Por Eric Silva
“Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é
uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e
ninguém que não entenda”.
(Ilha das Flores – Jorge Furtado)
Sétimo e último livro do nosso itinerário pela literaturaEspanhola, A Catedral do Mar, livro
de estreia do barcelonês Ildefonso Falcones, é um romance intenso e uma
verdadeira aula de História sobre a Idade Média. Com uma ampla diversidade de
temas como a questão religiosa e a injustiça social no período, este é um livro
intenso e épico que narra a vida conturbada de Arnau, desde os trágicos
acontecimentos de sua concepção até os diversos desafios que a vida e a busca
pela sobrevivência lhe impuseram. Um livro sobre fé, intrigas e injustiças, que
fala da luta pela liberdade em um mundo marcado pela servidão e exploração dos
camponeses que garantiam os privilégios de uma nobreza soberba e cruel.
Sinopse
A Barcelona do século XIV já
era uma cidade próspera e orgulhosa para onde se dirigiam todos os anos muitos
camponeses fugidos de seus senhores, atraídos pela promessa de liberdade
oferecida pela grande cidade condal. Também ali, no bairro da Ribeira, os
barceloneses mais humildes, à custa de seus esforços e da contribuição de
mercadores e pessoas importantes da cidade, erigiam a imponente Catedral de
Santa Maria del Mar, a conclamada igreja do povo. Uma grandiosa construção que
seria paralela a intensa e conturbada história de um dos seus mais devotados
filhos, Arnau Estanyol, que de estivador chegaria a se tornar barão.
Arnau era filho de um
camponês que em busca de liberdade e fugido dos abusos de seu senhor feudal, se
refugiara em Barcelona na esperança de tornar-se um cidadão livre. Ainda menino
conhece a tirania dos nobres, a revolta, a pobreza e a fome, mas buscando
sobreviver às injustiças de sua época torna-se estivador, palafreneiro, soldado
e depois cambista. Vive uma vida fatigante, sempre à sombra de Santa Maria do
Mar, mas marcada por aventuras que lhe conduziriam a um destino surpreendente e
épico.
Resenha
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A catedral de Santa Maria del Mar em ilustração de 1851 |
Bernat Estanyol era um
simples camponês, mas que crescera ouvindo de seu pai as histórias de seus
corajosos antepassados, que um dia foram livres das obrigações feudais e donos
da terra. Porém seu pai, como todos os outros camponeses, nascera preso à terra
dos nobres e sujeito a sua violência e exploração, e deixara a Bernat a mesma
condição servil e o direito de uso da terra de onde tirava o sustento e o
pagamento dos pesados impostos.
Na festa de seu casamento com
a jovem Francesca, Bernat é surpreendido pela chegada do senhor das terras onde
viviam, Llorenç de Bellera, que tomando parte na festa de seu servo, exige-lhe
o direito de deitar-se com a noiva em sua primeira noite. Fruto da violência
sofrida por Francesca nasceria Arnau por quem a moça não demonstrava nenhum
afeto. Porém as perseguições de Llorenç se intensificam, e para salvar a vida
de Arnau, Bernat foge do feudo levando consigo a criança. Acossado pelos homens
de Bellera, Bernat vê como único refúgio possível a cidade de Barcelona que na
época prometia cidadania e liberdade a todos que nela vivesse por um ano e um
dia. Ali também poderia recorrer a única irmã, Guiamona, que vivia com o esposo
em Barcelona e poderia abrigá-lo durante o tempo necessário para conseguir a
cidadania barcelonesa.
É aí que se inicia a história
épica de Arnau, o verdadeiro protagonista da trama, que cresce junto com a
cidade, sendo testemunha e vítima das injustiças e atrocidades de uma época
conduzida pela lei da tradição, da exploração e dos jogos de interesses, e
governada pelo fanatismo, pelo ódio e pela nobreza indiferente a miséria por
ela imposta ao restante da população.
Quem ler A Catedral do Mar logo percebe que esse livro é o retrato de uma
época, mas que não se limita a falar apenas dela e conduz o seu leitor à
reflexão acerca das nuanças da natureza humana por vezes soberba, injusta e
mesquinha, mas igualmente capaz de nobreza e hombridade.
Inveja, intriga, soberba, ambição, preconceito e
fanatismo, tudo está presente neste romance que transcursa cinco centenas de
páginas sem jamais se tornar cansativo ou monótono. Mas o seu tema principal é,
sem dúvida, a luta pela liberdade e contra as injustiças que os homens cometem
uns contra os outros em nome de valores distorcidos pela conveniência dos
interesses.
Em diversas passagens este livro me fez refletir, que não
é o destino ou um plano divino que inflige ao homem o sofrimento, mas que é o homem o lobo do homem (homo homini lupus), como afirma a máxima
do filósofo inglês Thomas Hobbes. Não são a Inquisição e os direitos feudais
consequências da vontade divina ou por ela legitimadas, mas obra unicamente da
vontade dos homens, que outorga para si o direito de infligir sofrimento ao
outro em prol de seus próprios interesses.
O título do livro se deve a
catedral gótica de Santa Maria del Mar, construída em Barcelona entre os anos
de 1329 e 1383 a partir do projeto dos arquitetos Berenguer de Montagut e Ramón
Despuig. A igreja do povo, como é chamada, levou meio século para ser concluída
e foi construída, graças, sobretudo, ao trabalho devotado do povo mais humilde
da cidade, sobretudo dos bastaixos, os descarregadores do porto de Barcelona
que carregavam nas costas as pesadas pedras que serviram para a construção do
templo. Em homenagem aos esforços e devoção destes trabalhadores diferentes
insígnias dos bastaixos carregando as pedras da construção foram gravados na
porta da catedral e existem até hoje.
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Visão interna da Catedral. Wikimedia Commons. |
No romance a construção da
Catedral e a santa homenageada são importantes vetores na determinação da
história dos personagens principais, como se fosse o tempo também um dos
personagens da narrativa. Mas a construção de del Mar não é o único tema tratado pela história. Ao longo de suas
páginas a obra de Ildelfonso vai perfilando um esboço da Idade Média, das
relações servis e do poder da nobreza e da Igreja. Como poucos livros, A Catedral do Mar não segue a trilha das
novelas cavaleirescas, que exaltam os feitos da nobreza forjando para época uma
imagem que só cabe aos contos de fadas. Ao
contrário, o livro de Idelfonso é uma sinopse das leis severas e das pesadas
obrigações impostas aos camponeses, bem como aos cidadãos das poucas cidades
livres da época, a exemplo de Barcelona, a principal cidade catalã do período.
O livro é um esboço da perseguição
religiosa aos judeus, da intolerância religiosa dos católicos e da
intransigência dos Tribunais do Santo Ofício.
Acho que por ser advogado, o
autor tenha dado um foco privilegiado às regras sociais, às leis injustas que
privilegiavam a minoria bem-nascida e também as regras comerciárias da época.
Porém não o fez como um livro didático que enumera lei e normas, mas as
utilizou como pano de fundo para determinar o destino de seus personagens,
influenciando suas decisões e os rumos de suas vidas. O episódio do estupro de
Francesca é o principal exemplo disso, uma vez que fora legitimado pelo jus primae noctis ou o direito da primeira noite, uma antiga
lei medieval que determinava que o senhor feudal tinha direito de desvirginar
as noivas dos camponeses em sua primeira noite. Foi este episódio o grande
desencadeado de toda a trama: o nascimento de Arnau, as dúvidas sobre sua
paternidade, a fuga de Bernat meses depois e o destino humilhante de Francesca.
O trabalho de pesquisa
histórica de Idelfonso é também um ponto imprescindível a se destacar. No final
da edição, algumas páginas foram dedicadas pelo autor a explicação das suas
inspirações para o livro e é ali que descobrimos que A Catedral do Mar é uma grande narrativa que mistura fatos
históricos verídicos, pessoas e lugares reais com a capacidade imaginativa de
seu autor.
Para compor suas personagens
e as tramas por elas vividas, Idelfonso se dedicou por anos a uma apurada
pesquisa histórica em documentos do acervo do Ateneu Barcelonês,
um importante centro cultural de Barcelona que já foi tema de uma de nossas postagens
[link]. O resultado foi uma narrativa de dimensões
épicas que a cada capítulo reserva ao leitor uma nova surpresa, alguma nova
complicação e outros panoramas da época e da vida de seus contemporâneos.
Mas mais do que um panorama
da idade média ou da vida na Barcelona medieval, A Catedral do Mar abriga um séquito de personagens surpreendentes e
pulsantes. Pessoas simples do povo, da elite soberba, do alto e do baixo clero,
meretrizes, escravos e judeus. Mas de todos os que figuram o elenco da
narrativa, o personagem mais cativante é o próprio Arnau.
Ainda criança Arnau já
demonstrava sua simplicidade, a retidão de seu caráter e um coração sincero e
determinado. É comovente a coragem e a determinação do garoto quando ainda
adolescente passa a trabalhar como bastaix do porto, carregando nas costas os
pesados fardos que eram descarregados das embarcações ou para elas
encaminhados, além das enormes pedras que serviriam à construção da Catedral e
que eram carregadas por todos os bastaixos. É como bastaix que Arnau vive
alguns de seus anos mais duros, porém felizes.
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Gravura de bastaix gravado nas portas da Catedral de Santa Maria do Mar, Barcelona. Foto: Tom B. |
O trabalho de um bastaix era
difícil e fatigante, mas eram todos eles trabalhadores unidos que aceitavam de
bom grado as dores de seu trabalho e orgulhavam-se da catedral que ajudavam a
construir. Arnau, que tinha pelos bastaix uma grande admiração e amava a Virgem
del Mar como sua própria mãe, foi recebido pelos bastaixos como um irmão, e ao
lado deles conseguia sustento para si e para o irmão adotivo, Joan, quando o
pai lhes falta. Mas a vida lhe
reservaria muitas reviravoltas e novos desafios que o levariam a uma posição
muito diferente da qual poderia um dia imaginar. Mas ao contrário de
muitos, nem a dureza da vida, nem as injustiças que sofrera e nem aquelas que
ainda sofreria, não tornaram Arnau um homem amargo ou frio. Ao contrário, sua
personalidade não se dilui, nem sua inclinação à humildade e a justiça. Um
personagem admirável sem deixar de ser, no entanto, um humano que erra, que tem
suas fraquezas e seus momentos de covardia e hesitação.
Ainda mais surpreendente é
como, ao longo de sua vida, Arnau vai se envolvendo nas situações mais
complicadas, sobrevivendo à morte do pai, à guerra e à peste até encontrar seu
desfecho. Por isso ele me fez lembrar de outro personagem muito famoso da
literatura clássica universal: Jean Valjean, o protagonista de Os Miseráveis,
livro do francês Victor Hugo. Como Arnau, Jean passa por diversos desafios em
sua vida enfrentando a ambição e a injustiça daqueles que se interpõem em seu
caminho. Os Miseráveis é também um livro centrado na história de vida de seu
personagem principal e ao mesmo tempo é o retrato de uma época. Um livro também
fantástico e épico.
Após 10 anos da publicação de A Catedral do Mar na Espanha, em agosto deste ano Idelfonso lançou, pela editora espanhola Grijalbo, o livro Los herederos de la tierra, que dá prosseguimento aos acontecimentos narrados na Barcelona Medieval de Arnau Estanyol. O livro ainda não tem previsão de publicação no Brasil.
Após 10 anos da publicação de A Catedral do Mar na Espanha, em agosto deste ano Idelfonso lançou, pela editora espanhola Grijalbo, o livro Los herederos de la tierra, que dá prosseguimento aos acontecimentos narrados na Barcelona Medieval de Arnau Estanyol. O livro ainda não tem previsão de publicação no Brasil.
Em conclusão, para os que não gostam de história talvez as descrições
históricas da narrativa pareçam cansativas, mas para mim que amo história, que
sou fascinado pela Idade Média e que tenho um amor platônico por Barcelona,
este livro terá para sempre um lugar de honra na estante, junto com A Sombra do
Vento e Os Miseráveis.
A edição lida é da Editora
Rocco, do ano de 2007 e possui 589 páginas.
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