Um filme que daria um bom livro
Por Eric Silva
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Filme brasileiro escrito e dirigido pela paulista Anna
Muylaert, Que Horas Ela Volta? é uma
obra de enredo simples, mas que faz emergir um retrato social e cotidiano muito
fiel do trabalho doméstico no Brasil e, paralelamente, da migração nordestina
para a capital paulista. Um cotidiano que por vezes é marcado por humilhações e
desrespeito aos direitos trabalhistas e que já foi, em parte, a minha realidade
e também de minha mãe. Por isso, essa resenha terá um tom bastante pessoal.
Enredo
Em Que Horas Ela Volta?, Muylaert conta a história de Val (Regina
Casé), uma pernambucana que deixou sua terra e uma filha ainda pequena, Jéssica
(Camila Márdila), para tentar a vida como empregada doméstica na cidade de São
Paulo.
Por mais de dez anos, a
nordestina trabalhou como babá e empregada doméstica na casa de Bárbara (Karine
Teles) e José Carlos (Lourenço Mutarelli). Nesse tempo ajudou na criação de Fabinho
(Michel Joelsas), filho único do casal de classe alta, estabelecendo com o
menino um laço emocional muito forte. Em contrapartida, durante isso Val se viu
privada da convivência com a própria filha que só via quando viajava de férias
ao Pernambuco, participando muito pouco do crescimento da menina.
Além disso, na convivência
próxima com pessoas de classe muito alta, a pernambucana aprende a obedecer uma
série de convenções que por elas foram estabelecidas para separar patrões e
empregados e impor a estes últimos certos limites de intimidade.
A trama do filme se passa
justamente quando, uma década depois, Jéssica resolve ir morar com a mãe para
tentar ingressar no concorrido curso de arquitetura da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU).
Por exigência dos patrões ou
por necessidade – o filme não esclarece – Val desde o início passou a viver no
trabalho, ocupando o espaço diminuto de um quarto da área de serviço, onde
também armazenava todas as suas coisas.
Mesmo com todos os anos de
serviço nunca chegou a ter uma casa própria. Em conta disso, Val se vê obrigada
a levar a filha para seu trabalho, enquanto buscava uma casa que pudessem
alugar. Contudo, a chegada da inteligente e audaciosa Jéssica traz uma série de
problemas para mãe.
Ignorando qualquer convenção
que lhe dissesse qual o seu suposto lugar ou qual a maneira como se portar
dentro da casa dos patrões de sua mãe, Jéssica acaba por atrair não só a ira de
Bárbara, como também as atenções dos homens da casa, e, pouco a pouco, com suas
atitudes expansivas e de insubmissão às regras sociais ali impostas vai mudando
a forma de pensar e de ver o mundo da própria Val.
Os Personagens e seus
papéis
Que Horas Ela Volta?
possui personagens bem particulares, mas que, ao mesmo tempo, caminham por uma
linha tênue que separa o estereótipo e a representação social de diferentes
grupos. Ainda assim, cada personagem que figura a narrativa cumpre o papel de
representar no conjunto o teatro social brasileiro, seus principais personagens,
suas distorções e convenções.
Val tomando um pouco de sol, após terminar a lavagem da roupa da casa. |
Como profissional é o tipo da
empregada dedicada ao que faz, que se sente próxima dos patrões, mas sem deixar
de manter um certo distanciamento respeitoso, não se permitindo ser íntima
demais ou tomar liberdades que não condigam com sua posição de empregada. Nos
seus gestos, palavras e atitudes humildes, sobretudo quando se desculpa por
algo, é notória uma submissão pouco velada. Val é para mim como aquele
personagem que vive em suspensão, em um eterno estado de transição que nasce da
dualidade entre ser íntima e não o ser e nem permitir-se ser inteiramente, nem
a todo momento e nem com qualquer um.
Em seu papel social dentro da trama Val ainda representa
a coluna mestra que permite a tantas famílias de classe média a reproduzir seu status quo: enquanto os pais trabalham e
gozam de seus privilégios de classe, é ela quem de fato cria as crianças e
garante o funcionamento da casa. Dela
depende toda a família, nos mais diferentes níveis, sem que, no entanto, saia
de sua posição socialmente estabelecida.
Jéssica e Bárbara em uma das cenas onde a patroa da Val busca deixar claro qual é a posição de Jéssica em sua casa. |
Ao mesmo tempo, Jéssica é uma
estudante aplicada, porque vê nos estudos a possibilidade de um futuro melhor e
nisso ela é também um contraponto a Fabinho. O rapaz, ao contrário dela, já
tinha tudo e o seu ingresso na faculdade representava garantir o status quo da família no futuro.
Quanto a família para quem
Val trabalha, cada um cumpre representar uma parcela de uma classe que no
Brasil é cercada de privilégios, detém o poder econômico e historicamente vem
ditando as regras sociais dentro da sociedade brasileira.
José Carlos e Jéssica em cena na qual ele apresenta seu trabalho como pintor. |
Fabinho é o adolescente
mimado, inconsequente, despreocupado e acostumado a ter tudo sem se preocupar
com a origem da sua riqueza ou com o futuro. Ao mesmo tempo é o filho pouco ligado
aos pais que maior parte do tempo se encontravam ausentes e não o provia do
carinho e da atenção que ele necessitava. Os ciúmes de Jéssica é automático
apesar de ser pouco expressado, mas não tanto pelo pai, ou até por Val, mas
pela presença de alguém que ele acha “segura
de mais de si”.
Por fim, Bárbara é a típica socialite que não faz nada em casa por
conta própria, ligada ao mundo da moda e que como patroa sempre se mostra
amável, mas não perde a chance de mostrar veladamente e, nas entrelinhas, qual
é o lugar da criadagem e o seu descontentamento em relação a presença de
Jéssica em sua casa. Sua recepção a Jéssica, bem no início, é calorosa, mas
apenas até ela perceber que a menina não ficaria “da porta da cozinha pra lá”. Até notar o interesse mal dissimulado
do seu marido e, iminentemente, também do filho. Logo a máscara de boa patroa é
substituída pelo olhar prepotente, altivo e de pouco contentamento e as
indiretas começam a surgir. O desfecho já era esperado.
No fim, o conjunto desses personagens representa três grandes
grupos: a classe média acostumada a mandar e ser servida; a geração submissa da
classe trabalhadora acostumada a receber ordens, acatá-las e respeitar as
convenções impostas pela estratificação, bem como a própria estratificação; e,
por fim, Jéssica seria a nova geração, como afirma Léa Maria Aarão Reis[2],
que persegue um Brasil mais igualitário com a diminuição das desigualdades
entre classes, e que acredita que, através da educação, é possível alcançar
essa redução da desigualdade e por, extensão, alcançar também uma vida melhor.
Conclusão:
porque um bom livro?
Como os leitores sabem o 7ª Arte se dedica a falar tanto
de adaptações de livros para o cinema, como de filmes que dariam bons livros. No primeiro caso teço críticas e comparações entre o
livro e sua adaptação, mas no segundo caso explano os motivos que me levam
acreditar que o roteiro de um determinado filme se transformaria em um livro
interessante caso fosse escrito nesse modelo.
Confesso que minha escolha
por Que Horas Ela Volta? tem razões
muito pessoais. Ele é um filme que tem muito a ver comigo e por isso chamou
bastante a minha atenção.
Assim como a personagem
Jéssica já fui o filho da empregada doméstica que morava no serviço. Vivi uma
década de minha vida em uma casa que não era minha, e apesar de ter uma relação
relativamente boa com os membros da casa, também passei por momentos bem ruins
e desconfortáveis que só quem já viveu na casa dos outros sabe bem como é. Além
disso, reconheço em Val a labuta, a submissão, a quase servidão a que minha
mães esteve submetida, bem como o comportamento condicionado por limites
invisíveis e que ela, para nos manter lá, também me impôs.
Porém, aparte das minhas
razões pessoais e logo egoístas, considero que a relevância dos temas que são
discutidos por Que Horas Ela Volta? já
o tornaria um bom enredo para livro. Porém, além dessa relevância, soma-se o
fato de que ainda não li um livro brasileiro que abordasse a questão dos
trabalhadores domésticos desta maneira. Conheço apenas uma obra estrangeira que
tenta desbravar as intrincadas relações entre patrões e empregados domésticos.
Esse livro seria O Diário de uma
Camareira, de Octave Mirbeau, mas que pelos seus 117 anos de existência
fala de um contexto histórico muito diferente, além de ser sobre outro país.
O trabalho domestico na mansão de Bárbara. Em primeiro plano, Val e a diarista que lhe ajuda com a limpeza da casa. |
Estou acostumado a ver no
cinema e na literatura o empregado como uma espécie de figurante, ou personagem
secundário, condizendo com sua posição dentro da casa dos seus senhores.
A cozinha é o lugar do
mexerico, o mordomo é o lacaio fiel, a governanta é a tirana que conduz a mãos
de ferro a criadagem subalterna, a empregada é o alvo preferido das ofensas,
das provocações e humilhações de seus senhores. Esses são os esteriótipos mais comuns. Quando o personagem foge deles ela/ele é aquela pessoa maravilhosa, surreal, que merecia ser mais
do que um simples empregado e por vezes é promovido a patroa/patrão. Logo é
também um modelo nem sempre real.
Para mim, a Val de Que Horas Ela Volta? devolve a
humanidade aos empregados domésticos ao ser retratada como alguém com seus
próprios dramas pessoais, que padece os dissabores da profissão. Um alguém que
é simples mas não ingênuo, que é envolvida pelo sentimento de dever imposto por
sua posição, mas que também se envolve emocionalmente com as pessoas para quem
trabalha, e que no fim, faz suas escolhas a partir daquilo que de fato é
importante para si.
Ademais, Que Horas Ela Volta? tem um
traço que gosto muito no nosso cinema: a sua capacidade de trazer histórias
cheias de humanidade. Vi essa humanidade em toda a trama, na relação
carinhosa entre Val e Fabinho e também no desfecho que fala de recomeço.
Trata-se de um filme que ao
mesmo tempo que desnuda e expõe as relações entre ricos e pobres, patrões e
empregados, também ressalta como o afeto pode estar pra além disso. Em meio a todas as questões de classe, o
filme mostra que a humanidade existe no amor sincero cultivado ao longo dos
anos com cumplicidade, afeto e atenção e não reconhece as fronteiras entre
classes.
Val e Fabinho em uma das cenas que melhor representou o carinho entre os dois. |
Enfim, é uma relação muito
bonita de carinho e cumplicidade, nascida entre duas pessoas carentes de
carinho, ele da mãe, ela da filha ausente. Sentimento raro, mas que mostra que,
aparte de tudo, ainda somos humanos e em nossa humanidade, quando não nos deixamos
levar pelas convenções sociais, somos capazes de amar e encontrar amor em toda
parte.
Enfim, em seu conjunto e com a incrível atuação de Regina
Casé, Que Horas Ela Volta? revela um
retrato fiel das divisas sociais que separam as classes e que são reproduzidas
em todos os contextos e dimensões da vida cotidiana da sociedade brasileira e,
ao mesmo tempo, tratou da humanidade nas relações sinceras. Um filme real,
bonito, sincero, humano. Preciso dizer mais alguma coisa?
A película é uma produção dos
estúdios Gullane e África Filmes, com co-produção de Globo Filmes e entrou em
cartaz no ano de 2015. Foi ganhador do Prêmio Especial do Júri Pela Atuação
para Regina Casé e Camila Márdila no Festival de Sundance. Venceu no Festival
de Berlim o prêmio do Público de Melhor ficção na Mostra Panorama e o prêmio
CICCAE. Venceu ainda no RiverRun International Film Festival pelo melhor roteiro,
dentre outros prêmios no Brasil e no mundo. Tem duração de 112 minutos.
Abaixo você pode conferir o
trailer do filme:
Trailer
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[1]
https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2016/01/30/que-horas-ela-volta-um-filme-para-se-pensar-a-estratificacao-social-no-brasil/
[2]https://www.geledes.org.br/que-horas-ela-volta-com-medo-de-jessica/?gclid=EAIaIQobChMIx4mDzeXY1wIVS4GRCh1l8w4cEAAYASAAEgL-KvD_BwE