeza – intencional. Marina é o elo que une direta e indiretamente todas as peças da trama. Sem ela Óscar nunca teria seu caminho cruzado pela mulher de preto, nem vivido uma aventura arriscada e tenebrosa. É ela junto com o “furto” do relógio os dois grandes acontecimentos que fazem a trama mover-se. Também bem pouco ou nada Óscar teria feito. Foi a passagem dela pela vida do rapaz que o impele a narrar toda a história.  Sem Marina seus dias haveriam transcorrido como de costume e é por isso que ele narra essa história quinze anos após os fatos terem ocorrido. É ela também o personagem de quem melhor me recordo.

Marina é inteligente, corajosa e sagaz, misteriosa e de humor um tanto mutável. Há nela uma aura sedutora, travessa, zombeteira, mas que por vezes oscila para algo um tanto fadigado e envelhecido. Por vezes ela é séria, melancólica e reservada. É notável que pesa em suas costas uma grande responsabilidade, mas você sempre tem a sensação de que há algo a mais.

Germán, por sua vez, ao bom estilo zafoniano, é um homem envelhecido e doente que vive com os olhos voltados para os fantasmas de seu passado. Mas também lembro pouco sobre seu perfil psicológico.

Enfim, Marina me cativou bem mais do que os livros da Trilogia da Névoa, porque se assemelha bem mais as obras posteriores de Zafón do que os seus três primeiros livros – ainda que, na essência, eu classificaria Marina como um “quarto” livro desta coleção.

O desfecho da trama de mistério não me surpreendeu muito, mas o destino dos protagonistas me pegou de surpresa. Mas acostumado como estou com Zafón – enfim li toda a sua obra – aceitei bem o desfecho de tudo.

Ademais, gostei bastante da obra porque para mim foi um retorno a Barcelona, mas também porque entrevi nela o Zafón que conheci primeiro em A Sombra do Vento, o que me deixou bastante satisfeito. Infelizmente é o último Zafón que me restava ler, e doí-me saber que não haverá outro nem para mim nem para nenhum dos milhões de leitores que este barcelonês sério e meio misterioso cativou e fez seu fã. Com essa resenha – um pouco fraquinha, lamento – me despeço de um dos meus autores favoritos e espero que, no futuro, eu seja novamente cativado por alguém de igual ou maior valor.

À Zafón, o meu adeus.

A edição lida é da Editora Suma, do ano de 2011 e possui 192 páginas. Tradução de Eliana Aguiar. Título original: Marina.

Sobre o autor

Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem especial que fizemos sobre ele.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Descolorindo Eloáh – Felipe Saraiça – Resenha

 Por Eric Silva

15 de janeiro de 2022, ano de Moçambique

Transexualidade é a sintonia que une feixes de luzes desassociados entre si para ajustar o foco de maneira nítida e real. Não configura uma aberração e nem caracteriza um ser bizarro.

O gênero de uma pessoa é apenas uma condição que não afeta sua alma, seus sentimentos, crenças e tão pouco seu caráter.”

Luiza Gosuen

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Abordando um tema cujo debate é tão polêmico quanto necessário, o escritor brasileiro, Felipe Saraiça publica, em 2019, pela Editora Pendragon, um livro cujo título chama a atenção pelo tom poético e até certo ponto melancólico e com uma capa tão bela quanto delicada. Mas mais do que isso, o faz nos primórdios de um momento obscuro da história de nosso país, no qual a intolerância, a ignorância, o fanatismo e o radicalismo vem endurecendo corações de muitos contra a causa LGBTQIA+. Saraiça não podia ter escolhido momento melhor para fazê-lo.

Descolorindo Eloáh apesar de algumas falhas literárias é uma obra importante porque discute a transexualidade por uma dimensão ainda pouco debatida: a relação entre fé e sexualidade. Um debate que precisa ser aprofundado, porque ainda é gestora de aberrações como a terapia de reversão sexual, ou, no popular, “cura gay”, abordada pelo autor em seu livro.

Sinopse do enredo

Quando Eloáh nasceu seu pai, Silas, escolheu seu nome porque significava literalmente Deus, um nome um tanto incomum para um menino, mas que refletia a imagem de religioso e de pastor respeitado da pequena Cidade de Confete que Silas desejava construir. A esposa havia desejado uma menina, mas a chegada de um garoto encheria o pai de felicidade e de orgulho. E por um tempo foi bom.

As coisas, no entanto, começaram a ruir quando a pequena Eloáh, ao saber por sua mãe que todos na família esperavam que nascesse uma menina, questionou inocentemente ao pai se ela poderia ser menina quando crescesse. A aquele foi o último dia que Silas olhou com amor a própria criança e o marco inicial de sua cruzada por eliminar o que para ele era repulsivo, inaceitável e danoso ao seu status social: a identidade transexual de Eloáh. Era necessário “curá-lo”, ainda que isso custasse destruir todos a sua volta, inclusive a filha.

Agora, com 17 anos de idade e flertando rotineiramente com o desejo de suicidar-se, Eloáh enfrenta todos os dias a submissão, o silêncio e a omissão de sua mãe em relação aos excessos violentos de Silas. Uma situação que reforça na cabeça da jovem a certeza que não existe amor para ela naquela casa, apenas o desejo insano de seu pai em preservar as imagens de pastor e de família perfeita e conservadora que com muita falsidade, talento teatral e hipocrisia ele construiu ao longo do tempo.

Sentindo que não há lugar para ela na vida, Eloáh vivencia na pele um circo de horrores cujo espetáculo se repete diariamente, tendo como palco principal a casa onde vive, mas também a escola onde é obrigada a conviver com o bullying e com a impunidade de seus agressores que atuam protegidos por seus sobrenomes e status sociais.

Resenha

Descobri esse livro por acaso, no Twitter, em uma publicação da editora que naquela ocasião fazia uma promoção de alguns dos seus ebooks.

Nunca havia ouvido falar de seu autor e nem de sua obra, mas de imediato Descolorindo Eloáh me chamou a atenção pelo título criativo e sugestivo emoldurado por um delicado desenho que fazia supor uma aquarela. E caso você não saiba, aquarelas perdem parte de suas cores ao secarem e com o tempo podem desbotar (sobretudo as aquarelas líquidas de má qualidade); isso faz das cores de uma aquarela recém pintada uma beleza efêmera e mutável. Sugestivo, não? Por isso, não perdi tempo em adquirir minha cópia deste e de outros livros de Felipe, mas comecei minha excursão por esta que aparentemente é a segunda obra publicada pelo autor, tendo estreado apenas três anos antes com o livro Palavras de rua.

Adianto que gostei e não gostei de Descolorindo Eloáh, o que ironicamente me deixou tão dividido quanto a própria Eloáh. E para que as coisas fiquem mais claras dividirei a resenha em dois tópicos. O primeiro abordando a relevância política desta obra e o segundo apontando minha apreciação crítica da obra em quanto peça literária.

Descolorindo Eloáh como obra com relevância política

Não é nenhuma novidade que a questão LGBTQIA+ é permeada por lutas, tabus, polêmicas e muito desconhecimento. O Brasil é um dos países que mais matam homossexuais e transexuais no mundo, e o conservadorismo religiosos muito presente no país pouco contribui na convivência sobretudo familiar destas pessoas. Tudo isso num contexto no qual a família é o principal porto seguro para o desenvolvimento equilibrado e saudável de uma pessoa LGBT.

Não estou aqui com a pretensão de criticar nenhuma religião, mas é nítido que muitos discursos proferidos pelo país usam os escritos sagrados como escudos para camuflar preconceitos e intolerância, quando a palavra de ordem no cristianismo é o AMOR. E quando falta amor e entendimento numa família que tem uma pessoa LGBT, os problemas de ansiedade e depressão, de uso abusivo de substâncias lícitas e ilícitas e o desejo de cometer suicídio[1] são muito maiores e frequentes, porque estas pessoas não só enfrentam desafios dentro de suas casas, mas sobretudo fora delas onde são alvos corriqueiros de preconceito, discriminação e violência. E quando se fala de Brasil, o que mais há é muito desconhecimento sobre a complexidade da sexualidade humana e de seus gêneros; pouca disposição para um debate saudável e racional da questão, e abundantes quantidades de preconceito, discriminação, homofobia e transfobia impregnadas em muitas das esferas que compõem a sociedade brasileira, sejam elas religiosas ou não.

Falar de homossexualidade, de bissexualidade, de transexualidade ou de transgênero é ainda difícil e, por vezes, perigoso. Isso torna a discussão penosa, bem como torna árduo explicar o quão complexas são a sexualidade e a identidade de gênero do ser humano, sendo elas compostas por muitas matizes e com fronteiras muito tênues.

A tendência é partir para uma simplificação tosca que insiste em enquadrar sexualidades e gêneros em caixinhas rígidas e pré-moldadas que só reconhecem a existência de dois gêneros definidos biologicamente e de duas sexualidades – heterossexualidade e homossexualidade –, sendo a primeira considerada como legítima e natural e a segunda, como marginal, anormal e pecaminosa. Desta concepção cria-se um sistema social discriminativo ao qual se dá o nome de heteronormatividade.

Em muitos países a homossexualidade é criminalizada e a transgeneridade é vista como distúrbio mental. Até recentemente a Organização Mundial de Saúde (OMS) mantinha a transgeneridade na lista de doenças mentais presente no manual de Classificação Internacional de Doenças (CID)[2]. Só em 2018 a Suprema Corte da Índia decidiu revogar uma decisão de 2013 que validava uma lei britânica de mais de 150 anos e que, na prática, criminalizava a homossexualidade no país. O próprio Reino Unido só descriminalizou completamente a homossexualidade em 1982[3], quando a Irlanda do Norte foi seu último "país constituinte" a fazê-lo. Esses são apenas três exemplos dos muitos e variados reflexos da heteronormatividade.

As consequências sociais, psicológicas e familiares para aqueles que não se enquadram nessa normatividade são terríveis, mas nem sempre visíveis. Mas das questões LGBTs pouco conhecidas pelo brasileiro médio, sem dúvida nenhuma, a questão da transgeneridade é uma das mais ignoradas – por vez até mesmo pela comunidade LGBTQIA+.

Em uma explicação grosseira, transgênero é o indivíduo que possui uma identidade de gênero que difere do que é considerado típico ao sexo atribuído ao nascer. Desta forma, o indivíduo transexual o qual ao nascer foi atribuído o sexo masculino, pode identificar-se com a identidade de gênero oposta a este sexo, sendo ela uma mulher trans.

Isso significa dizer que, a medida que se desenvolve, esse indivíduo olha para si no espelho e não vê em seu corpo correspondência com o que ele sente que realmente é e se identifica. Porque os gêneros masculino e feminino são muito mais uma construção histórica e social do que biológica, e se não fosse a pressão sociocultural, as pessoas perceberiam o quão complexo é o gênero. Um exemplo disso é o gênero fluído.  Pessoas que são fluídas de gênero ou não se identificam com um único papel de gênero ou com uma única identidade de gênero, ela acaba flui entre eles. Há ainda o caso daqueles cujo gênero muda de tempos em tempos.

O mesmo se dá com a sexualidade que pode ser mais ou menos flexível e as vezes fluídas.

É neste terreno que Felipe insere sua narrativa, criando para Descolorindo Eloáh uma protagonista transexual – tema ainda pouco representado na literatura LGBT –, e vai longe ao inserir na trama outras duas questões tangenciais, igualmente polêmicas e ainda menos exploradas (agora não só na literatura como socialmente): a relação entre fé, família e pessoas LGBTs e as terapias que prometem a reversão sexual.

Escrito como o diário de uma refém da intolerância, Descolorindo Eloáh narra pela voz de uma garota trans a sua rotina de terror psicológico, de violência física e simbólica perpetrada sobretudo por seu pai e por seus colegas de escola, e alimentado pela omissão da mãe e da escola.

O pai de Eloáh é pastor e profundamente homofóbico e transfóbico. Para ele a filha é uma aberração e seu comportamento, os sintomas de uma doença. Ele não perde uma oportunidade para hostilizar, humilhar e diminuir Eloáh. A situação doméstica é a pior possível: tóxica, violenta, sufocante.

Pelo fato de ser pastor poderíamos simplificar dizendo que ele rejeita a identidade de gênero da filha porque considera isso uma violação dos desígnios divino, concebendo-a como pecaminosa e antinatural. Mas é anda pior, porque é também uma questão de imagem e status social.

Silas é um homem corrupto, hipócrita e misógino que se esconde atrás da fé para criar uma imagem de bom moço e pessoa religiosa, logo, digna de mérito e respeito por ser um homem cristão que construiu uma família temente a Deus. Este homem que é respeitado pela cidade e que em casa se alcooliza, violenta psicologicamente a filha, trai, manipula e agride verbalmente a esposa, é o mesmo que lidera uma comunidade religiosa que – pelos indícios deixados pelo autor – tem a mesma visão distorcida sobre as questões de identidade de gênero e de sexualidade que seu pregador. Para esta comunidade, Silas necessita ser a verdadeira personificação da integridade, retidão e honestidade, e se esta é uma comunidade conservadora, ele também não pode ter como filho uma garota trans. Ela precisa “ser homem” e se comportar como “homem”. Aqui temos uma mistura perigosa e explosiva:  uma pessoa que considera a transegeneralidade (e também a homossexualidade) pecaminosa e antinatural e que necessita manter uma coerência entre o que prega e a imagem de si e da família que exibe à sociedade.

Ainda que tenha aqui corrido o risco de generalização, o autor denuncia uma das três posturas comuns das igrejas cristãs no Brasil em relação às uniões homoafetivas e que são descritas pelas pesquisadoras Daniele Trindade Mesquita e Juliana Perucchi[4]:

***

“De modo geral, as posturas das igrejas cristãs no Brasil em relação às uniões homoafetivas podem ser classificadas em três tipos: a rejeição à homossexualidade, concebendo-a como pecaminosa e antinatural. Assim, há o acolhimento dos/as homossexuais pela igreja, desde que eles/as reconheçam que precisam mudar seu comportamento. Outro tipo de postura encontrada no meio cristão é aquela que aceita a conduta homossexual, embora a considere inferior à heterossexual. Existem ainda os defensores da ideia de que a homossexualidade tem o mesmo nível de dignidade que a heterossexualidade (Jurkewicz, 2005). Dentre os três posicionamentos, o mais presente e disseminado é o primeiro, segundo o qual a homossexualidade estaria em um nível inferior na hierarquia das sexualidades (Rubin, 2003), o que justificaria o uso de dispositivos religiosos regulatórios e corretivos com os/as homossexuais. Esta postura é justificada muitas vezes por trechos da Bíblia, interpretados de forma literal pelos/as religiosos/as, de modo que não são consideradas a época histórica e a cultura em que os textos foram escritos originalmente. Dessa maneira, tanto o Antigo, quanto o Novo Testamento são reiterados para justificar a condenação aos homossexuais pelas igrejas. Trechos dos livros de Gênesis, Levítico e Coríntios são os mais citados, sendo que as narrativas de Sodoma e Gomorra e as cartas paulinas recebem destaque.

***

Eu ainda não havia visto na literatura alguém entrar neste terreno antes, mas pelas sinopses de seus outros livros é nítido que Felipe é atraído pelos temas difíceis e polêmicos, o que acho ótimo, porque é um deleite literário sair dos lugares comuns. Mas aqui, especificamente, a coragem de Felipe é tão digna de nota quanto a relevância que a obra ganha por três motivos iniciais: dar visibilidade a questão trans e pôr na mesa o preconceito religioso contra os LGBTs, bem como muitas vezes a fé é usada como justificativa para a violência psicológica e moral contra estas pessoas.

Mas não para por aí. Silas tenta “corrigir” sua filha, ou melhor, “curá-la” através de um tratamento psicológico duvidoso com uma psicóloga tão amoral e antiética que faz arrepiar os cabelos de qualquer profissional da área. Eloáh é submetida ao que o jargão médico chama de Terapia de Reorientação Sexual (chamada ainda terapia de conversão, terapia reparativa ou terapia de reversão sexual), ou como no popular: cura gay. Uma falsa medicina que parte da ideia de que a homossexualidade e a transgeneridade são patologias, doenças ou desvios que podem ser “curados” com terapia, ou práticas, testemunhos e conversões de fé.

As consequências para a saúde psicológica e emocional das pessoas submetidas a tais tratamentos costumam ser devastadoras, mas a prática é comum em diversas comunidades religiosas, e como denunciam Flávio Conrado, Gabriella Morena e Bob Luiz Botelho[5]:

***

“Centenas de igrejas, ministérios e comunidades "terapêuticas" em todo o país continuam usando a prerrogativa de sua liberdade religiosa para ofertar a possibilidade de mudança da sexualidade. Sem base científica e comprovadamente ineficaz, ela causa danos muitas vezes irreparáveis à saúde mental de pessoas LGBTQIA+ o recorrerem ao apoio de suas lideranças religiosas por imaginarem sua sexualidade ou gênero errado ou desordenado.

Profissionais "reversionistas" defendem que "uma pessoa homossexual infeliz com sua sexualidade tem o direito de procurar ajuda", mas este suposto acolhimento guarda, na verdade, uma perniciosa armadilha: quem procura apoio está assolado por dúvidas sobre si, sobre sua fé e com medo de rompimentos na família e na comunidade religiosa. O discurso de ajuda pode soar esperançoso, mas é extremamente violento. Por que tais profissionais não questionam a estrutura de exclusão a que pessoas LGBTQIA+ estão submetidas, contexto onde emerge sua sensação de inadequação, angústia e pedido de mudança?”.

***

Um ano antes da publicação de Descolorindo Eloáh, a prática de reversão sexual por via psicológica foi liberada no Brasil após decisão do juiz federal Waldemar Claudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal no Distrito Federal, o que contraria a resolução CFP n° 001/99, de 22 de março de 1999 cujo artigo 3, parágrafo único, determina que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”[6]. Contra a decisão do magistrado, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) entrou no Supremo Tribunal Federal com ação que pedia cassação do disposto pelo juiz da 14ª, o que aconteceu em abril de 2019, depois de uma liminar concedida pelo STF.

Essa é a quarta razão pelo qual Descolorindo Eloáh é relevante ao debate.

A quinta e última é a descrição que Felipe faz do transtorno de disforia de gênero[7] vivido por Eloáh e que lhe causa a sensação de incompatibilidade entre seu sexo anatômico (masculino) e sua identidade de gênero (feminina) e que lhe causa angústia e um sentimento de rejeição a própria imagem.

Felipe só comete alguns deslizes aparentes e que foram primeiro percebido pela minha colega skoober Luisa Leão (ou Diva). Até certo ponto concordo com minha colega em alguns pontos. O primeiro deles é a cura um tanto rápida e quase completa da disforia. De fato, foi pouco realista a forma como as coisas foram feitas. Elóah quase que resolveu sozinha um problema que perdurou anos e que é de tratamento longo com acompanhamento terapêutico.

Segundo, se Eloáh é uma mulher trans (e esse foi o entendimento que eu tive tanto pela sua pergunta se poderia ser menina como a forma como o personagem Luis se refere a ela no fim do livro, usando o feminino), ela não se referiria a si mesma usando o masculino como acontece insistentemente ao longo de toda a obra. Ela poderia até usar o masculino para se comunicar com as outras pessoas diante das circunstâncias difíceis que vivia, mas usaria o feminino ao se referir a si mesma na narração dos fatos.

Talvez tenha faltado um pouco mais de cuidado com os detalhes.

Vamos a crítica literária.

Descolorindo Eloáh como peça literária: minha crítica

Em termos literários, Descolorindo Eloáh revela ainda que Felipe estava ainda na época um pouco “verde”. Um escritor ainda em busca de um estilo próprio ou definitivo.

Uma das coisas que me chamaram a atenção na forma como a narrativa foi pensada, foi algumas escolhas feitas pelo autor, detalhes, coisas até certo ponto irrelevantes, mas algumas delas me pareceram bastante estranhas enquanto outras me encantou pelos significados imbuídos.

A primeira destas miudezas eu já abordei de certa forma: o título da narrativa.

Descolorindo Eloáh tem um significado dentro da história que lhe é não só poético como bastante apropriado. Ao longo do livro, a personagem vai sendo vítima constante de bullying dos colegas da escola, negligência e indiferença dos educadores funcionários, do desamor e crueldade dos pais e da falsa ciência da suposta psicóloga contratada por seu pai. Isso vai, pouco a pouco, minando o mundo da garota, sua autoestima, o seu amor e sua identidade, seu desejo de viver, sua confiança na vida e nas pessoas. “Como um quadro de aquarela barata jogado na chuva ela vai perdendo suas cores, sua vivacidade. Nada mais apropriado do que o título que o autor confere a sua obra.

O segundo detalhe que me chama a atenção é o nome da personagem que também fala muito da mesma.

Eloáh não é exatamente um nome comum e por isso se destaca facilmente, chama a atenção. Mas mais do que isso, há dois outros aspectos peculiares neste nome. Em primeiro lugar, o nome Eloáh, no Brasil, é majoritariamente escolhido para meninas, mas aqui nomeia um personagem de sexo masculino. Além disso é um dos muitos nomes que designam a divindade dos cristãos e dos judeus, que - apesar das muitas representações artísticas insistirem em representá-lo como alguém do sexo masculino, na verdade é uma divindade sem gênero definido e que no passado já foi referido em ambos os gêneros[8].

Não sei até onde Felipe pretendia, mas ele faz aqui uma associação bastante peculiar. Eloáh é uma pessoa trans e todos os seus problemas estão ligados a essa não correspondência entre sexo biológico e o gênero que ela reconhece como seu, e seu nome – visto no Brasil como feminino – é um dos nomes de uma entidade sem gênero definido, pois como a igreja católica mesma já afirmara: Deus não é homem ou mulher, é Deus. Seja como for, o nome escolhido sugere antecipadamente essa ambivalência (?) ou transitoriedade (?) entre gêneros e ao mesmo tempo - e isso é certo - dá a ideia de que a definição binária do gênero é algo que não dá conta da diversidade de identidades existentes na complexidade do que é ser humano.

As outras miudezas revelam algumas fraquezas da escrita do livro.

O primeiro é um problema de estilo. Felipe na época ainda estava amadurecendo seu estilo, por isso, há uma insistência – bastante repetitiva – de concluir ideias e sobretudo capítulos com frases de efeito. Esse tipo de recurso é interessante e em alguns momentos elegante, poético ou reflexivo, mas quando usado em demasia torna-se cansativo.

 O segundo problema é uma questão de desenvolvimento. A narrativa se desenvolve segundo um padrão, uma rotina, o que torna enfadonho e previsível o próximo passo que a trama dará, ainda que o autor sempre acrescente um pequeno elemento a mais em cada novo capítulo.

O ciclo quase sempre é: Eloáh está em casa e enfrenta os problemas familiares; sai de casa e vai para a escola e lá assiste às aulas e enfrenta seus problemas escolares (sempre nas aulas da mesma professora – o que não é nenhum pouco realista, sou professor, posso falar); depois retorna para casa e o ciclo recomeça. Um pouco mais a frente quando avança a narrativa essa rotina ganha mais um acréscimo: as visitas ao consultório da psicóloga e o padrão passa a se repetir com mais este elemento, de modo que o leitor já intui o cenário em que se dará o capítulo seguinte.

Tipo isso: se Eloáh está em casa, no capítulo seguinte estará na escola. Se sai da escola, é provável que irá direto para casa ou para o consultório. E em um desses dois movimentos (na ida ou na volta da escola) certamente encontrará Luís, o vizinho idoso por quem Eloáh cultiva – e por Luís é também cultivado – um misto de piedade e de carinho filial. Em quase a totalidade do livro, Eloáh não escapa disso, não faz grandes desvios, não se aventura pela cidade, não tem um refúgio, um lugar secreto, uma casa na árvore que fosse ou um banco de praça de onde gostasse de olhar o tempo. Ela não tem momentos de loucura, de rebeldia, de fulga! E isso, sério, cansa muito!

Toda narrativa que já li e que fala de jovens e seus problemas existenciais tem, ocasionalmente, grandes mudanças de cenários, momentos de viverem a cidade, a vila, o campo. Há sempre pontos de ruptura com a rotina e isso é um descanso para o leitor. Um ponto a mais para mantê-lo interessado.

Vejo bastante esta fórmula nos animes: há sempre um acampamento, uma ida à praia, um encontro – o famoso dēto suru (デートする) ou só dēto (デート), um festival com hanabi (花火 – fogos de artifícios) e coisas do gênero que ajudam – sem abandonar a essência da narrativa – a lhe dar mais dinamismo, novos cenários, momentos mais suaves antes de situações mais pesadas, tensas ou depressivas. Bons exemplos são: Koe no Katachi (聲の形), conhecido no Brasil como A Voz do Silêncio, que é uma animação que trata de temas delicados como suicídio e bullying; e o j-drama (dorama japonês), Fujoshi, Ukkari Gay ni Kokuru (腐女子、うっかりゲイに告る, algo meio intraduzível para mim), que trata de forma delicada e muito melancólica da homossexualidade masculina na adolescência, do fenômeno Boy Love (BL) e a questão do suicídio em um país ainda muito conservador e preconceituoso.

A história contada por Felipe é potente, é dramática e forte. Eloáh vive em carne viva, e sei que a rotina é um elemento que dá maior realismo a trama, além de figurar o quão esvaziado de sentido se encontrava a vida dela. Mas senti que – literariamente e para os padrões de exigência dos leitores atuais – esse fluxo repetitivo da rotina de Elóah se reproduziu demasiadas vezes, acabando por se tornar um vício da trama. Inclusive, trata-se de um vício tão arraigado que em um dos capítulos o livro apresenta uma falha de continuidade por conta do costume de se seguir o já citado roteiro (casa – escola – consultório – casa).

A falha é minúscula mas não me escapou.

No capítulo 44, após chegar da rua Silas questiona o que a filha foi fazer naquele dia, um sábado (e isso foi bastante enfatizado), e depois há um conflito entre os dois. Eloáh se recolhe ao seu quarto e uma tempestade se instala sobre a cidade. Contudo, no capítulo seguinte, quando o dia amanhece (ou seja, no dia seguinte a briga e que deveria ser domingo), Eloáh acorda e, ao ver o noticiário, agradece pela suspensão das aulas em decorrência do temporal ocorrido durante a noite.

Aula no domingo?” Foi meu questionamento na hora que li, e como o texto não é claro se a suspensão era apenas para aquele ou para vários dias, só pude supor uma falha de continuidade na narrativa.

Felipe ainda tem algumas esquisitices meio estranhas. Uma delas é a escolha do nome da cidade que – apesar dos muitos nomes estranhos de municípios brasileiros – para mim não fez o menor sentido (Cidade de Confete). Outra é o fato da psicóloga usar "cubos de açúcar" (isso existe no Brasil?).

Mas críticas a parte, ele me aparenta ser um talento em desenvolvimento. Ademais, é valido recordar que quer outro escritor que hoje é renomado, um dia foi – na aurora de sua carreira – alguém que escrevia de forma ainda crua, com falhas ou imitando o estilo algum autor ou movimento já consagrado. É plenamente compreensível e nem Machado de Assis escapou disso (leiam Helena – livro chatíssimo e piegas da fase romântica de Machado).

Mas chega! Acho que já deu para entender minha dificuldade de me identificar com a escrita do autor, ainda que eu recomende veementemente a leitura da obra.

Conclusão

Para finalizar gostaria apenas de falar do que achei da construção psicológica de Eloáh e, na tangente, dos personagens de um modo mais generalizado.

De um modo mais geral, alguns personagens foram construídos de uma forma um tanto caricatural ou um pouco sem personalidade, a exemplo de Silas (que é demasiadamente perverso para se fazer completamente crível); do aluno e terror de Eloáh, o playboy Nicolas (que nada mais é que um valentãozinho que se apoia no prestígio de sua família e na permissividade interesseira da direção da escola); da psicóloga picareta Elisa (que é um pouco sem personalidade, mas que me fez crer que os órgãos de regulamentação da profissão deveriam ficar mais atentos aos profissionais em exercício); e da mãe dominada – e um tanto marionete – de Eloáh (que encarna o papel clássico de mulher muda e dominada, vítima e cúmplice da violência perpetrada em casa).

Qualquer um deles poderiam ser reais? Acredito que sim, porque personificam realidades de fato: hipocrisias religiosas, violência doméstica, clientelismo, privilégios sociais, picaretagem de falsos médicos e mulheres que “por amor” se silenciam frente a violência contra elas e contra seus filhos. No entanto, não consegui ver muita profundidade e complexidade nestes personagens. Eles são reflexos da realidade, mas não me pareceram de fato reais. Eloáh, no entanto, me convenceu muito mais.

Eloáh é repleta de medos, frustrações, complexos, receios, desejos e dores. Uma miscelânea de sentimentos. E mais do que isso, ela é sensível, e não apenas porque consegue sentir no ar as tensões entre seus pais, a hipocrisia e a transfobia nas ações e falas de seu pai ou porque lê o preconceito estampado nos olhares dos moradores da Cidade de Confete ou na crueldade de seus colegas de turma. Não. Eloáh é sensível sobretudo porque ainda preserva dentro de si a força para ser gentil mesmo com quem negligencia o seu bem-estar (a mãe), ou com aqueles que só necessitam de um pouco de atenção (Luís, o vizinho idoso e viúvo que remói a perda da esposa).

Eloáh não sabe lidar muito bem com o afeto e atenção que Samuel (único amigo de Eloáh, negro, homossexual[?] e que se torna o principal porto seguro da garota), que Lilian (professora nova de língua portuguesa) ou mesmo que Luís lhe ofertam – porque só conheceu a dor e a violência onde deveria haver carinho e proteção. Mas ainda assim, consegue manter parte de si íntegra, amorosa, yasashī (やさしい)[9].

Isso não quer dizer que ela não guarde dentro de si sentimento de revolta, de raiva, mas o que mais transborda por seus poros é uma sensação de cansaço misturado a aflição que lhe faz flertar com o suicídio. Mas em meio a esta névoa, Eloáh é fundamentalmente uma jovem capaz de pequenos e belos atos de gentileza. Tudo isso a torna bem mais complexa do que aparenta e isso me fez me identificar bem mais com ela do que com a maioria dos protagonistas de sua vida.

Enfim, penso que Felipe tem futuro e provavelmente seu livro mais recente, Para onde vão os Suicidas?, deve corrigir parte das limitações que percebi em Descolorindo Eloáh, porque todo autor é um escritor em construção. Gostaria apenas de pontuar que achei o desfecho (epílogo) um pouco exagerado. Havia como dar destino a Silas de outra forma, com resultado semelhante, porém mais crível. E senti falta de um “o que aconteceu depois” mais detalhado no caso da protagonista.

Ademais, independente de minhas críticas, o livro é importante, sua leitura é necessária, principalmente como porta de entrada para conhecer o tema da transgeneridade em sua relação com os conflitos familiares, religiosos, sociais e psicológicos. Importante também porque denuncia a falsidade dos tratamentos que prometem a “cura” de algo que não é doença, não é pecaminoso e muito menos anormal.

A edição lida é da Editora Pendragon, do ano de 2019, digital, e sua versão física possui 242 páginas.

Sobre o autor

Felipe Saraiça é vencedor do prêmio Pérolas da literatura e escreve desde 2016. É autor de Palavras de rua — que foi adaptado para o cinema —, Para onde vão os suicidas, Descolorindo Eloáh e o livro de poemas O amor é um plágio. Já quis ser jogador de futebol, cantor, mas acabou se encontrando verdadeiramente na literatura, um sonho que surgiu de forma repentina, mas se tornou parte essencial da sua vida. Aborda assuntos delicados em suas narrativas e acredita que os livros têm o poder de transformar as pessoas. Também ganhou o Festival de Cinema de Caruaru com o longa-metragem baseado em seu primeiro livro, ao qual escreveu o roteiro junto ao produtor Léo Batista.

Preview do Google Books

Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

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[4] MESQUITA, Daniele Trindade; PERUCCHI, Juliana. Não apenas em nome de Deus: discursos religiosos sobre homossexualidade. Psicologia & Sociedade [online]. 2016, v. 28, n., pp. 105-114. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1807-03102015v28n1p105>. Acesso em: 18 jan 2022.

[9] Desculpem-me por recorrer a um termo estrangeiro, mas é que o entendimento japonês do que é ser gentil traduz com mais fidelidade meus sentimentos e impressões em relação ao desenho psicológico do personagem. Sei que pouquíssimos conseguirão compreender-me usando este termo – yasashī – mas para os japoneses ela descreve a pessoa que é dotada de compaixão pelos outros, de sentimentos delicados, de modéstia, de humildade, de bondade, de suavidade ou algo que possui uma natureza refrescante e graciosa.

domingo, 26 de dezembro de 2021

2021 #AnoDaItália: Os autores que lemos na Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo (CALCT)


Italo Calvino

Italo Calvino nasceu em Santiago de Las Vegas, Cuba, em 15 de outubro de 1923, e foi para a Itália logo após o nascimento. Formou-se em Letras e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, tendo atuado muitos anos como militante e membro do Partido Comunista Italiano, até que se desfilou-se em 1957. 

Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX e sua primeira obra foi Il sentiero dei nidi di ragno (A trilha dos ninhos de aranha), publicada em 1947. Uma de suas obras mais conhecidas é Le città invisibili (As cidades invisíveis), de 1972. 

Morreu em Siena, em 19 de setembro de 1985.

Livros dele no blog: Se um Viajante numa Noite de Inverno ( de janeiro)

Elena Ferrante

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que prefere manter sua identidade em segredo sob a justificativo poder escrever com liberdade, e para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma imagem pública. Especula-se que seja uma tradutora, Anita Raja, que nasceu em Nápoles e que seja casada com o também escritor Domenico Starnone.

A autora concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e intermediadas pelas suas editoras italianas. A única certeza sobre ela é que escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance, L'amore molesto, livro resenhado nesta postagem.

Livros dela no blog: Um Amor Incômodo (7 de fevereiro)

Niccolò Ammaniti

Niccolò Ammaniti nasceu em Roma e é um dos mais conceituados autores italianos da atualidade. Os seus livros são sucessos de vendas internacionais e estão publicados em quarenta e quatro países. Escreveu os romances BranchieTi prendo e ti porto via e Não tenho medo, além da antologia de contos FangoComo Deus Manda recebeu o prêmio Strega, mais importante e disputado da literatura italiana. A Festa do Século, seu livro seguinte, demonstra todo o talento do autor por meio de uma crítica tão criativa quanto impiedosa à sociedade. Com Eu E Você, Ammaniti comprova a versatilidade literária que o levou a ser traduzido para mais de quarenta idiomas.

Livros dele no blog: Eu e Você (7 de março)

Referências

https://pt.wikipedia.org/wiki/Italo_Calvino
https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00077
https://pt.wikipedia.org/wiki/Elena_Ferrante
https://en.wikipedia.org/wiki/Niccol%C3%B2_Ammaniti




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