Referências
https://pt.wikipedia.org/wiki/Italo_Calvinohttps://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00077
https://pt.wikipedia.org/wiki/Elena_Ferrante
https://en.wikipedia.org/wiki/Niccol%C3%B2_Ammaniti
Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo
7 de março de 2021, ano da Itália
“O mimetismo batesiano se verifica quando uma espécie
animal inócua, aproveitando sua semelhança com uma espécie tóxica ou venenosa
que vive no mesmo território, consegue imitar a cor e os comportamentos dessa
última. Assim, na mente dos predadores, a espécie imitadora é associada à
perigosa, o que aumenta suas possibilidades de sobrevivência”.
(Niccolò Ammaniti, epígrafe)
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Confira a resenha do terceiro livro da IV Campanha Anual
de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.
Sinopse do enredo
Roma,
fevereiro de 2000. Munido de comida, bebida, livros e jogos, Lorenzo Cuni está
escondido no porão de seu prédio, rodeado de objetos empoeirados de uma
condessa morta, esperando que a semana branca (settimana bianca) acabe e ele possa enfim retornar para o andar de
cima e contar para a mãe o quão divertido foi passar aqueles dias esquiando nos
alpes italianos com seus amigos.
Mentir
e esconder-se ali era a única opção depois que ele inventou uma viagem que não
existia com amigos que ele nem se quer conhecia. Uma maneira louca de fugir da
perseguição dos pais que queriam que ele tivesse amizades.
Tudo
parecia dar certo. Ele conseguiu enganar os pais em relação a viagem, e
conseguiu despistar a mãe quando esta queria levá-lo ao ponto de encontro com
os tais amigos. Depois disso, conseguiu se instalar secretamente em seu refúgio
sem grandes esforços. Apesar disso, ele não contava que um segundo elemento se
introduziria em seus planos: a meia irmã Olivia, com a qual Lorenzo quase não
teve nenhum contato e que era viciada em drogas.
Naquele
justo momento, Olivia aparece em busca de algumas coisas pessoais no porão da
casa do pai, de algum dinheiro e de um lugar para “ficar limpa”, ou seja, para
esperar passar o tempo de abstinência dos narcóticos que usava. Sob coerção,
Lorenzo se vê obrigado a “hospedar” a irmã em seu refúgio secreto e, por vários
dias, conviver com ela, uma quase desconhecida. É assim que Olivia se soma a
equação de Eu e Você, e à vida do
jovem Lorenzo.
Resenha
Quando
comprei Eu e Você, em 2019, de
planos fazer naquele ano a quarta edição da CALCT, fiquei um
tanto receoso porque a capa e o título sugerem mais um daqueles romances de
amor adolescente e dramático. Todavia o livro de Niccolò Ammaniti vai para um
caminho totalmente oposto, e se ainda
assim Eu e Você (no original, Io e Te) seja um tanto dramático, é um livro sem muito romantismo,
cheio de originalidade e que conseguiu me agradar com seus personagens, sua
narrativa e sua leitura ágil e descomplicada.
Li numa resenha que este livro promete pouco e entrega pouco, mas para
mim, esse “pouco” foi mais do que o suficiente. É claro que Eu e Você não explora as belas paisagens italianas ou os cenários
romanos seculares, mas, por outro lado, explora um pouco da natureza humana
daqueles que são deslocados. O próprio protagonista e narrador é daquelas
almas egocêntricas que preferem a solitude de estar em sua própria companhia
porque considera que não há nenhuma outra associação melhor, mas que se vê –
por atrito – forçado a amadurecer. A outra protagonista é uma pessoa destruída
pelo desprezo de seus pares e pelo vício das drogas. Alguém desajustado, que
mesmo não estando à espera de que alguém lhe estenda a mão, luta com suas
próprias forças para encontrar um caminho.
Ammaniti parece gostar dos romances
dramáticos e de família, a exemplo do seu elogiado Como Deus Manda (Come Dio
Comanda), onde os dois protagonistas, pai e filho, vivem uma relação
baseada na violência e no conflito. Eu e Você é mais
suave, mas possui seus próprios tons dramáticos. A temática sobre as drogas já se tornou
corriqueira – afinal, mais do que nunca, o uso de drogas se tornou um fato
universal –, mas está em perfeito equilíbrio com a proposta e nível do livro.
Ainda assim, ele foi bom o suficiente para garantir uma adaptação para o cinema
realizado em 2012 por Bernardo Bertolucci e que rendeu várias indicações para o
Prêmio David di Donatello.
A
escrita de Ammaniti é ágil, leve e sucinta sem deixar de ser descritiva e bem
escrita. É prosaica, mas não destituídas de alguma poesia. Há um
equilíbrio entre diálogo e narração, e o narrador, por sua personalidade
individualista é irônico e opinativo. Mas o interessante nesse livro é o choque
existente entre duas gerações de irmãos tão distintos entre si. Ele amado e
mimado, ela ovelha negra, perdida, indesejada. Desse choque nasce uma novela
interessante, ainda que limitada. Mas o que quero mesmo é destacar seus
personagens muito bem-feitos.
Lorenzo
é um personagem tão peculiar quanto interessante. Ele é um ator nato e o meio termo entre um adolescente esnobe e
malcriado, mas sensível, e o futuro projeto de um manipulador taciturno,
antissocial e calculista, mas que não se concretiza. Observador,
inteligente, e egocêntrico, mas pouco dado a conversar com aqueles que não
faziam parte de seu círculo familiar. Só a mãe, o pai e a avó lhe importavam.
Os
pais se preocupam com a pouca sociabilidade do filho. Quando era pequeno,
Lorenzo só respondia aos estranhos com “sim, não, e não sei”, e se insistissem,
dizia aquilo que eles queriam ouvir. Quando “os outros” não o deixavam em paz,
se tornava agressivo e, por isso, os pais preocupados o mandaram para um
psicólogo, que o menino tratou logo de tentar enganar, fazendo-se passar por um
“menino normal”. Contudo o diagnóstico não poderia ser ao mais exato: Lorenzo
era “incapaz de sentir empatia pelos
outros”, “[...] tudo que está fora de
seu círculo afetivo não existe, não lhe suscita nada” e “acredita que é especial e que apenas pessoas
especiais como ele podem compreendê-lo”.
Os
pais, obviamente, desacreditaram deste diagnóstico e tiraram o menino do
tratamento. Para eles, o filho era “afetuoso”, “um menino normal”. No entanto,
aquela decisão foi a chave para que Lorenzo aprendesse a dissimular, fingir ser
quem não era para que as pessoas o deixassem em paz. Se misturava com os outros
jovens numa distância segura o suficiente para que eles e os pais pensassem que
ele era um “deles”, que tinha amigos, e longe o suficiente para não ser
importunado. Como um inseto havia aprendido a mimetizar.
“Eu me misturava como
uma sardinha em um cardume de sardinhas, me mimetizava como um bicho-pau entre
ramos secos”.
Contudo,
ao entrar no liceu[1] público a técnica deixa de
ser eficiente e ele se torna alvo de bullying. O que lhe resta é evoluir, não
como pessoa, mas como imitador, e é através da imitação das práticas e
trejeitos dos mais temidos da escola que ele consegue afastar todo os indesejáveis.
Ele passava a ser uma mosca que imitava as vespas.
“Em algum lugar, nos trópicos, vive uma mosca que imita as vespas. Tem
quatro asas, como todas as de sua espécie, mas mantém uma sobre a outra, e
assim parecem apenas duas. Tem listras amarelas e pretas no abdome, antenas,
olhos protuberantes e até um ferrão de mentira. Não faz nada, é boazinha. Mas,
vestida como uma vespa, é temida pelas aves, pelas lagartixas, até pelos seres
humanos. Pode entrar tranquilamente nos vespeiros, um dos lugares mais perigosos
e vigiados do mundo, e ninguém a reconhece.
Eu tinha errado tudo.
Era isso que eu devia fazer.
Imitar os mais perigosos”.
Desse modo, Lorenzo continuava sozinho e isolado.
Sentia-se feliz sozinho, mas ao lado dos outros tinha que representar, o que
chegava a amedrontá-lo. Além disso, inventava mentiras e casos engraçados da
escola para deixar os pais tranquilos. Foi nesse círculo interminável de
mentiras e dissimulações que ele acabou por inventar que alguns amigos haviam o
convidado para esquiar e teve que buscar uma maneira de sustentar sua mentira.
Nesse ponto começa de fato a história do livro.
[ALERTA DE SPOILER]. Olivia por sua vez é pintada pelo
narrador sob as cores da irmã-mistério, desconhecida, inoportuna, indesejada,
inteligente e boa mentirosa, mas, ao mesmo tempo, objeto de uma curiosidade
pouco confessada e que ao olhar do irmão vai pouco a pouco se transformando,
pela força da convivência forçada, como alguém em mutação.
[ALERTA DE SPOILER]. Ela, por sua vez, oscila da
indiferença a curiosidade, das pequenas implicâncias a solidariedade fraternal
que quebra lentamente o iceberg em que Lorenzo estava preso. Na maioria do
tempo padece dos efeitos da abstinência, mas, nas suas falas, é possível
perceber o ressentimento que nutria do pai e da madrasta.
É interessante notar que Olivia na história funciona como
o ponto de pressão de Oliver, forçando-o a abandonar seu egocentrismo para
ajudá-la em um momento em que ela se encontra extremante vulnerável e doente.
[ALERTA DE SPOILER]. Eles dois não conviveram, mal se
conheciam, e se viram em pouquíssimas oportunidades, mas a relação irmão e
irmã, com seus altos e baixos, birras e solidariedades está ali, explícita,
palpável. E desse modo aquele breve tempo juntos acaba por impulsionar o lado
mais humano do garoto e contribui para seu crescimento e amadurecimento por
forçá-lo a deixar de olhar para si, para olhar para o outro. Uma temporada
breve, mas significativa ao ponto de levar o menino a ampliar seu círculo
afetivo outrora tão estreito.
Enfim, o desfecho é singelo e muito
sensível, sem deixar de ser, até certo ponto, realista e verossímil. O livro
como um todo não é um clássico, e rapidamente caiu no esquecimento, mas tem
qualidade e te prende, sendo, em parte, até comovente.
A
edição lida é da Editora Bertrand Brasil, do ano de 2013 e possui 160 páginas.
Sobre o autor
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Resenha
[1]O
liceo italiano corresponde, aproximadamente, a nosso ensino médio, antigo
segundo grau. Dura cinco anos, e o aluno pode optar entre o liceo scientifico e o liceo classico. (Nota original do
tradutor)
Por Eric Silva
28 de fevereiro de 2021, Ano da Itália
“Bienvenido a un nuevo libro – desgraciadamente el último – zafoniano”
(Émile de Rosiers
Castellaine, La Ciudad de Vapor)
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Livro póstumo de Zafón, La Ciudad de Vapor em sua edição original. |
Confira a resenha de mais uma obra do escritor
barcelonês, penúltima a ser resenhada para o Especial Zafón e última a ser publicada no mundo.
Sinopse
do enredo
La Ciudad de Vapor (A
Cidade de Vapor) é uma coletânea que reúne onze contos de Carlos Ruiz Zafón,
três deles inéditos e os demais publicados de forma dispersa em diferentes
publicações entre os anos de 2002 e 2012. Contos que ampliam o universo
literário de sua mais importante obra, a quadrilogia d’O Cemitério dos Livros
Esquecidos, além de apresentar
personagens novos que não figuram na série e personagens reais cujas vidas são
recriadas pela pena gótica e trágica do escritor barcelonês.
O conto que inaugura a
obra, Blanca y el adiós, nos dá
vislumbres da difícil infância de David Martín, um dos muitos gênios malditos e
desafortunados da Zafón, no caso um escritor, que é também personagem principal
do livro O Jogo do Anjo. Neste conto até então inédito, Zafón narra como o
pequeno David conheceu a menina Blanca, uma garota rica que experienciava a dor
causada pelos problemas familiares entre seus pais e que, pelo acaso de um
encontro fortuito no calçadão de uma livraria, acaba conhecendo David e se
tornando, mais tarde, a primeira musa inspiradora das narrativas fantásticas do
garoto.
Além de Blanca y el adiós, no livro, Zafón
dedica ainda um segundo contos ao personagem de O Jogo do Anjo. No desconcertante Sin nombre, o autor narra a história sombria e misteriosa do
nascimento de David, bem como nos apresenta as várias incógnitas que giram
entorno da identidade de sua mãe, uma garota desesperada que vaga pelas ruas
cobertas de neve de uma Barcelona indiferente enquanto sente as dores do parto
e busca auxilio.
Em Una señorita de Barcelona, Zafón conta a história soturna de
Eduardo Sentís, um fotografo arruinado que herdara as dívidas de um negócio
falido de seu patrão e que encontra como recurso de vida sua própria filha e o
talento da menina para encarnar personalidades de pessoas mortas para dar
pequenos golpes em familiares e amantes desesperados e enlutados.
Já em Rosa de Fuego, o escritor dá um recuo no tempo e retorna ao século
XV para contar as origens da família Sempere e principalmente do Cemitério dos
Livros Esquecidos, a colossal biblioteca secreta e importante personagem dos
livros da série que leva seu nome. Neste conto, resenhado individualmente aqui
no blog em dezembro de 2020, Zafón narra a história da chegada do hacedor de laberintos, Edmond de Luna, a
uma Barcelona arrasada pela febre e de como o regresso do desfortunado
engenheiro seria responsável por uma tragédia ainda maior que “habría de teñir el cielo de la ciudad de
fuego y sangre”.
A temática das origens dos
Sempere e do grandioso palácio de livros têm continuidade no quinto conto da
coletânea, El Príncipe de
Parnaso, também resenhado
individualmente aqui no blog. Nesse conto Zafón avança pouco mais de um século
em relação a Rosa de Fuego e recria
de forma trágica, gótica e romântica a história da juventude de Miguel de
Cervantes, escritor real e expoente da literatura clássica espanhola, para
contar como este cai nas garras diabólicas de Andreas Corelli, outro personagem
fundamental do livro O Jogo do Anjo.
Por sua vez, Leyenda de navidad toma emprestada a
temática do natal para contar mais uma história (esta muito breve) de terror e
de maldição. Em outro contexto, o tema frio e obscuro de um dia natalino na
cidade catalã é novamente resgatada na história seguinte, Alicia, al alba, que narra o encontro de um jovem empregado de um
bazar com uma misteriosa moça que tenta penhorar uma preciosa guirlanda de
perolas e safiras durante os bombardeios da Guerra Civil Espanhola.
Na sequência, Hombres de gris, avança para o momento
histórico espanhol seguinte, ou seja, para o contexto do regime franquista, e
narra a história de um assassino de aluguel que retorna a Barcelona que
abandonara muitos anos antes, a fim de cumprir a mais difícil de suas missões e
salvaguardar a estrutura que sustenta o regime ditatorial de Franco.
Por fim, as três últimas
narrativas são breves e versam sobre temas muito distintos entre si.
Na curtíssima narrativa de
La mujer de vapor, Zafón fala de como
um ex-detento não tendo onde morar passa suas noites em praça pública até ser
convidado por uma moça para viver em um dos muitos apartamentos abandonados de
um prédio condenado, e lá encontra a felicidade em meio a bons e improváveis
vizinhos. Enquanto isso, em Gaudí em
Manhattan, Zafón volta aos grandes personagens históricos da Espanha para
contar sobre o misterioso projeto de um hotel planejado pelo arquiteto catalão
Antoni Gaudí que deveria ter ser construído na ilha de Manhattan, o que jamais
chegou a ser concretizado.
Por fim, La Ciudad de Vapor se encerra com a mais
breve das narrativas da coletânea, Apocalipsis
en dos minutos, no qual o narrador conta seus últimos momentos de vida
antes do fim do mundo.
Resenha
Livro póstumo de Carlos
Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor é
também o último a ser publicado do autor barcelonês cuja obra literária conta
agora com nove livros. A coletânea reúne narrativas curtas de um Zafón maduro e
fortemente influenciado pela atmosfera com a qual ele revestira A Sombra do Vento, e cada vez mais distante daquele Zafón que escrevera
a cinematográfica porém infantil Trilogia da Névoa.
Os contos reunidos em La Ciudad de Vapor não só resgatam as
origens dos principais personagens da tetralogia como também recriam a
Barcelona – desde sempre antiga – de A
Sombra do Vento. Recriam a melancolia e a frieza de uma cidade ora
mergulhada em neblina, ora recoberta de neve e gelo, mas sempre indiferente e
impassível em relação aos dramas, às violências e às tragédias vividas por seus
filhos. Uma cidade que abriga emudecida as muitas histórias que se interpõem e
compõem o teatro e o palco do drama humano encenado por muitas vidas anônimas e
públicas, mas todas elas marcadas pela dor, pela perda, pela miséria e,
sobretudo, pela tragédia.
Não há um só conto desta
obra que não carregue as marcas da tragédia, da crueldade ou então da
decadência humana, tendo algumas poucas almas um fulgor que acalenta os
perdidos, os malditos e os desgraçados que perfilam nas páginas do livro. Não é
à toa que os cenários são quase sempre soturnos, noturnos, decadentes, cobertos
de névoas, de neve e gelo ou chuvosos.
Como disse, neste conto a decadência
e a corrupção humana estão por todo o livro, mas destacadamente em Una señorita de Barcelona. Nele Zafón
relata o declínio de um pai que pouco hesita – em troca de dinheiro – em submeter
sua única filha, ainda pequena, a fazer o papel de substituta da menina morta
de uma família abastarda e enlutada. Mais tarde, o mesmo pai também não hesita
em prostituir a filha feita moça e fazer dela seu ganha-pão. Uma garota que
passa a viver narrativas que ela mesmo cria para iludir e roubar homens
consumidos pela dor e pela perda, e que no processo se dilui na identidade de
pessoas mortas como forma de preencher os vácuos e os vazios de sua própria
vida.
Mas, mais do que um conto
trágico, Una señorita de Barcelona
também resgata, em escala menor, um estilo de escrita zafoniana que cria um
caleidoscópio de histórias e tragédias pessoais que se cruzam e se entremeiam a
partir do encontro de várias pessoas com passados melancólicos e desgraçados. Trata-se de um caleidoscópio de narrativas
que Zafón explora intensamente em Marina e sobretudo
na quadrilogia do
Cemitério.
Dos contos, os mais breves
são precisamente os mais potentes, surpreendentes e impactantes. É o caso de Sin nombre, o mais desconcertante de
todos, o mais sombrio, cru e perfeito de toda a obra. Nele Zafón traz a vilania
e podridão humana tenebrosamente potencializada por um elenco de personagens
incógnitos e dentre os quais somente a criança recém-nascida possui um nome. Feroz,
este é o melhor dos contos da obra e o anonimato de seus personagens amplifica
seu caráter sombrio, porque aquilo que não tem nome a mim me parece também não
ter rosto, o que é ainda mais sombrio.
Forte é também o desfecho
surpreendente de La mujer de vapor bem
como as cenas descritas nos parágrafos que encerra o enigmático Alicia, al alba. Este último é também outro
conto melancólico, envolto em mistérios, em brumas e neves, o que ressaltou em
mim a impressão de que Zafón tinha atração não só pela tragédia, mas pela falta
de calidez do inverno, pelo não dito e pelos mistérios de um rosto feminino perdido
no passado e marcado pela tristeza silenciosa.
Por fim, dos contos mais
curtos, o menor de todos, Apocalipsis en
dos minutos, é exatamente o que seu título anuncia: uma narrativa com um
tempo narrativo tão curto e escrito em linhas tão breves que o próprio texto
pode ser lido em dois minutos.
Digo que em conjunto são
contos que, como elucida o editor Émile de Rosiers Castellane, trazem elementos
de muito gêneros literários: os livros de formação (aprendizagem), os
históricos, as obras góticas, os thrillers
– sobretudo de terror –, as histórias românticas e o caleidoscópio de
narrativas do qual falamos, ou, nas palavras de Castellane, “el relato dentro del relato”. Ao mesmo
tempo, eles criam uma linha do tempo da história da mais importante cidade
catalã, indo dos finais da Idade Média no trágico e fantástico Rosa de Fuego até o futuro impreciso
porém igualmente trágico e (agora) apocalíptico de Apocalipsis en dos minutos.
O estilo cinematográfico e as construções metafóricas
e estilísticas que tanto caracteriza a fase madura de Zafón estão lá também e
representaram para mim – que li a obra em seu idioma materno – um desafio de
tradução e compreensão linguística, semântica e metafórica. Através destas
construções metafóricas e cinematográficas Barcelona se veste com mantos de
fogo, de cinzas e de neve, neblina e vapor, justificando o título da coletânea
e resgatando uma vez mais os cenários e contextos prediletos de um autor que
flertava com o trágico e com o gótico e que gostava de desnudar as misérias
humanas em narrativas repletas de aventuras, História, poesia e mistério.
Uma vez mais me despeço de meu escritor predileto, de
suas tramas carregadas de mistérios e melancolias. Falta agora resenha apenas o
livro Marina, e terei resenhado
toda a sua obra.
Enfim, sigo ansioso pela publicação de La Ciudad de Vapor em português para que
ele ocupe, junto aos seus irmãos, o espaço que lhe é de direito na minha
estante.
A edição lida é digital da
Editora Grupo Planeta, do ano de 2020 e possui, em sua edição física, 224
páginas.
***
Nota: os
leitores que não foram iniciados no labiríntico e caleidoscópio universo do El Cementerio de los Libros Olvidados sugiro
que leia primeiro a quadrilogia que começa com A Sombra do Vento e encerre com La
Ciudad de Vapor. As narrativas farão mais sentido com estas referências.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
Postagens relacionadas
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Zafón – Resenha de Releitura
As Luzes de Setembro – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
El Príncipe de Parnaso (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
La
Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Jogo do Anjo – Carlos Ruiz Zafón
– Resenha
O Labirinto dos Espíritos – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Palácio da Meia-noite – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Príncipe da Névoa – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Prisioneiro do Céu – Carlos Ruiz
Zafón – Resenha
Por Eric Silva para a 4ª Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo
07 de fevereiro de 2021, ano da Itália
“Talvez eu quisesse tentar estabelecer
entre nós uma intimidade que nunca existira, talvez eu quisesse confusamente
fazer com que ela soubesse que eu sempre fora infeliz.”
(Elena
Ferrante – Um Amor Incômodo)
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Edição Brasileira, pela editora Intrínseca. Preço de capa: R$ 39,90 |
Confira a resenha do segundo livro da IV Campanha Anual
de Literatura do Conhecer Tudo que neste ano homenageia a literatura italiana.
Sinopse
do enredo
Delia é uma desenhista de
quadrinhos que abandonou sua cidade natal, Nápoles, para fugir do seu passado e
da relação complicada que possuía com sua família. A única pessoa com quem a
desenhista mantinha proximidade era com Amalia, sua mãe, que frequentemente ia
a Roma visitá-la. Entretanto, mesmo essa presença um pouco constante da mãe era
indesejada e incômoda a Delia, até o dia que Amalia é encontrada morta em uma
praia em circunstâncias misteriosas: seminua, vestida apenas com um sutiã de
grife.
A morte inesperada da mãe
obriga Delia a retornar à Nápoles e enfrentar novamente o seu passado marcado
pela violência doméstica causada pelos rompantes de raiva e ciúmes obsessivo de
seu pai. Nessa viagem de volta ao passado, ao mesmo tempo em que busca lidar
com a perda da mãe, a quadrinista se vê diante do desafio de buscar preencher
as lacunas do passado, encarar os fortes sentimentos que Amalia lhe provocava e
descobrir como ocorreu a sua morte. Mas é principalmente a figura do suposto
amente da mãe, Caserta, que persegue as lembranças do passado e também o
presente de Delia.
Entorno da figura de Amalia e
Caserta gira a curiosidade e o desejo sôfrego de Delia de compreender o que de
fato havia acontecido entre os dois no passado, provocando na italiana a
reflexão dos fatos que se deram em sua infância e que levaram a deterioração da
sua relação com a mãe e também com o pai.
Resenha
Elena Ferrante é uma das mais curiosas escritoras italianas que
já ouvi falar. Não só por conta do sucesso de sua obra composta de nove livros
– todos já publicados no Brasil – como também pelo mistério que envolve sua
identidade, segredo este que já rendeu investigações e polêmicas na Itália há
alguns anos.
Nunca havia lido nada de Ferrante apesar do sucesso da escritora entre os leitores brasileiros, mas resolvi fazê-lo por conta da IV Campanha Anual de Literatura, que nesse ano homenageia a literatura italiana. Por força desse fator, decidi ter meu primeiro contato com a obra da escritora a partir de seu livro de estreia Um Amor Incômodo (L’amore molesto), que segundo dizem os leitores assíduos da italiana é um livro ainda da fase pouco madura da escritora e, logo, ainda um pouco distante da sua escrita atual.
Um Amor
Incômodo é um livro
intimista e com uma caraga dramática pesada, mas que aborda com muita sensibilidade
os desdobramentos emocionais na vida adulta de uma infância marcada pela
violência doméstica.
Publicado em 1992, a obra foi adaptada em filme homônimo pelo
cineasta Mario Martone em 1995, mas só em 2017 o livro foi publicado no Brasil.
O enredo conta a história de Delia, uma quadrinista
quadragenária, profissionalmente realizada, mas emocionalmente abalada pelo
passado familiar, o que imprime em seu comportamento um forte desejo de
distanciamento dos seus familiares.
![]() |
Delia (interpretada por Anna Bonaiuto). Cena do filme L'amore Molesto (1995). |
Delia é o tipo
de personagem introspectivo que se perde bastante nos próprios sentimentos e
pensamentos. Como a história se passa no momento em que ela tenta lidar e
processar a perda da mãe encontrada afogada no dia do aniversário da filha,
durante grande parte da narrativa, Delia
divaga sobre o passado e vai, ao mesmo tempo, reconstruindo a linha histórica
de lembranças e memórias não muito confiáveis. Essa reconstrução é
importantíssima na trama, porque nos revela o passado da protagonista ao mesmo
tempo que, por um lado, nos elucida as circunstâncias que fizeram sua relação
com a mãe se tornar insustentável e, por outro, desvenda os últimos passos de
Amalia antes de ser encontrada morta.
![]() |
Vista da cidade de Nápoles com Vesúvio ao fundo. Nápoles é o principal cenário do livro de Ferrante. Imagem de Damirux. Wikimedia Commons. |
O enredo em si
é esse reencontro da protagonista com o seu passado, com ela
mesma e com as lembranças de sua relação com a mãe. Mas mesmo sendo conturbada
essa relação entre mãe e filha, é ela que dá forma e norte a personalidade da
protagonista que inicialmente demonstra uma aversão quase que instintiva e
bastante intensa pela presença de Amalia, chegando a se sentir um tanto
aliviada com a morte de sua progenitora. No entanto, gradativamente vai se
revelando que, na verdade, essa aversão é fruto de um sentimento frustrado e
infantil de desejo de simbiose, ou
melhor dizendo, de querer ser a mãe, fundir-se e confundir-se com a
personalidade materna, como também observa Aline Aimee. Daí vem o título do
livro. O amor de Dalia por Amalia era
tão cheio de marcas, complexos e sentimentos conflitantes que ele se tornava incômodo, angustiante, sofrido.
A principal marca da personagem principal na narrativa é sua
difícil relação com a mãe. Delia analisa e reconstrói essa relação a partir das
memórias que possui de sua infância com Amalia, o pai, o tio e os vizinhos:
Caserta, o menino Antonio e o avô confeiteiro de Antonio. Ao mesmo tempo ela
envereda numa busca por reconstituir os últimos acontecimentos vividos por
Amalia, como sua reaproximação com o suposto amante do passado, Caserta, e
também fechar as lacunas que explicariam as circunstâncias de sua morte.
A minha opinião sobre a
personagem principal é que ela não é a figura mais importante de sua própria
história e perde um pouco de seu protagonismo para a figura da mãe,
personagem forte e dúbio e que, por isso, me faz lembrar de outra personagem
feminina: Capitu, do livro Dom Casmurro,
obra icônica do escritor brasileiro Machado de Assis.
Amalia, cuja
morte é o motivo de existir enredo, rouba a cena por ser uma personagem difícil
de precisar e de descrever, mas que ao mesmo tempo é a cola que une todo o elenco
do livro e os fios de sua trama. Sem ela, simplesmente, não existiria história.
![]() |
Amalia jovem, interpretada por Licia Maglietta (1995). |
Em sua juventude, a mãe de Delia é descrita por Ferrante como
uma mulher bonita, risonha e provocante, que buscava preservar o bom humor e o
gosto pela vida, mesmo vivendo em um ambiente sufocante e marcado pela
violência. Casada com um pintor fracassado que sobrevivia com a venda de
pinturas baratas de temas vulgares, Amalia sofria constantemente com as
agressões do marido extremamente ciumento e que sempre a agredia. Mesmo em
ambientes públicos, quando algum homem se dirigia a ela e a mesma esboçava
algum tipo de simpatia, Amalia costumava ser vítima das agressões. Os abusos
também eram muito comuns por conta dos constantes presentes que Amalia recebia
do vizinho Caserta que era sócio de seu marido nos negócios de vendas de
pinturas.
Desse modo, o tema da violência doméstica se torna um elemento
imprescindível da história escrita por Ferrante e dá a narrativa um caráter
bastante realista. As lembranças de Delia são profundamente marcadas pelas
cenas de violência protagonizadas pelo pai e, por isso, o tema funciona como
elemento crucial na formação da personalidade da protagonista. O resultado é que o desenho psicológico de
Delia é bastante conturbado e atravessado pelo produto de um passado marcado de
um lado pela frustração e nunca conseguir se igualar a figura materna, e de
outro pela violência doméstica da qual ela foi testemunha e em um dado momento
foi também impulsionadora.
![]() |
Cenas do filme L'Amore Molesto de Mario Martone (1995) e que retratam a violência doméstica sofrida por Amalia. |
Outros dois personagens importantes na trama são o tio Filippo, irmão de Amalia e que em vez de defendê-la das agressões a culpava por elas, e Caserta, outro personagem enigmático da trama e que sustenta a narrativa junto com as lembranças de Amalia conservadas por Delia.
Filippo é um homem tosco e irritadiço. Na maior parte do tempo
fica xingando no dialeto local e falando mal de Amalia, a culpando por destruir
o próprio casamento por seu comportamento, na visão dele, bastante reprovável.
Ele junto com o pai de Delia representam na narrativa a figura do homem
machista que vê na mulher a reencarnação da devassidão e da pecaminosidade,
devendo ser corrigida a sua inclinação inevitável para a infidelidade com
pancadas.
Caserta é descrito no livro como um homem “esperto, de pele escura como um sarraceno, mas com olhos de diabo
assanhado”, tinha fama de importunar as mulheres do bairro e desde a
infância sua imagem causava a Delia uma mistura conflitante de atração, repulsa
e medo. Este não era seu nome, mas um apelido.
Na época, o pai da menina já era um pintor medíocre que pintava
por ninharias, foi Caserta quem percebeu a possibilidade de que ele ganhasse um
pouco mais pintando retratos a óleo das mães, irmãs e namoradas dos marinheiros
americanos com saudades de casa. O negócio com Caserta porém de se desfez
depois que o pai de Delia achou uma proposta mais vantajosa, pintando imagens
de ciganas. Amalia se opôs e daí em diante as brigas entre o casal por conta de
Caserta começaram, se tornando pior quando Delia lançou ao pai a semente da
desconfiança de uma possível traição. Filippo e o cunhado quase mataram Caserta
e seu filho, obrigando-o a fugir com sua família.
Passados todos aqueles anos Caserta ainda era um nome envolto em
mistério, e de alguma forma ele estava ligado aos últimos dias de vida de Amalia.
Delia não sabia como nem porque, mas o mistério daquele homem asqueroso a atraía.
A título de conclusão...
Apesar de ser uma narrativa na qual a narradora reflete bastante
sobre cenas e episódios ocorridos no passado, Ferrante usa de uma narração linear
e não recorre a flashbacks. Delia
narra os hábitos, as brigas, os fatos, os lugares e as pessoas, mas não perde a
sua condição de narradora quando evoca o passado. Por conta disso, ela acaba
por caminhando pela linha tênue entre os acontecimentos do passado e o
presente, como se o passado fosse imagens fantasmagóricas que a quadrinista
vislumbra sobrepostas às imagens do presente. Por isso, não é incomum que
sonho, lembrança e realidade se fundam na mente da narradora e ela chegue até
mesmo a ter visões, sobretudo da mãe.
Ferrante escreve um livro
de atmosfera intimista e psicológica muito marcante. Lembranças, divagações
e fantasias da protagonista se misturam, mostrando que muitas das respostas que
ela buscava já estavam guardadas em seu subconsciente, e seria o contato que
ela faz com todas aquelas pessoas do passado o fator responsável por trazer gradativamente
à tona as lembranças mais escondidas.
Desse modo, o tom que percebi
dominar na obra foi a da confusão de sentimentos, pensamentos e lembranças
que emanam de Delia e que conduzem a personagem em um encontro com seu passado,
recuperando cenas e enredos esquecidos e deformados com o passar do tempo.
Enfim, achei o livro monótono, mas a forma como Ferrante
aborda a violência doméstica através das lembranças um tanto inconsistentes da
protagonista e os complexos e aversões que ela desenvolveu no processo foi
excepcionalmente autêntico e até mesmo complexo. Ademais, Um Amor Incômodo é uma narrativa crua, de sentimentos muitos
intensos e conflitivos e que trabalha com o onírico e com a memória. Possui
personagens muito marcantes, cujos sentimentos e ações nos fazem questionar
muito sobre a natureza humana.
Muitos afirmam, que este livro não é o melhor de Elena,
mas como minha primeira experiência com a autora, não farei julgamento de
valor. Além disso, é sabido de qualquer leitor experimentado que livros de
estreia quase sempre são reflexos de um escritor ainda em formação, ainda cru e
em processo de aperfeiçoamento. Justamente por isso é interessante ler estes
livros, porque eles meio que humanizam aqueles que se encontram no panteão da
literatura internacional.
A edição lida é da Editora Intrínseca, do ano de 2017 e possui 176 páginas.
Sobre
o autor
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana que
prefere manter sua identidade em segredo sob a justificativo poder escrever com
liberdade, e para que a recepção de seus livros não seja influenciada por uma
imagem pública. Especula-se que seja uma tradutora, Anita Raja, que nasceu em
Nápoles e que seja casada com o também escritor Domenico Starnone.
A autora concede poucas entrevistas, todas elas por escrito e
intermediadas pelas suas editoras italianas. A única certeza sobre ela é que
escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance, L'amore
molesto, livro resenhado nesta
postagem.
Confira quem
são os outros autores participantes da Campanha deste ano.
Saiba
mais sobre os autores que estão sendo lidos na Campanha no link: autores.
Conheça
os pontos do nosso itinerário no mapa do link: mapa.
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Por Eric Silva
21 de fevereiro de 2021, Ano da Itália
“[...] Miguel de Cervantes, luz entre poetas, mendigo
entre los hombres y Príncipe de Parnaso.”
(Carlos Ruiz Zafón, El
Príncipe de Parnaso)
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou da
resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
![]() |
Capa da edição promocional da editora Planeta de Libros, distribuída em 2012 na Espanha. |
Barcelona, 1616.
Do alto da muralha que selava
Barcelona, Antoni de Sempere, el facedor
de libros, avista a chegada à cidade do cortejo fúnebre de seu amigo
Cervantes, tendo ao seu lado a funesta figura de Andreas Corelli, o principal
responsável pelas desventuras de seu amigo.
Corelli não havia envelhecido
um único dia depois de todo o tempo que se passara desde a primeira vez que
Cervantes e Francesca haviam chegado a Barcelona, em 1569, como dois fugitivos
de terras italianas. E
como já se era de esperar, o macabro arcanjo estava ali para testemunhar a ida
de Cervantes ao túmulo após este ter finalmente escrito a obra-prima prometida
ao funéreo editor.
É em meio ao incômodo diálogo
com o perturbador Corelli que Sempere se entrega as suas recordações acerca de
Miguel de Cervantes Saavedra e de como este, ao mesmo tempo, conhecera em seu
exílio na Itália, a criatura mais bela já vista e assinara um pacto que seria
razão de sua fama e de seu maior infortúnio.
Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês
resenhada para o Especial Zafón.
Resenha
Publicado em 2012, El
Príncipe de Parnaso é um conto de 35 páginas que foi oferecido pela editora
Planeta, até onde sei, somente na Espanha, como uma cortesia aos compradores do
romance de Zafón, El Prisionero del Cielo
(O Prisioneiro do Céu) na ocasião de sua publicação. Por conta disso, assim
como os demais contos do autor, não chegou a ser pulicado no Brasil e nem em
língua portuguesa. Ele é também um dos onze contos que integram a coletânea
póstuma do autor, La Ciudad de Vapor
– que em breve será publicada no Brasil.
O conto é mais um dos que
integram o universo da série d’O Cemitério dos
Livros Esquecidos trazendo como
personagens uma figura real – Miguel de Cervantes Saavedra, escritor espanhol
dos séculos XVI e XVII e autor de Dom
Quixote – dois antepassados de personagens da quadrilogia do Cemitério e Andreas Corelli, a figura
sobrenatural que carimba sua presença em duas obras do autor: As Luzes de Setembro e O
Jogo do Anjo.
A história de El Príncipe
de Parnaso se passa na Barcelona de meados da Idade Moderna, um pouco mais
de um século depois dos fatos narrados em outro conto que integra o universo da
série do Cemitério, Rosa de Fuego e que narra
um pouco da origem da misteriosa biblioteca que funciona como eixo principal de
todos os livros da série.
Neste segundo conto, Zafón desvia-se da história da secular
biblioteca – ainda que a cite nos parágrafos que encerram a narrativa, [ALERTA
DE SPOILER] sugerindo que Cervantes esteja secretamente sepultado dentro da
colossal biblioteca –, e foca sua trama numa recriação da história de Miguel de Cervantes, mais exatamente de um episódio de
sua mocidade quando este esteve vivendo em Roma após ter fugido de Madri.
Na biografia do autor
espanhol, consta realmente que para evitar ter a mão direita decepada como
punição por participar de um duelo, Cervantes fugiu para Roma em 1569[1].
Contudo, o relato de Zafón é obviamente ficcional – sobretudo quanto ao local
real de sepultamento do escritor –, mas toma por base uma estadia real de
Cervantes naquela que se tornaria séculos depois na capital da Itália atual.
Neste conto Zafón descreve um
Cervantes em início de carreira, um tanto vacilante, bastante melancólico,
tentando mostrar a sua arte para algum editor que quisesse publicá-la. Zafón
desenha um jovem que já possui as marcas de um talento observável, mas pouco
polido, ainda muito bruto e distante do horizonte onde estaria o escritor que
se imortalizaria e teria sua obra conhecida em todos os cantos do planeta.
Contudo, para alcançar esse horizonte distante o destino coloca no caminho de
Cervantes o diabólico Corelli que conduzirá o jovem escritor para uma direção
inesperada.
Em paralelo, a narrativa
também conta a história de Francesca di Parma, uma pobre miserável, mas de
grande beleza que tivera o infortúnio de ser abandonada bebê em baixo de uma
ponte, sendo resgatada por uma família de facínoras e trapaceiros tão pobres
quanto ela, mas que só não a descartaram de novo por terem visto em sua beleza
uma forma de explorá-la e obter algum lucro. Prova disso é que ao surgir a
oportunidade de conseguirem um grande lucro às custas da garota não hesitam em
submetê-la a um destino cruel.
Zafón faz o encontro destas
duas almas perdidas (ele real, ela fictícia) e tem-se um conto sobre amor e
tragédia, com pitadas de terror e elementos fantásticos e góticos.
Apesar de não ter um enredo
grandioso e nem mesmo muito ambicioso, El
Príncipe de Parnaso conserva o que há de melhor no estilo
“zafoniano” de escrita: muitas e ricas construções estilísticas, cinematográficas
e metafóricas, atmosfera gótica e soturna, ambientes decadentes, romance
trágico, e, por fim, artistas frustrados, melancólicos, loucos ou à beira da
insanidade. Toda a poética singular do autor se expressa nesse texto, o que
dificultou bastante a minha leitura, haja vista que li o conto em sua língua
materna.
Apesar de não ter um enredo tão instigante quanto os livros da
série do qual faz parte El Príncipe de
Parnaso me atrai por ser mais um vislumbre do estilo maduro de Zafón, e do
qual senti muita falta nos livros juvenis da Trilogia da Névoa.
Como
o texto é contado a partir de um flashback de Sempere – porém narrado em terceira pessoa – os fatos
não são absolutamente contados em ordem cronológica. Pelo contrário, o conto
começa no ano de 1616, recua 47 anos no passado até 1569, recua mais alguns
meses, avança até 1610 e depois retorna a 1616. Para evitar confusões, cada
capítulo – com exceção de dois – são datados e localizados geograficamente no
título.
Esses
constantes vão-e-vêm se dão porque o flashback
de Sempere é também entrecortado por um relato do próprio Cervantes, porém
narrado em terceira pessoa, e que numa taverna conta a história do tempo
passado em Roma e de como acabara fugindo de lá com Francesca. O relato é feito
a Sempere e também ao espirituoso, esperto (e inconveniente) Sancho Fermín de
la Torre. E aqui temos um dado curiosos: para mim, que li agora 80% da obra de
Zafón, é evidente que o nome do personagem Sancho foi escolhido a dedo para
fazer referência a dois personagens icônicos. O primeiro deles é Fermín Romero
de Torres, amigo, cúmplice e protetor do jovem Daniel desde os fatos narrados
no livro A Sombra do Vento até o encerramento da série com O Labirinto dos
Espíritos. O segundo personagem
pertence ao Cervantes real: o simplório escudeiro de Don Quixote, Sancho Pança.
É
perceptível que Zafón escolhe esse nome tão estranho e incomum com o intuito de
sugestionar que Cervantes escolhera o nome do escudeiro de Don Quixote
inspirando-se na triste figura que conhecera anos antes em Barcelona: um
antepassado longínquo do moderno Fermín da Espanha franquista para quem o
grande artista uma vez contara a sua história.
Oura
referência, essa menos obvia, está no título. El
Príncipe de Parnaso faz referência a um dos livros do Cervantes
real, Viaje del Parnaso, uma das
obras poéticas do autor e publicada em 1614. O termo Parnaso, por sua vez, faz
referência ao monte grego Παρνασσός (Parnassos) que aparece na mitologia grega
como lar das Musas e que por isso é associado ao lar da poesia, da música e do
aprendizado[2].
Um paraíso da arte e das letras. Como grande escritor, Cervantes seria o
príncipe de Parnaso.
Para
concluir. Em termos de pontos forte e fracos, reitero que o melhor deste conto
é a escrita, e sua fragilidade, o enredo. A ideia é original, apesar de que
tornar personagens reais em fictícios não seja nenhuma novidade na literatura.
Contudo, Zafón integra Cervantes com perfeição ao universo expandido de O Cemitério dos Livros Esquecidos.
![]() |
Edição espanhola de A Cidade de Vapor |
É
verdade que o conto não é tão instigante quanto a série, mas ganha pontos por
nos dar mais um vislumbre dos ancestrais da mesma, assim como Zafón fizera em Rosa de Fuego porém este
último destoa um pouco das narrativas centrais por seus elementos fantásticos
que inexistem na quadrilogia e também no El
Príncipe de Parnaso. Verdade seja dita, El Príncipe de Parnaso tem mais a
ver com a série do que Rosa de Fuego.
Quanto ao
desfecho, este não é particularmente surpreendente, porque já era do
conhecimento do leitor desde as primeiras páginas. No entanto, os dois últimos
parágrafos sugestionam mais algumas coisas acerca das origens da grande
biblioteca. É neste breve ponto da trama que fica claro porquê, apesar de não
focar na grande biblioteca de livros esquecidos, a edição promocional do conto
traz em sua capa uma ilustração em ponta de lápis que sugere ser um vislumbre
do Cemitério de Livros quando este estava em construção. Um empoeirado e secreto paraíso de livros que
para sempre os fãs de Zafón procurarão pelas estreitas ruas da Barcelona
antiga.
A edição lida foi distribuída
gratuitamente como brinde pela editora Planeta na época do lançamento de El Prisionero del Cielo na Espanha. A edição é do ano de 2012 e possui 35
páginas. Como ele não é acessível no Brasil li numa versão em epub que encontrei na internet.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
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A Sombra do Vento – Carlos Ruiz
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As Luzes de Setembro – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
El Príncipe de Parnaso (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Jogo do Anjo – Carlos Ruiz Zafón
– Resenha
O Palácio da Meia-noite – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Príncipe da Névoa – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Prisioneiro do Céu – Carlos Ruiz
Zafón – Resenha
Quem é Carlos Ruiz Zafón? –
Especial Zafón
Rosa de Fuego (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Labirinto dos Espíritos – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
[1]https://super.abril.com.br/historia/o-cavaleiro-da-triste-figura/.
[2]MOUNT PARNASSUS. In: WIKIPÉDIA, The Free Encyclopedia. Flórida:
Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Parnassus>.
Acesso em: 15 jan. 2021.