quarta-feira, 21 de setembro de 2016

[#MeusLivros] A Serra dos Dois Meninos - Aristides Fraga Lima - Resenha

Por Eric Silva, com um pouco de timidez, 
porque hoje abro minha vida pessoal para falar de meus livros


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Eu e A Serra dos Dois Meninos



A Serra dos Dois Meninos é o primeiro livro da minha infância que resenho aqui no blog. Na verdade, ele é da época da minha pré-adolescência, porque deveria ter entre 11 e 12 anos quando o tive em minhas mãos pela primeira vez. Mas escolhi começar por esta pequena narrativa que integra a famosa e fabulosa coleção Vagalume, devido a dois motivos: o primeiro deles é a minha identificação muito grande com a história. Trata-se de um enredo que diz muito de mim e de minha vida, muito mais hoje do que naquela época. Em segundo lugar, o escolhi para ser o primeiro pelo carinho que dedico ao meu volume, que conservo comigo por quase uma década e meia.

A Serra dos Dois Meninos não foi um livro escolhido ou um presente que ganhei de alguém. Não foi um daqueles muitos volumes de livraria que você passa horas tentando se decidir quais levar, e que por um título ou sinopse você faz a sua escolha. Não. Eu posso dizer que ele estava destinado a mim e eu a ele. Precisávamos um do outro e pacientemente ele esperou por alguém que lhe desse o valor e o carinho de que necessitava.

Nosso encontro se deu em um dos costumeiros dias frios do bairro de Brotas, quando eu e minha mãe voltávamos da missa. Caminhávamos sozinhos pela pequena e sinuosa ladeira em que terminava a rua da capela e falávamos amenidades. Lembro que, da minha parte, estava aliviado que o enfadonho ritual dos meus sábados e domingos havia acabado – a catequese e a missa dominical –, mas já não lembro do que ela falava. Isto está há muito perdido no tempo. Como sempre, eu estava mais atento aos meus passos do que ao que de fato ela dizia. E foi ai que, ainda alguns passos de distância, mirei algo que me chamou a atenção: descartado ao pé de um poste e com as folhas amareladas abertas para o céu, um livro jogado no chão. Adiantei-me e me curvei para pegá-lo. Estava limpo, mas bastante maltratado. Tinha as folhas envelhecidas, alguns riscos e nomes escritos aqui e ali, e também algumas folhas com as bordas destruídas pela ausência da capa que, me parecia, havia sido arrancada muito tempo antes.

Não havia em mim nenhum preconceito ou nojo. Não havia em mim nenhum desprezo pelo seu estado. O que eu sentir era que se ele estava ali descartado, abandonado a própria sorte, e eu o tinha achado era porque ele me pertencia. Cabia a mim lhe dar zelo e um lugar resguardado da chuva e do calor. Ele deveria (e iria) ocupar um lugar entre os demais da minha coleção de didáticos.

Minha desgastada e
mal-tratada edição do livro
Corri os olhos rapidamente pelo seu título e retomei a marcha seguindo mainha com meu achado nas mãos. Ela em nenhum momento se opôs ao meu novo amigo e eu não o descartaria mesmo que ela pedisse. Para minha alegria mainha sempre compreendeu meu amor e compulsão pelos livros, mesmo hoje quando já não tenho espaço para guardá-los e continuo a adquiri-los.

Chegando a casa da Clião Arouca, pensei como protegeria as primeira e as últimas páginas que, devido ao deszelo dos antigos donos, já se consumiam. Arranquei então uma capa de uma revista e com fita adesiva improvisei a capa que até hoje o protege. Como em minha mente toda capa deveria ter o título de seu livro escrevi com uma letra que julguei caprichada o nome da obra e de seu autor e fiquei orgulhoso de meu trabalho, porque agora ele estava protegido e poderia enfim ser manuseado.

Não lembro se comecei sua leitura de imediato, mas é bem provável que não. Devo ter me detido apenas a lhe dar os primeiros socorros, olhar suas ilustrações e buscar um lugar na caixa de livros em que ele pudesse ficar sem que sua nova capa fosse arrancada ou amassada. O quarto era pequeno e não havia prateleira para meus livros, de modo que todos ficavam em caixas de papelão. Contudo independente de tê-lo lido de imediato ou não, me recordo de que quando o fiz aquela história me prendeu de tal forma que nunca a esqueci em seus detalhes, nem de suas ilustrações muito bem feitas. É por isso que agora divido com vocês essa história e também minhas impressões do enredo do meu pequeno amigo, o livro de Aristides Fraga Lima.

Sinopse

Depois de ter adquirido a fazenda Gravatá, Seu Domingos resolve levar a esposa e os filhos para conhecer a propriedade e um pouco da vida sertaneja.

A fazenda ficava em meio a caatinga do sertão baiano e ali abrigava três grandes e misteriosas serras que chama a atenção de todos, mas onde ninguém mais além das suçuaranas viviam.

Os dias que se passam e a família se integra rapidamente com a realidade da vida no campo, sobretudo Ricardo e Maneca, os dois escoteiros filhos mais novos de Dona Mariana e Seu Domingos.  A simplicidade e curiosidade dos dois meninos conquistam facilmente a amizade dos vaqueiros da região com os quais passam a conviver com muita proximidade. Com os vaqueiros Maneca e Ricardo também aprendem bastante sobre a lida com o gado e sobre os mistérios e perigos existentes na caatinga e sobretudo nas três serras imponentes.

Contudo, todas as histórias dos vaqueiros e dos caçadores Alexandre e Zé Pequeno sobre as serras só servem para avivar nos dois meninos o desejo irresistível de explorá-las o que decidem fazer um dia ao saírem escondidos de casa. Mas o que parecia ser fácil para dois escoteiros se mostraria por demais perigoso devido a mata traiçoeira das serras e ao perigo eminente do ataque das onças que ali viviam. Perdidos em meio a caatinga densa os meninos precisam de todo o seu conhecimento para saírem vivos daquela aventura no sertão da Bahia.

Resenha

Como a maioria dos leitores brasileiros sabem, a coleção vaga-lume da editora Ática esteve presente na vida e na infância de milhares de brasileiros. Muitos de seus volumes são até hoje lido pelas crianças do país todo e algumas desta obras ainda tem conservam muito destaque como referências da leitura infanto-juvenil nacional como é o caso de Escaravelho do Diabo, livro de Lúcia Machado de Almeida, e que este ano foi adaptado para o cinema.  A Serra dos dois Meninos não é a história mais conhecida da coleção, mas é a mais preciosa para mim, juntamente com Sozinha no Mundo, do autor Edmundo Donato que escreve o livro com o pseudônimo de Marcos Rey. Os motivos são vários, como já elencados no começo do texto, mas hoje a história tem para mim um significado novo.

Representação da paisagem nordestina
e do trabalho com o gado
A narrativa do livro se passa em uma localidade próxima ao município baiano de Adustina em uma propriedade em meio a caatinga nordestina. Eu também hoje moro em uma cidade do sertão baiano, pertencente ao domínio das caatingas[1] e dentro do polígono das secas. Sou soteropolitano como Maneca e Ricardo, mas me sinto sertanejo. Por essa vivência em uma cidade sertaneja do interior, hoje, identifico na história muitos dos elementos que existem também na localidade onde moro. A forma própria de falar que Fraga Lima fez questão de destacar em seu enredo com expressões como “esfalfado”, “malhada”, “pega”, “trempe”, “ferra” e “obrigação”, vejo-a presente ainda em muitas pessoas que vivem no campo e que ainda estão ligadas a terra e a criação de gado. Não são os mesmos termos, mas a mesma forma de falar e que vai aos poucos se perdendo.

Outra coisa que chama atenção é o destaque que o autor dá a simplicidade e a amizade gratuita que as pessoas do campo dedicam aos vizinhos, a comunidade.  É certo que a história de Lima vê um campo ainda romantizado, como um lugar bucólico, ignorando as profundas mudanças que estes espaços vem sofrendo. Mas uma coisa é verídica, a generosidade e simplicidade dessas pessoas ainda estão vivas. Porém, hoje me incomoda a forma como o autor se refere a estas pessoas como “homens rudes”, “mentes rudes e simples”. São expressões que generalizam e diminuem as capacidades dessas pessoas, que são bastante inteligentes, detentoras de um conhecimento da natureza, do trabalho do campo, da vida comunitária e da luta pelo direito da terra. Capacidades e conhecimentos que surpreendem até aos mais versados doutores universitários.

Neste retorno à Serra dos dois Meninos foi impossível não o comparar aos tempos atuais. Quem hoje vive em plena explosão de um mundo conectado em redes, era do celular e das tecnologias de comunicação e lê este livro, estranha a curiosidade e o encantamento de dois meninos da cidade pela vida do campo. Atualmente, muito conectados e “urbanizados”, os jovens, em sua maioria, possuem completa aversão ao campo, visto por eles como atrasado. Porém, na época em que a história foi concebida, os tempos eram outros e um pouco distantes deste universo tecnológico, distrativo, volta e meia entorpecente. Para o jovem da cidade o campo era um universo novo, um mundo a ser explorado, desbravado, e isso é bem ilustrado por Maneca e Ricardo. A força do distinto, da novidade, do contraste com a vida urbana era sedutora, e os dois irmãos foram seduzidos por ela.

Em relação a narrativa, fica claro o foco nos personagens Maneca e Ricardo. Os meninos são bastante cativantes, tanto dentro quanto fora da narrativa. Pela simplicidade os dois encantam os vaqueiros, mas pela cumplicidade, companheirismo e amizade forte entre os dois também conquistam o leitor que torce para que a aventura dos dois não acabe em tragédia. Além disso chama a atenção como os personagens conseguem empregar muito bem seus conhecimentos de escoteirismo para sobreviverem às adversidades da caatinga fechada e, até hoje, me surpreende a forma encontrada pelos dois para dormirem no meio da mata estando fora do alcance das onças e também como fazem para preparar os ovos de jacu mesmo sem uma panela por perto. É uma história que para mim ainda tem grande parte do encanto que tivera há vinte anos atrás quando li pela primeira vez, e é justamente no tempo em que os dois meninos se encontram perdidos na mata que está o ponto alto do livro.

A Serra dos dois Meninos contém um dos conjuntos
de ilustrações mais bem desenhados da coleção
Vagalume, trabalho de Paulo César Pereira
Porém, a história possui ainda alguns pontos que hoje me perturbam. A primeira dela são as personalidades tão parecidas dos irmãos. Os dois meninos apresentam personalidades muito próximas, diferindo, tenuamente, pelo caráter ligeiramente mais adulto do mais velho deles. Fora isso é como se os dois dividissem um mesmo ego, uma mesma personalidade. Isso descaracteriza um pouco as personagens como pessoas que encerram em si suas próprias individualidades. Mas essa não é a única crítica que tenho em relação ao desenvolvimento das personagens do livro.

Um outro ponto que só emergiu agora, depois de reler o livro com um novo olhar mais maduro e vivido, foi a forma como as personagens femininas são demasiadamente secundarizadas na narrativa, algumas delas deixadas totalmente a parte. O autor, concentrado nos dois meninos, em seu pai e nos vaqueiros, esquece-se de desenvolver alguns personagens. As filhas do fazendeiro, a empregada – esta desaparece da narrativa depois de ser citada no primeiro capítulo – e mesmo Dona Mariana, esposa de seu Domingos, é muito deixada a parte na narrativa. Isso hoje me incomoda porque dá a história um ar um tanto machista que, creio eu, não tenha sido a intensão do autor. Além disso ficamos com um leque muito grande de personagens coadjuvantes que são esquecidos ao longo da história.

Mas fora estes pontos que consideram negativos na história, A Serra dos Dois Meninos é uma narrativa que ainda hoje prende minha atenção, assim como da primeira vez. Ainda criança ficava fascinado com suas ilustrações desenhadas com esmero e realismo por Paulo César Pereira, esboçando aqui e ali, na paisagem, as características físicas do sertão baiano, da sua flora e geomorfologia, bem como do trabalho com o gado. Elementos que não se encerram nas ilustrações, mas que povoam toda a narrativa.

Hoje estas imagens possuem ainda mais significado, porque as vejo com um novo olhar, o de geógrafo que lê na paisagem as características do lugar. Também hoje estimo muito mais o resgate cultural que é feito pela obra de Aristides ao dar um grande foco ao trabalho do vaqueiro, à difícil lida com o gado e às tradições que se amontam em volta dessa profissão tão desvalorizada.

Enfim, ainda hoje conservo por este livro uma estima muito grande. Ele faz parte de mim e, mesmo que minimamente, eu não seria o mesmo se nossos caminhos não tivessem se cruzados. Um encontro que já havia sido decidido muito antes daquela tarde fria no bairro de Brotas.

A edição lida, com 110 páginas, é da editora Ática, do ano de 1984 e é parte integrante da Coleção Vagalume.





[1] Domínio morfoclimáticos das caatingas, segundo a classificação do geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

[Christie's Week] GALERIA AGATHA CHRISTIE - Uma vida em imagens

Em comemoração ao aniversário de 126 anos da escritora inglesa Agatha Christie, dedicamos essa semana a sua homenagem. Na segunda feira publicamos a biografia resumida da autora e hoje, dia de seu aniversário, publicamos uma galeria especial com imagens de várias fases da vida de Agatha. Confiram as fotos clicando na imagem abaixo.





segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Agatha Christie – Biografia – Postagem Especial

Agatha Mary Clarissa Christie
Por Eric Silva.

“A essência da vida é andar para a frente; sem possibilidade de fazer ou intentar marcha a trás.
Na realidade, a vida é uma rua de sentido único.”.
(Agatha Christie)

15 de setembro é o aniversário de 126 ano de nascimento de Agatha Mary Clarissa Christie, mais conhecida como Agatha Christie, the queen of crime, a minha escritora predileta. Como não homenagear uma pessoa cujo o talento sobrevive à força do tempo? Por isso vou falar hoje um pouco desta escritora incrível, que encanta até mesmo aqueles que nasceram muito depois de seu adeus ao mundo.

Biografia

Agatha Mary Clarissa Christie nasceu em 15 de setembro de 1890 com o nome de Agatha Mary Clarissa Miller, na mansão Ashfield, em Torquay, cidade do condado de Devon, Inglaterra, Reino Unido. Foi romancista, contista, dramaturga, poetisa e uma das mais bem-sucedidas autoras de romances policiais, o que lhe rendeu os apelidos de Queen of crime (Rainha do crime) e Lady of crime (Dama do crime).

Nascida em uma família de classe média, Agatha era a caçula dos três filhos do americano Frederick Miller e sua esposa Clara Bohemer. Quando menina seus pais queriam que se tornasse cantora ou pianista, mas ainda na infância a garota mostrava um interesse maior pela literatura, preferindo escrever contos e poemas.

Agatha em sua infância.
Wikimedia Commons
Ao contrário de seus dois irmãos mais velhos, Madge e Monty, Agatha não frequentaria a Escola até os seus 14 anos. Por desejo de seus pais, a menina teve seus estudos ministrados em casa, com tutores e professores particulares, e aprenderia a ler sozinha ainda aos cinco anos de idade.

Em 1896, quando ainda tinha seis anos, a família muda-se para a França onde viveram por entorno de um ano, em hotéis das comunas de Pau, Argelés, Lourdes e Cauterets e também na cidade de Paris, para, depois, retornarem a Inglaterra.

Aos 11 anos perde o pai e passa a viajar em companhia da mãe por vários lugares do mundo, e, aos 16, vai para uma escola de aperfeiçoamento, onde se destaca como pianista e cantora.

Já adulta, a jovem Agatha conhece Archibald Christie em um baile oferecido por Lady Clifford, em 12 de outubro de 1912. Com ele se casaria no ano de 1914 e teriam, em 1919, sua única filha, Rosalind. Archie, como era chamado, foi coronel da Força Aérea Britânica e esteve na Primeira Guerra Mundial. Também Agatha, agora Agatha Mary Clarissa Christie, participaria do conflito como voluntária da Cruz Vermelha, na qual atuou como farmacêutica. Acredita-se que foi nesse período que a autora adquiriu os conhecimentos de porções e venenos que lhe seriam úteis na composição dos enredos de seus romances policiais.

David Suchet interpreta Poirot
na série Agatha Christie's Poirot.
Wikimedia Commons
Dois anos após o fim da Primeira Guerra, em 1920, Agatha Christie publica seu primeiro romance, O Misterioso caso de Styles. Este seria também o livro de estreia de seu personagem mais conhecido, o detetive belga Hercule Poirot. Inspirado em vários políticos belgas que se refugiaram na Inglaterra durante a Primeira Guerra, Poirot apareceria em outros 32 romances da autora e em dezenas de seus contos. Muito sistemático e racional, Poirot, se tornaria um dos mais importantes detetives da literatura mundial, comparável apenas a Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle.

Em sua autobiografia, Agatha Christie conta que a primeira semente que levou-a escrever seus primeiros livros policiais foi um desafio feito pela sua irmã quando discutiam sobre o livro O Mistério do Quarto Amarelo de Gaston Leroux. Segundo ela o livro havia impressionado as duas pela qualidade de seu enredo e pela capacidade do autor de manter o segredo até o final da narrativa. Na ocasião ao declarar a Madge o seu desejo de um dia escrever uma história policial, a irmã haveria duvidado de que fosse capaz devido à dificuldade imposta pelo gênero. Anos depois Agatha escreveria O Misterioso caso de Styles.

Na manhã de 4 de dezembro de 1926, um carro é encontrado batido contra uma árvore, porém, seus ocupantes estavam desaparecidos. O carro é identificado como pertencente a Archibald Christie e naquele mesmo dia a polícia inglesa descobre que Agatha havia saído na noite anterior sem ter retornado. Naquele dia começaria a investigação do desaparecimento da escritora que só seria encontrada dez dias depois hospedada em um hotel de luxo em Harrogate.

Na capa do jornal Daily Mirror,
de 7 de dezembro de 1926,
o desaparecimento de Agatha Christie 
O caso ganha grande repercussão sendo acompanhado pelos ingleses como se fosse mais uma das histórias de mistério da escritora. Em poucos dias tamanha audiência leva a conhecimento do público o caso extraconjugal de Archibald com Nancy Neele direcionando a ele suspeitas acerca do desaparecimento da romancista.

Mesmo com a descoberta do paradeiro de Agatha, o mistério das razões de seu desaparecimento continua um mistério até os dias de hoje. Devido a confusão mental em que fora encontrada no hotel, onde estivera hospedada usando o sobrenome da amante de Archibald, a versão oficial apresentada pela família foi a de que Agatha Christie havia perdido a memória depois do acidente de automóvel e, em confusão, teria pego um trem até Harrogate e se hospedado no hotel com o nome de Teresa Neele, afirmando ser da África do Sul. Porém, devido à natureza do caso, especula-se outras teorias negativas em relação a autora: estaria ela arquitetando uma vingança pela traição do marido? ou teria armado seu próprio desaparecimento para se auto promover?

Em 1928, a escritora se divorcia do Coronel Archibald, contudo Agatha mantém o seu nome de casada e passa a se dedicar mais intensamente a escrita de seus livros.

O ano de 1930, assim como toda aquela década, seria de grandes mudanças para Agatha e do auge de sua carreira. Naquele ano a inglesa publica O Assassinato na Casa do Pastor, primeiro livro com outro grande personagem das suas histórias, Miss Marple, uma velhinha simpática, muito conhecedora da natureza humana e moradora da pequena e fictícia aldeia de St. Mary Mead. Miss Marple, assim como Poirot se envolve na descoberta de complexos casos policiais e é considerada o alter ego de sua criadora, protagonizando 12 de seus romances. No mesmo ano, Agatha casa-se com Max Mallowan arqueólogo britânico que conhecera durante uma viagem à Mesopotâmia. Com ele a autora faz uma série de expedições arqueológicas pelo oriente médio de onde nasce a inspiração para vários de seus romances, a exemplo de Morte no Nilo (1937).

Agatha Christie com a filha Rosalind (1930) 
No ano de 1952, Agatha estreia em Londres sua peça A Ratoeira, conhecida como a peça que mais tempo ficou em cartaz na história do teatro. Em 1971 é condecorada pela Rainha Elizabeth II com o título de “Dame” do Império Britânico.

Agatha Christie viveria ainda até 12 de Janeiro de 1976, quando, aos 85 anos, morreria na cidade de Wallingford (Oxfordshire-UK) em decorrência de uma pneumonia.

Deixou como legado uma obra composta por 79 romances e livros de contos, 12 peças e 6 romances românticos escritos sob o pseudônimo de Mary Westmacott. Uma escritora inesquecível, uma romancista inigualável, cuja obra já figuram os clássicos da literatura mundial. Particularmente, nasci no ano de seu centenário e hoje, com um misto de prazer e tristeza (por não a ter mais entre nós), evoco sua memória. Thank you very much, Mrs. Christie.




Livros de Agatha Christie no blog

    



Referências

CHRISTIE, Agatha. Autobiografia. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/misterio-agatha-christie-escritora-desapareceu-10-dias-435804.shtml
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hercule_Poirot
http://www.agathachristie.com/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Agatha_Christie
http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&SubsecaoID=0&Template=../livros/layout_autor.asp&AutorID=608190
http://educacao.uol.com.br/biografias/agatha-christie.htm

http://www.cin.ufpe.br/~pmgj/agatha/biografia.html

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A Tábua de Flandres - Arturo Pérez-Reverte - Resenha

Por Eric Silva

“Porque o jogo do xadrez é, com efeito, um sucedâneo da guerra; mas é também mais qualquer coisa... Parricídio. (...) Trata-se de dar cheque ao rei, compreendem?... Matar o pai. Eu diria mesmo que, muito mais do que com a arte da guerra, o xadrez tem muito a ver com a arte do assassínio”.
(A Tábua de Flandres - Arturo Pérez-Reverte)

O xadrez não é só um dos jogos mais antigos do mundo como é também uma das mais complexas representações de um campo de guerra, onde dois poderosos exércitos se enfrentam. O objetivo é furar as linhas de defesa e matar o rei inimigo, mas apenas a melhor estratégia conduzirá o exército à vitória. Pensando desse modo, o xadrez é também uma representação da realidade das numerosas batalhas travadas na antiguidade e também na era moderna. Mas e quando o campo de batalha é novamente transposto para a realidade e você é a peça de uma partida mortal, movido pelas mão invisíveis de um adversário que age pelas sombras? Arte, xadrez e morte, em A Tábua de Flandres, o autor espanhol Arturo Pérez-Reverte compõe uma intrincada trama que transcende os séculos, envolta em mistérios e que inicia uma macabra partida onde o preço da derrota pode ser a morte.

Sinopse

Julia é uma jovem restauradora de obras de arte e seu último trabalho é o restauro de uma valiosa pintura do século XV e que está prevista de ir a leilão. A obra, pintada sobre uma tábua de carvalho pelo artista flamenco Pieter Van Huys, representa uma partida de xadrez entre dois importantes cavalheiros da corte ostenburguesa, tendo ao fundo uma dama vestida em negro que lê um livro posado sobre o colo. Mas o que até então seria uma mera representação – bastante realista – de uma cena doméstica, se revelaria a guardiã de um mistério centenário quando a jovem descobre oculta sob a pintura uma inquietante inscrição: Quis Negavit Equitem (Quem matou o cavaleiro?).

Pintura que ilustra a capa do livro na edição da Editora Alfaguara .

Após uma investigação histórica acerca dos personagens retratados na tela – fidalgos do ducado de Ostenburgo –, Julia descobre um suposto envolvimento dos três em um intrincado jogo político que envolvia os interesses das cortes francesa e borgonhesa pelo ducado e também um possível triangulo amoroso que teria acabado em tragédia, quando um deles, Roger de Arras, fora brutalmente assassinado, o que mudaria o curso da história da Europa. Tudo indicava que a pintura, ou mais precisamente a partida nela representada, era a chave para a resolução do crime.

Decidida a desvendar o enigma deixado pelo artista flamenco, Julia, com ajuda de seu amigo e confidente, César, e de um excêntrico e enigmático xadrezista, vê sua vida mudar radicalmente. E o que antes parecia se tratar apenas da investigação de um assassinato ocorrido cinco séculos antes, se torna um jogo mortal nas mãos de um misterioso e inteligente jogador que age nas sombras. É aí, sob as leis regias do enxadrismo e
entremeado a todos os ocorridos, que irá emergir uma trama de jogos de interesses que tem como plano de fundo o competitivo e muitas vezes obscuro mundo das artes.

Resenha

O Rei Preto.
Imagem: Wikimedia Commons 
Posso me considerar um xadrezista amador, de pouco talento, mas apaixonado por uma boa partida. O xadrez é um jogo que me intriga, que me desafia, um verdadeiro exercício – como muito poucos – para a inteligência e a estratégia. Não é à toa que fora jogado por alguns dos mais excepcionais estrategistas, a exemplo de Napoleão. Mas uma coisa eu tenho que concordar com o enxadrista Muñoz de A Tábua de Flandres, o xadrez é um jogo de morte, de assassínio, em que todas as peças são movidas com dois propósitos básicos: proteger o rei do ataque inimigo e matar o regente adversário. É uma dualidade, ou melhor uma antítese, em que se protege e também se ataca. Acho que pensando nisso que o espanhol Arturo Pérez-Reverte idealizou e compões a narrativa deste livro, porque estas ideias estão bem presentes na sua trama.

Para quem não gosta ou não sabe jogar xadrez A Tábua de Flandres pode ser, em longas passagens, um enredo desestimulante com todas as suas jogadas, regras e teorias de xadrez que vão pouco a pouco reconstituindo a partida retratada na pintura de Van Huys.

Eu mesmo tive dificuldades de imaginar as partidas e lances, principalmente porque em alguns momentos se é usado na trama o sistema de transcrição de partida, conhecida como notação algébrica ou notação francesa, em que os lances das partidas são descritos mediante um conjunto de letras, números e símbolos matemáticos. Não que o sistema seja complicado de compreender quando se dedica a estudá-lo e gravar suas regras e simbologias, mas para quem não o tenha feito é impossível compreendê-lo como um todo apenas pelo uso da lógica. Além disso, as partidas descritas verbalmente pelos jogadores são mais compreensíveis quando se tem a mão um tabuleiro, principalmente quando Muñoz faz a reconstituição reversa da partida retratada na pintura para saber quais foram os lances anteriores.

Por isso digo que em muitas passagens o livro pode ser bastante monótono. Porém, o autor soube explorar terrivelmente bem o campo da dúvida, nos expondo questões aparentemente insolúveis quando entra em cena um novo assassino que passa a jogar, das sombras, com as vidas de Julia e de seus aliados. Um novo jogador cujos crimes, de alguma forma, estavam ligados ao quadro. Quem seria esta pessoa? Qual a sua relação com o quadro e com o enigma que Julia tentava decifrar? Quais os seus objetivos? Que trama obscura se desenvolvia pelos bastidores de tudo aquilo?

Por muito tempo Arturo consegue deixar estas questões em aberto mantendo no ar o suspense de um segundo enigma, que para o leitor é bastante difícil de sugerir uma resolução, quer seja para a identidade do assassino que entra no jogo, mas principalmente, para os seus objetivos. Foram estas dúvidas, este novo enigma proposto pela narrativa, que me fizeram levar o livro até a última página, e o desfecho, para mim, foi inesperado e surpreendente.

Contudo a resenha não se encerra aqui, há outro ponto digno de nota. Arturo conseguiu em sua trama desenvolver personagens extremamente complexos e difíceis de analisar e descrever, a exemplo de César, um antiquário quinquagenário, homossexual e de costumes que misturavam o seu gosto e admiração pelos povos e clássicos (gregos e romanos) com a modernidade de sua época. Também Muñoz, um jogador de xadrez mal-ajambrado, um tanto autista, que não via no mundo nada que lhe interessasse além do xadrez, ou que não pudesse ser explicado pelo jogo e por padrões matemáticos. Temo que a mais simples das personagens seja a própria Julia, um misto de mulher e menina, um tanto impressionável, mas também ambiciosa.
O Tabuleiro.
Imagem: Wikimedia Commons.

O livro foi adaptado para o cinema em 1994, em filme dirigido por Jim McBride. Contudo não consegui a película para compara-lo ao livro. Uma pena.

Para concluir, afirmo que gostei do livro, mas mais dos capítulos que se encaminhavam para o desfecho. Se não gostasse de xadrez não teria suportado os diálogos e explicações dos capítulos iniciais e de desenvolvimento e abandonaria o livro sem chegar ao mais intrigante da narrativa. Foram as dúvidas implantadas pelo autor ao longo da história que me deram motivação de ir até o fim e não me arrependi, porque não fui capaz de deduzir o assassino e suas intensões até que o livro me revelasse tudo. Contudo, por outro lado fiquei triste porque o livro não explora os seus cenários, e apesar de se passar na cidade de Madri não nos permitiu, como em A Sombra do Vento, viver a cidade junto com os seus personagens. O farei de outras formas.

A edição lida é portuguesa – mas mais fácil de ler do que a versão portuguesa de A Sombra do Vento –, de 2009, realizada pela editora ASA. Digital. A versão impressa contém 336 páginas.

Obrigado pela atenção.


terça-feira, 9 de agosto de 2016

O Castelo das Águias – Ana Lúcia Merege – Resenha

Por Eric Silva.

Multiculturalismo, identidade étnica e defesa da natureza em um cenário de fantasia e magia. Mais do que uma simples narrativa do gênero fantasia, O Castelo das Águias, livro da autora brasileira Ana Lúcia Merege, traz em seu bojo uma multiplicidade de temas, alguns de forma não muito explícita, mas que vão além da costumeira atmosfera que encontramos nos livros do gênero. São discussões que podem chamar a atenção daqueles leitores mais antenados com questões como cultura, identidade, docência e ambientalismo, mas que vão se mostrando subjetivamente presentes na narrativa, permeando a construção da personalidade e da identidade de suas personagens.

Sinopse

Ambientado em um mundo mágico onde elfos e humanos convivem sob as mesmas leis e compõem uma sociedade onde a magia é a principal marca e o elemento de confluência entre povos tão diferentes, O Castelo das Águias, narra a história de Anna de Bryle, uma meio-humana criada em uma tribo de elfos, mas que ingressava em uma das mais respeitadas escolas de magia de seu país como Mestra de Sagas e vê sua vida mudada por completo pelas pessoas daquele lugar tão acolhedor, mas também difícil.

Saindo pela primeira vez de sua comunidade, Anna se sente entusiasmada com a oportunidade que lhe é dada pelo idealizador da escola, o Mestre Camdell, mas experimenta também o peso das diferenças culturais entre a vida a qual estava acostumada com seu povo e da tarefa desafiadora de lecionar. Somado a essas questões, a nova professora ainda tem que conciliar suas próprias questões com as diferentes personalidades dos colegas, sobretudo, da imperiosa elfa Thalia e do misterioso Kieran de Scyllix. Mas se isso já não bastasse, a moça ainda se vê envolvida com questões político-militares do Conselho de Guerra das Terras Férteis que porão em risco a liberdade e sobrevivência das poderosas águias guerreiras que dão nome ao castelo.

Resenha

Primeiro livro da série Athelgard, em Castelo das Águias, Ana Lúcia, se preocupa em apresentar ao seu leitor o universo por ela criada. Vamos aos poucos, pelo olhar da protagonista Anna, conhecendo a mistura étnica que compõe a sociedade élfica e humana das Terras Férteis de Athelgard, as crenças religiosas, os costumes culturais de cada povo, os conflitos comuns que se davam nas fronteiras e a importância da magia naquela estrutura social.

Já dentro dos muros da escola de magia também vamos conhecemos a estrutura das diferentes formas daquela arte e a importância que a mente, o poder da palavra e o conhecimento das sagas dos heróis possuem para sua realização. Diria eu, que o Castelo é mais um livro de apresentação da série, de seu mundo e de seus personagens. Como tal ele acabou abrindo espaço para algumas questões muito interessantes e quero pontuar algumas delas ao longo desta resenha.

Referências e originalidade

Quem lê o livro de Ana Lúcia de imediato percebe algumas de suas referências, sobretudo, o universo de Harry Potter e alguns poucos elementos de O Senhor dos Anéis. Não sei se a autora deliberadamente se inspirou nestes livros, mas em alguns pontos as histórias se aproximam, sobretudo na ideia de uma escola de magia e seu singular séquito de professores, presente na série da britânica J. K. Rowling, e as criaturas mágicas representadas pelos elfos, cuja presença é marcante no livro de J. R. R. Tolkien.
A autora, Ana Lúcia Merege, é fluminense. Imagem: Biblioteca Nacional.

Porém, a autora com criatividade soube demonstrar sua originalidade ao se concentrar em um dos mestres da escola, indo em sentido contrário ao que vemos em Harry Potter, cuja história se encontra centrada nas experiências e aventuras de um grupo de estudantes da escola de magia idealizada por Rowling. Mas a originalidade do livro não para por ir e a criatividade da autora desponta, sobretudo, ao criar um universo de convivência íntima e amistosa entre criaturas mágicas e humanos – muito perceptível na sociedade multicultural que é formada na cidade de Vrindavahn – e ao criar uma personagem com referências étnicas tão fortes como as existentes em Anna.

Quem pensa, logo ao iniciar o livro, que a história será uma reprodução de tudo que já foi visto nos livros citados descobre o engano ao conhecer mais profundamente as personagens e a bagagem por elas trazidas. É certo que há muitas semelhanças, mas quero aqui ressaltar o que este livro tem de diferente.

Multiculturalismo, miscigenação e identidade étnica

Uma primeira marca de O Castelo das Águias que chamou minha atenção foi o multiculturalismo presente na sociedade idealizada pela autora. Ana Lúcia cria uma sociedade onde os costumes e crenças de seres humanos e elfos se misturam.

Multiculturalismo, em interpretação livre do rigor acadêmico, significa a presença de diversas culturas no seio de uma mesma sociedade ou coexistindo em uma mesma região. No livro temos algo parecido, marcadamente na cidade de Vrindavahn. Quando Anna chega a cidade e caminha pelas suas ruas, ela inevitavelmente tece uma comparação entre os costumes de seu povo e os elementos que ela empiricamente podia observar no mercado da cidade. Mas, mais do que isso, ela destaca o quanto elementos culturais de ambos os grupos se mesclavam ali:

“As roupas das pessoas também eram diferentes, mais curtas e leves do que as usadas em Lardale. Os delicados bordados figurativos, comuns entre os elfos brilhantes, estavam nos vestidos das moças humanas, e alguns rapazes dispensavam calças e calções em favor de túnicas na altura dos joelhos. Isso era muito mais comum entre os que pareciam abastados, fazendo com que eu me indagasse se, bem lá no fundo, não desejavam ser como a nobreza élfica. Ou aquela mistura de estilos era mais uma consequência natural do convívio entre as raças?”

Nesta passagem Anna constata a partir do vestuário a existência desta convivência de costumes e que se miscigenam em um todo cultural, mas que em parte também se diferia da região de onde a própria Anna vinha.

Indo mais além, essa miscigenação cultural me pareceu existir também no campo religioso em que um mesmo templo abriga diferentes cultos. Trata-se do Templo do Deus Único. Na narrativa, Anna explica que a religião professada pelo templo, apesar de bastante estrita, sobretudo para magos, era, ali em Vrindavahn, bem mais flexível quanto a magia e ao pluralismo que ali existia. Assim, os jovens magos seguiam aquela religião por duas razões:

"A primeira: a Magia da Forma e Pensamento podia ser praticada independentemente de qualquer crença. E a segunda, muito importante para quem se propunha a conhecer as Terras Férteis: a convivência de longa data com os elfos brilhantes, ou a necessidade de partilhar o território com eles, fazia com que os preceitos do Templo fossem mais flexíveis ali do que em outras regiões".

Estrita ou não o certo é que o templo abrigava dentro de si diferentes cultos a uma multiplicidade de deuses, ainda que trouxesse o nome de Deus Único. Essa foi para mim a maior prova de multiculturalismo na história e convivência entre culturas diferentes, mas não foi a única.

É válido ressaltar também que esta convivência está também no ensino da Escola de Magia que não se restringe ao estudo puro desta, mas associado às artes dos saltimbancos, músicos e artesões humanos, em uma integração de áreas de conhecimento no qual, elfos, meio-humanos e humanos estudam juntos elementos de ambas as culturas e com mestres das duas raças.

Mas, em se tratando de cultura, o que mais me chamou a atenção foi a identidade étnica muito forte trazida pela protagonista Anna.

Anna é meio-humana, o que significa que só uma parte do seu sangue é élfico e, no seu caso, uma parte muito pequena, mas foi criada por sua família em uma tribo élfica no coração da floresta dos Teixos. Apesar da cautela inicial que os elfos tinham ao se aproximar dela quando ainda era menina, Anna foi pouco a pouco sendo integrada a vida comunitária e vista como um igual enquanto crescia envolvida pelos costumes e tradições de sua tribo. Se isso não bastasse, a moça ainda sob influência da prima Maryan se apaixona pelas histórias dos seus antepassados e passa a escrever dezenas de narrativas contadas pelos mais velhos de seu povo. Essa experiência, sem dúvida, foi crucial para que Anna se tornasse Mestre de Sagas, mas sobretudo, para que ela criasse uma forte identidade com o seu povo, uma identidade étnica forte que ela defende, valoriza ao passo que a define como pessoa. Não é de surpreender que ela levasse consigo para a Escola de Magia toda essa carga simbólica.

A identidade étnica de Anna aparece por todo o livro, nos seus talismãs, no estranhamento que ela demonstra em relação a algumas práticas culturais das novas pessoas que conhece, na sua prática pedagógica, mas aparecerá mais fortemente nos capítulos 10 e 11 onde a personagem também descobre que dentro de si nascia uma nova identificação, com a Escola e com seu trabalho, que reforça sua identidade como Mestre de Sagas.

Considero Anna a melhor personagem do livro, uma pessoa notável pelo seu caráter e pela sua força que se mistura a uma certa fragilidade que a torna um personagem complexo. Mas será essa forte identidade étnica, sua identificação com seu povo e com a vida na natureza que a tornará ferramenta especial na luta pela preservação das águias que vivem ao redor do castelo.

Luta pela preservação da natureza

Militarismo, política e defesa da natureza (uso consciente e respeitoso da natureza) também são marcas interessantes do livro.

Na floresta ao redor do castelo vivem águias especiais que, por beberem de uma determinada fonte de água, podem ser transformadas em poderosas águias de combate. O problema está na impossibilidade de mantê-las por muito tempo distante da fonte, o que invariavelmente resulta no enfraquecimento e morte das aves.

Contudo, mesmo tendo conhecimento das implicações e do sofrimento que pode ser gerado às aves, o Conselho da cidade militar de Scyllix envia à Vrindavahn uma comitiva responsável por pleitear do Conselho de Vrindavahn a autorização para levar consigo algumas das aves. Como compensação o grupo promete desenvolver uma técnica que permitisse às mesmas sobreviverem longe da fonte e propõem guarnecer àquela e às outras cidades com as aves guerreiras que fossem desenvolvidas pela experiência.

De imediato, os professores da Escola de Magia e principalmente o Mago Kieran, que outrora foi o último Mestre de Águias de Scyllix e conhecia os riscos e as grandes chances de insucesso do projeto, se opõem aos intentos do conselho daquela cidade e lutam para convencer o Conselho de Vrindavahn a não ceder à proposta. É entorno desta problemática que gira em grande parte o enredo de O Castelo das Águias.

O que me chama a atenção na problemática do livro é o seu forte cunho de luta pela preservação da natureza, contrário aos fins militaristas que exporiam as aves ao sofrimento e morte. É notável também a dedicação dos magos à defesa das aves e a forma como argumentam contra um jogo militar e político que beneficiaria alguns poucos em detrimento do bem-estar dos animais.

Trata-se de um tema importante para o nosso mundo real, onde centenas de espécies animais e vegetais são extintos todos os anos devido às ações predatórias do ser humano, que visa seus interesses próprios e desrespeitam o direito natural dos animais de serem livres. Temos um mal costume de pensar nos animais como recursos, quando estes são seres vivos que necessitam de proteção.


Surpreendeu-me que esta temática fosse posta em um livro do gênero de O Castelo das Águias, que quase sempre se concentram e se delineiam apenas como livros épicos ou de guerras mágicas, e isso me fez lembrar do filme Avatar, onde algo parecido é feito. Contudo, encaro o enredo de Avatar como ficção científica e não como fantasia, o que demonstra mais uma originalidade do livro.

Docência e Narrativa Autobiográfica

Por fim, o último destaque que faço do livro está na prática docente de Anna.

Sou professor e universitário e como tal estou envolvido em diversas questões da área. Como tal, chamou minha atenção a prática de ensino de Anna que é condenada por uma das professoras.

Anna como professora de Sagas valoriza as narrativas de seus alunos, dos demais povos, inclusive o seu, valorizando a multiplicidade étnica das Terras Férteis e as narrativas autobiográficas[1] de seus alunos. Desta forma a mestra vai em sentido contrário aos seus antecessores que focavam exclusivamente nas sagas élficas, e devido a isso Anna é duramente criticada. Além disso a professora promove algumas outras mudanças na forma como as aulas eram ministradas e isso agrada os alunos.

Levanto a questão, porque, na educação, muitos professores possuem posicionamentos divergentes em relação às metodologias de ensino e o currículo. Alguns são mais tradicionalistas, outros mais reformistas e alguns, como eu, são de centro, buscando preservar o que é bom nos métodos tradicionais e mudar radicalmente onde é necessário inovar. Vejo no embate que Anna tem com um dos colegas um reflexo destas questões.

Considero louvável a posição de Anna de querer trazer para a sala a multiplicidade cultural presente ali, e valorizar a trajetória de seus alunos e das famílias destes, ainda que eu considere que as sagas élfica deveriam ser igualmente valorizadas. Mais uma vez a personagem me cativou e por isso espero encontrá-la novamente nos outros dois volumes da série: A Ilha dos Ossos e A Fonte Âmbar.

Para quem quiser saber mais sobre a série, a autora mantêm um blog específico sobre ela onde conta as novidades e outros detalhes da obra: http://castelodasaguias.blogspot.com.br/.


A edição lida é de 212 e foi cedida pela editora Draco, em formato digital. A versão impressa da mesma editora contém 192 páginas.


Confira uma prévia do livro disponível no Google Books.






[1]O termo usado é puramente acadêmico e não consta no livro.

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