Por Eric Silva
28 de fevereiro de 2021, Ano da Itália
“Bienvenido a un nuevo libro – desgraciadamente el último – zafoniano”
(Émile de Rosiers
Castellaine, La Ciudad de Vapor)
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
prévias, banners ou postagens relacionadas.
Diga-nos o que achou
da resenha nos comentários.
Está sem tempo para ler? Ouça a nossa
resenha, basta clicar no play.
![]() |
Livro póstumo de Zafón, La Ciudad de Vapor em sua edição original. |
Confira a resenha de mais uma obra do escritor
barcelonês, penúltima a ser resenhada para o Especial Zafón e última a ser publicada no mundo.
Sinopse
do enredo
La Ciudad de Vapor (A
Cidade de Vapor) é uma coletânea que reúne onze contos de Carlos Ruiz Zafón,
três deles inéditos e os demais publicados de forma dispersa em diferentes
publicações entre os anos de 2002 e 2012. Contos que ampliam o universo
literário de sua mais importante obra, a quadrilogia d’O Cemitério dos Livros
Esquecidos, além de apresentar
personagens novos que não figuram na série e personagens reais cujas vidas são
recriadas pela pena gótica e trágica do escritor barcelonês.
O conto que inaugura a
obra, Blanca y el adiós, nos dá
vislumbres da difícil infância de David Martín, um dos muitos gênios malditos e
desafortunados da Zafón, no caso um escritor, que é também personagem principal
do livro O Jogo do Anjo. Neste conto até então inédito, Zafón narra como o
pequeno David conheceu a menina Blanca, uma garota rica que experienciava a dor
causada pelos problemas familiares entre seus pais e que, pelo acaso de um
encontro fortuito no calçadão de uma livraria, acaba conhecendo David e se
tornando, mais tarde, a primeira musa inspiradora das narrativas fantásticas do
garoto.
Além de Blanca y el adiós, no livro, Zafón
dedica ainda um segundo contos ao personagem de O Jogo do Anjo. No desconcertante Sin nombre, o autor narra a história sombria e misteriosa do
nascimento de David, bem como nos apresenta as várias incógnitas que giram
entorno da identidade de sua mãe, uma garota desesperada que vaga pelas ruas
cobertas de neve de uma Barcelona indiferente enquanto sente as dores do parto
e busca auxilio.
Em Una señorita de Barcelona, Zafón conta a história soturna de
Eduardo Sentís, um fotografo arruinado que herdara as dívidas de um negócio
falido de seu patrão e que encontra como recurso de vida sua própria filha e o
talento da menina para encarnar personalidades de pessoas mortas para dar
pequenos golpes em familiares e amantes desesperados e enlutados.
Já em Rosa de Fuego, o escritor dá um recuo no tempo e retorna ao século
XV para contar as origens da família Sempere e principalmente do Cemitério dos
Livros Esquecidos, a colossal biblioteca secreta e importante personagem dos
livros da série que leva seu nome. Neste conto, resenhado individualmente aqui
no blog em dezembro de 2020, Zafón narra a história da chegada do hacedor de laberintos, Edmond de Luna, a
uma Barcelona arrasada pela febre e de como o regresso do desfortunado
engenheiro seria responsável por uma tragédia ainda maior que “habría de teñir el cielo de la ciudad de
fuego y sangre”.
A temática das origens dos
Sempere e do grandioso palácio de livros têm continuidade no quinto conto da
coletânea, El Príncipe de
Parnaso, também resenhado
individualmente aqui no blog. Nesse conto Zafón avança pouco mais de um século
em relação a Rosa de Fuego e recria
de forma trágica, gótica e romântica a história da juventude de Miguel de
Cervantes, escritor real e expoente da literatura clássica espanhola, para
contar como este cai nas garras diabólicas de Andreas Corelli, outro personagem
fundamental do livro O Jogo do Anjo.
Por sua vez, Leyenda de navidad toma emprestada a
temática do natal para contar mais uma história (esta muito breve) de terror e
de maldição. Em outro contexto, o tema frio e obscuro de um dia natalino na
cidade catalã é novamente resgatada na história seguinte, Alicia, al alba, que narra o encontro de um jovem empregado de um
bazar com uma misteriosa moça que tenta penhorar uma preciosa guirlanda de
perolas e safiras durante os bombardeios da Guerra Civil Espanhola.
Na sequência, Hombres de gris, avança para o momento
histórico espanhol seguinte, ou seja, para o contexto do regime franquista, e
narra a história de um assassino de aluguel que retorna a Barcelona que
abandonara muitos anos antes, a fim de cumprir a mais difícil de suas missões e
salvaguardar a estrutura que sustenta o regime ditatorial de Franco.
Por fim, as três últimas
narrativas são breves e versam sobre temas muito distintos entre si.
Na curtíssima narrativa de
La mujer de vapor, Zafón fala de como
um ex-detento não tendo onde morar passa suas noites em praça pública até ser
convidado por uma moça para viver em um dos muitos apartamentos abandonados de
um prédio condenado, e lá encontra a felicidade em meio a bons e improváveis
vizinhos. Enquanto isso, em Gaudí em
Manhattan, Zafón volta aos grandes personagens históricos da Espanha para
contar sobre o misterioso projeto de um hotel planejado pelo arquiteto catalão
Antoni Gaudí que deveria ter ser construído na ilha de Manhattan, o que jamais
chegou a ser concretizado.
Por fim, La Ciudad de Vapor se encerra com a mais
breve das narrativas da coletânea, Apocalipsis
en dos minutos, no qual o narrador conta seus últimos momentos de vida
antes do fim do mundo.
Resenha
Livro póstumo de Carlos
Ruiz Zafón, La Ciudad de Vapor é
também o último a ser publicado do autor barcelonês cuja obra literária conta
agora com nove livros. A coletânea reúne narrativas curtas de um Zafón maduro e
fortemente influenciado pela atmosfera com a qual ele revestira A Sombra do Vento, e cada vez mais distante daquele Zafón que escrevera
a cinematográfica porém infantil Trilogia da Névoa.
Os contos reunidos em La Ciudad de Vapor não só resgatam as
origens dos principais personagens da tetralogia como também recriam a
Barcelona – desde sempre antiga – de A
Sombra do Vento. Recriam a melancolia e a frieza de uma cidade ora
mergulhada em neblina, ora recoberta de neve e gelo, mas sempre indiferente e
impassível em relação aos dramas, às violências e às tragédias vividas por seus
filhos. Uma cidade que abriga emudecida as muitas histórias que se interpõem e
compõem o teatro e o palco do drama humano encenado por muitas vidas anônimas e
públicas, mas todas elas marcadas pela dor, pela perda, pela miséria e,
sobretudo, pela tragédia.
Não há um só conto desta
obra que não carregue as marcas da tragédia, da crueldade ou então da
decadência humana, tendo algumas poucas almas um fulgor que acalenta os
perdidos, os malditos e os desgraçados que perfilam nas páginas do livro. Não é
à toa que os cenários são quase sempre soturnos, noturnos, decadentes, cobertos
de névoas, de neve e gelo ou chuvosos.
Como disse, neste conto a decadência
e a corrupção humana estão por todo o livro, mas destacadamente em Una señorita de Barcelona. Nele Zafón
relata o declínio de um pai que pouco hesita – em troca de dinheiro – em submeter
sua única filha, ainda pequena, a fazer o papel de substituta da menina morta
de uma família abastarda e enlutada. Mais tarde, o mesmo pai também não hesita
em prostituir a filha feita moça e fazer dela seu ganha-pão. Uma garota que
passa a viver narrativas que ela mesmo cria para iludir e roubar homens
consumidos pela dor e pela perda, e que no processo se dilui na identidade de
pessoas mortas como forma de preencher os vácuos e os vazios de sua própria
vida.
Mas, mais do que um conto
trágico, Una señorita de Barcelona
também resgata, em escala menor, um estilo de escrita zafoniana que cria um
caleidoscópio de histórias e tragédias pessoais que se cruzam e se entremeiam a
partir do encontro de várias pessoas com passados melancólicos e desgraçados. Trata-se de um caleidoscópio de narrativas
que Zafón explora intensamente em Marina e sobretudo
na quadrilogia do
Cemitério.
Dos contos, os mais breves
são precisamente os mais potentes, surpreendentes e impactantes. É o caso de Sin nombre, o mais desconcertante de
todos, o mais sombrio, cru e perfeito de toda a obra. Nele Zafón traz a vilania
e podridão humana tenebrosamente potencializada por um elenco de personagens
incógnitos e dentre os quais somente a criança recém-nascida possui um nome. Feroz,
este é o melhor dos contos da obra e o anonimato de seus personagens amplifica
seu caráter sombrio, porque aquilo que não tem nome a mim me parece também não
ter rosto, o que é ainda mais sombrio.
Forte é também o desfecho
surpreendente de La mujer de vapor bem
como as cenas descritas nos parágrafos que encerra o enigmático Alicia, al alba. Este último é também outro
conto melancólico, envolto em mistérios, em brumas e neves, o que ressaltou em
mim a impressão de que Zafón tinha atração não só pela tragédia, mas pela falta
de calidez do inverno, pelo não dito e pelos mistérios de um rosto feminino perdido
no passado e marcado pela tristeza silenciosa.
Por fim, dos contos mais
curtos, o menor de todos, Apocalipsis en
dos minutos, é exatamente o que seu título anuncia: uma narrativa com um
tempo narrativo tão curto e escrito em linhas tão breves que o próprio texto
pode ser lido em dois minutos.
Digo que em conjunto são
contos que, como elucida o editor Émile de Rosiers Castellane, trazem elementos
de muito gêneros literários: os livros de formação (aprendizagem), os
históricos, as obras góticas, os thrillers
– sobretudo de terror –, as histórias românticas e o caleidoscópio de
narrativas do qual falamos, ou, nas palavras de Castellane, “el relato dentro del relato”. Ao mesmo
tempo, eles criam uma linha do tempo da história da mais importante cidade
catalã, indo dos finais da Idade Média no trágico e fantástico Rosa de Fuego até o futuro impreciso
porém igualmente trágico e (agora) apocalíptico de Apocalipsis en dos minutos.
O estilo cinematográfico e as construções metafóricas
e estilísticas que tanto caracteriza a fase madura de Zafón estão lá também e
representaram para mim – que li a obra em seu idioma materno – um desafio de
tradução e compreensão linguística, semântica e metafórica. Através destas
construções metafóricas e cinematográficas Barcelona se veste com mantos de
fogo, de cinzas e de neve, neblina e vapor, justificando o título da coletânea
e resgatando uma vez mais os cenários e contextos prediletos de um autor que
flertava com o trágico e com o gótico e que gostava de desnudar as misérias
humanas em narrativas repletas de aventuras, História, poesia e mistério.
Uma vez mais me despeço de meu escritor predileto, de
suas tramas carregadas de mistérios e melancolias. Falta agora resenha apenas o
livro Marina, e terei resenhado
toda a sua obra.
Enfim, sigo ansioso pela publicação de La Ciudad de Vapor em português para que
ele ocupe, junto aos seus irmãos, o espaço que lhe é de direito na minha
estante.
A edição lida é digital da
Editora Grupo Planeta, do ano de 2020 e possui, em sua edição física, 224
páginas.
***
Nota: os
leitores que não foram iniciados no labiríntico e caleidoscópio universo do El Cementerio de los Libros Olvidados sugiro
que leia primeiro a quadrilogia que começa com A Sombra do Vento e encerre com La
Ciudad de Vapor. As narrativas farão mais sentido com estas referências.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
Postagens relacionadas
A Sombra do Vento – Carlos Ruiz
Zafón – Resenha de Releitura
As Luzes de Setembro – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
El Príncipe de Parnaso (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
La
Ciudad de Vapor (A Cidade de Vapor) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Jogo do Anjo – Carlos Ruiz Zafón
– Resenha
O Labirinto dos Espíritos – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Palácio da Meia-noite – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Príncipe da Névoa – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Prisioneiro do Céu – Carlos Ruiz
Zafón – Resenha