Por Eric Silva
21 de fevereiro de 2021, Ano da Itália
“[...] Miguel de Cervantes, luz entre poetas, mendigo
entre los hombres y Príncipe de Parnaso.”
(Carlos Ruiz Zafón, El
Príncipe de Parnaso)
Nota: todos os termos com números entre colchetes [1]
possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias,
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Capa da edição promocional da editora Planeta de Libros, distribuída em 2012 na Espanha. |
Barcelona, 1616.
Do alto da muralha que selava
Barcelona, Antoni de Sempere, el facedor
de libros, avista a chegada à cidade do cortejo fúnebre de seu amigo
Cervantes, tendo ao seu lado a funesta figura de Andreas Corelli, o principal
responsável pelas desventuras de seu amigo.
Corelli não havia envelhecido
um único dia depois de todo o tempo que se passara desde a primeira vez que
Cervantes e Francesca haviam chegado a Barcelona, em 1569, como dois fugitivos
de terras italianas. E
como já se era de esperar, o macabro arcanjo estava ali para testemunhar a ida
de Cervantes ao túmulo após este ter finalmente escrito a obra-prima prometida
ao funéreo editor.
É em meio ao incômodo diálogo
com o perturbador Corelli que Sempere se entrega as suas recordações acerca de
Miguel de Cervantes Saavedra e de como este, ao mesmo tempo, conhecera em seu
exílio na Itália, a criatura mais bela já vista e assinara um pacto que seria
razão de sua fama e de seu maior infortúnio.
Confira a resenha de mais uma obra do escritor barcelonês
resenhada para o Especial Zafón.
Resenha
Publicado em 2012, El
Príncipe de Parnaso é um conto de 35 páginas que foi oferecido pela editora
Planeta, até onde sei, somente na Espanha, como uma cortesia aos compradores do
romance de Zafón, El Prisionero del Cielo
(O Prisioneiro do Céu) na ocasião de sua publicação. Por conta disso, assim
como os demais contos do autor, não chegou a ser pulicado no Brasil e nem em
língua portuguesa. Ele é também um dos onze contos que integram a coletânea
póstuma do autor, La Ciudad de Vapor
– que em breve será publicada no Brasil.
O conto é mais um dos que
integram o universo da série d’O Cemitério dos
Livros Esquecidos trazendo como
personagens uma figura real – Miguel de Cervantes Saavedra, escritor espanhol
dos séculos XVI e XVII e autor de Dom
Quixote – dois antepassados de personagens da quadrilogia do Cemitério e Andreas Corelli, a figura
sobrenatural que carimba sua presença em duas obras do autor: As Luzes de Setembro e O
Jogo do Anjo.
A história de El Príncipe
de Parnaso se passa na Barcelona de meados da Idade Moderna, um pouco mais
de um século depois dos fatos narrados em outro conto que integra o universo da
série do Cemitério, Rosa de Fuego e que narra
um pouco da origem da misteriosa biblioteca que funciona como eixo principal de
todos os livros da série.
Neste segundo conto, Zafón desvia-se da história da secular
biblioteca – ainda que a cite nos parágrafos que encerram a narrativa, [ALERTA
DE SPOILER] sugerindo que Cervantes esteja secretamente sepultado dentro da
colossal biblioteca –, e foca sua trama numa recriação da história de Miguel de Cervantes, mais exatamente de um episódio de
sua mocidade quando este esteve vivendo em Roma após ter fugido de Madri.
Na biografia do autor
espanhol, consta realmente que para evitar ter a mão direita decepada como
punição por participar de um duelo, Cervantes fugiu para Roma em 1569[1].
Contudo, o relato de Zafón é obviamente ficcional – sobretudo quanto ao local
real de sepultamento do escritor –, mas toma por base uma estadia real de
Cervantes naquela que se tornaria séculos depois na capital da Itália atual.
Neste conto Zafón descreve um
Cervantes em início de carreira, um tanto vacilante, bastante melancólico,
tentando mostrar a sua arte para algum editor que quisesse publicá-la. Zafón
desenha um jovem que já possui as marcas de um talento observável, mas pouco
polido, ainda muito bruto e distante do horizonte onde estaria o escritor que
se imortalizaria e teria sua obra conhecida em todos os cantos do planeta.
Contudo, para alcançar esse horizonte distante o destino coloca no caminho de
Cervantes o diabólico Corelli que conduzirá o jovem escritor para uma direção
inesperada.
Em paralelo, a narrativa
também conta a história de Francesca di Parma, uma pobre miserável, mas de
grande beleza que tivera o infortúnio de ser abandonada bebê em baixo de uma
ponte, sendo resgatada por uma família de facínoras e trapaceiros tão pobres
quanto ela, mas que só não a descartaram de novo por terem visto em sua beleza
uma forma de explorá-la e obter algum lucro. Prova disso é que ao surgir a
oportunidade de conseguirem um grande lucro às custas da garota não hesitam em
submetê-la a um destino cruel.
Zafón faz o encontro destas
duas almas perdidas (ele real, ela fictícia) e tem-se um conto sobre amor e
tragédia, com pitadas de terror e elementos fantásticos e góticos.
Apesar de não ter um enredo
grandioso e nem mesmo muito ambicioso, El
Príncipe de Parnaso conserva o que há de melhor no estilo
“zafoniano” de escrita: muitas e ricas construções estilísticas, cinematográficas
e metafóricas, atmosfera gótica e soturna, ambientes decadentes, romance
trágico, e, por fim, artistas frustrados, melancólicos, loucos ou à beira da
insanidade. Toda a poética singular do autor se expressa nesse texto, o que
dificultou bastante a minha leitura, haja vista que li o conto em sua língua
materna.
Apesar de não ter um enredo tão instigante quanto os livros da
série do qual faz parte El Príncipe de
Parnaso me atrai por ser mais um vislumbre do estilo maduro de Zafón, e do
qual senti muita falta nos livros juvenis da Trilogia da Névoa.
Como
o texto é contado a partir de um flashback de Sempere – porém narrado em terceira pessoa – os fatos
não são absolutamente contados em ordem cronológica. Pelo contrário, o conto
começa no ano de 1616, recua 47 anos no passado até 1569, recua mais alguns
meses, avança até 1610 e depois retorna a 1616. Para evitar confusões, cada
capítulo – com exceção de dois – são datados e localizados geograficamente no
título.
Esses
constantes vão-e-vêm se dão porque o flashback
de Sempere é também entrecortado por um relato do próprio Cervantes, porém
narrado em terceira pessoa, e que numa taverna conta a história do tempo
passado em Roma e de como acabara fugindo de lá com Francesca. O relato é feito
a Sempere e também ao espirituoso, esperto (e inconveniente) Sancho Fermín de
la Torre. E aqui temos um dado curiosos: para mim, que li agora 80% da obra de
Zafón, é evidente que o nome do personagem Sancho foi escolhido a dedo para
fazer referência a dois personagens icônicos. O primeiro deles é Fermín Romero
de Torres, amigo, cúmplice e protetor do jovem Daniel desde os fatos narrados
no livro A Sombra do Vento até o encerramento da série com O Labirinto dos
Espíritos. O segundo personagem
pertence ao Cervantes real: o simplório escudeiro de Don Quixote, Sancho Pança.
É
perceptível que Zafón escolhe esse nome tão estranho e incomum com o intuito de
sugestionar que Cervantes escolhera o nome do escudeiro de Don Quixote
inspirando-se na triste figura que conhecera anos antes em Barcelona: um
antepassado longínquo do moderno Fermín da Espanha franquista para quem o
grande artista uma vez contara a sua história.
Oura
referência, essa menos obvia, está no título. El
Príncipe de Parnaso faz referência a um dos livros do Cervantes
real, Viaje del Parnaso, uma das
obras poéticas do autor e publicada em 1614. O termo Parnaso, por sua vez, faz
referência ao monte grego Παρνασσός (Parnassos) que aparece na mitologia grega
como lar das Musas e que por isso é associado ao lar da poesia, da música e do
aprendizado[2].
Um paraíso da arte e das letras. Como grande escritor, Cervantes seria o
príncipe de Parnaso.
Para
concluir. Em termos de pontos forte e fracos, reitero que o melhor deste conto
é a escrita, e sua fragilidade, o enredo. A ideia é original, apesar de que
tornar personagens reais em fictícios não seja nenhuma novidade na literatura.
Contudo, Zafón integra Cervantes com perfeição ao universo expandido de O Cemitério dos Livros Esquecidos.
![]() |
Edição espanhola de A Cidade de Vapor |
É
verdade que o conto não é tão instigante quanto a série, mas ganha pontos por
nos dar mais um vislumbre dos ancestrais da mesma, assim como Zafón fizera em Rosa de Fuego porém este
último destoa um pouco das narrativas centrais por seus elementos fantásticos
que inexistem na quadrilogia e também no El
Príncipe de Parnaso. Verdade seja dita, El Príncipe de Parnaso tem mais a
ver com a série do que Rosa de Fuego.
Quanto ao
desfecho, este não é particularmente surpreendente, porque já era do
conhecimento do leitor desde as primeiras páginas. No entanto, os dois últimos
parágrafos sugestionam mais algumas coisas acerca das origens da grande
biblioteca. É neste breve ponto da trama que fica claro porquê, apesar de não
focar na grande biblioteca de livros esquecidos, a edição promocional do conto
traz em sua capa uma ilustração em ponta de lápis que sugere ser um vislumbre
do Cemitério de Livros quando este estava em construção. Um empoeirado e secreto paraíso de livros que
para sempre os fãs de Zafón procurarão pelas estreitas ruas da Barcelona
antiga.
A edição lida foi distribuída
gratuitamente como brinde pela editora Planeta na época do lançamento de El Prisionero del Cielo na Espanha. A edição é do ano de 2012 e possui 35
páginas. Como ele não é acessível no Brasil li numa versão em epub que encontrei na internet.
Sobre
o autor
Saiba mais sobre Carlos Ruiz Zafón na postagem
especial que fizemos sobre ele.
Postagens relacionadas
A Sombra do Vento – Carlos Ruiz
Zafón – Resenha de Releitura
As Luzes de Setembro – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
El Príncipe de Parnaso (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Jogo do Anjo – Carlos Ruiz Zafón
– Resenha
O Palácio da Meia-noite – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Príncipe da Névoa – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Prisioneiro do Céu – Carlos Ruiz
Zafón – Resenha
Quem é Carlos Ruiz Zafón? –
Especial Zafón
Rosa de Fuego (conto) – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
O Labirinto dos Espíritos – Carlos Ruiz Zafón – Resenha
[1]https://super.abril.com.br/historia/o-cavaleiro-da-triste-figura/.
[2]MOUNT PARNASSUS. In: WIKIPÉDIA, The Free Encyclopedia. Flórida:
Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Mount_Parnassus>.
Acesso em: 15 jan. 2021.