quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Mães solo no Japão e a personagem Keiko de Ninguém Pode Saber – Postagem Especial


Por Eric Silva

“Eu só queria alimentar o meu filho o suficiente para satisfazê-lo.”
(trecho de bilhete suicida de uma mãe solo japonesa).


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Recentemente resenhei o filme japonês Dare mo Shiranai (誰も知らない), traduzido no Brasil como Ninguém Pode Saber. Baseado em fatos reais, o filme dirigido por Hirokazu Kore-eda (是枝 裕和) conta a história de quatro crianças que tentam sobreviver, ao longo de meses, ao desamparo e a pobreza, após serem abandonadas pela mãe em um apartamento diminuto no subúrbio da cidade de Tóquio.

Nessa resenha falei um pouco sobre o filme, minhas impressões e também sobre seus principais personagens, sobretudo o menino Akira (福島明), e, de forma mais breve, sua mãe, Keiko Fukushima (福島けい子), esta última, o personagem mais intrigante e oblíquo da narrativa.

A família Fukushima

Ao longo dos meus comentários e análise da personagem interpretada por You (江原由希子 Ehara Yukiko), apontei que Keiko é uma mulher de fala e lógica muito infantil e que, por sua imaturidade, não foi capaz de seguir um planejamento familiar, tendo muitos filhos de pais diferentes e ausentes. Ao mesmo tempo, ela foi incapaz de manter-se junto as quatro crianças e após escondê-las da sociedade, privando-as de uma vida normal, também as abandona em troca de uma proposta de casamento. Ou seja, afirmei categoricamente que a família Fukushima é nitidamente desestruturada e o centro dessa falta de estrutura é a mãe das quatro crianças, principal responsável pela desventura dos filhos. Mas, na ocasião, também levantei um outro questionamento: seria realmente só isso? Não estaria fazendo uma análise superficial da personagem?

A minha tese é que analisar a personagem Keiko apenas por suas características psicológicas, desconsiderando o contexto social no qual ela se encontra é se manter na superfície dos fatos. Por mais desequilibrado, imaturo ou irresponsável que seja o ser humano, suas escolhas e atitudes não são determinadas de forma aparte do contexto social no qual se encontra inserido, porque ser humano algum está imune das influências e determinações sociais.

Essa linha de raciocínio fez então com que eu me questionasse qual seria, no Japão, a realidade das mães solteiras, ou mães solo. E ao fazer algumas pesquisas, constatei que, por detrás da Keiko que Kore-eda nos permite conhecer, há o peso de uma sociedade na qual centenas ou até milhares de mães japonesas solteiras passam por profundas dificuldades financeiras junto com seus filhos, a despeito do avanço social apresentado pelo país.

Conhecer essa realidade até então ignorada por mim, permitiu com que eu tivesse uma outra visão sobre a personagem de Dare mo Shiranai. Não uma visão que justifica suas ações, mas que ao menos volta-se para ela com um olhar mais humano.

Nessa postagem especial apresento algumas informações sobre a situação da mãe solo no Japão e falo um pouco da minha interpretação da personagem Keiko do filme de Kore-eda.

***

A mãe solo (solteira) no Japão

As condições de vida das famílias monoparentais chefiadas por mulheres no Japão nem sempre são as melhores possível, podendo variar bastante de acordo com fatores como: a escolaridade individual da mulher, seu histórico de trabalho, círculo social e até mesmo recursos internos.

Segundo algumas pesquisas que realizei na internet, muitas das mães de família solteiras se encontram na linha da pobreza e até mesmo passam fome. Seus filhos são em média mais pobres e apresentam níveis de escolaridade menor, além de menores perspectivas de crescimento social[1].

No Japão, existe a tendência de que as mulheres ganhem muito menos do que os homens na realização de tarefas similares. Contudo, a situação se tornou ainda mais grave após muitos anos de estagnação econômica ao qual o país se encontrou submetido. Segundo afirma Yoshiaki Nohara, jornalista da agência de notícias nova-iorquina Bloomberg[2], muitos postos de trabalho permanentes no Japão foram sendo gradativamente substituídos por empregos de baixa remuneração com carga horária de meio período ou por contratos. Essa nova realidade trabalhista teria afetado o modo de vida de muitos japoneses, mas de forma especial às mães solo do país que tiveram suas perspectivas de trabalho consideravelmente diminuídas.

Ainda segundo Nohara, a maioria dessas mulheres conseguem se empregara apenas em ocupações temporárias, de meio período ou por contratação, o que lhes dão não só rendimentos menores como poucas garantias de benefícios sociais ou previdenciários. Por conta disso, não é incomum que essas mulheres procurem vários empregos que lhe garantam, no conjunto, o mínimo para suprimir as necessidades do núcleo familiar que chefiam.

Ainda assim, segundo estatísticas apresentadas por Akaishi Chieko, membro do Painel de Especialistas em Apoio a Famílias Monoparentais no Conselho de Segurança Social do governo japonês[3], “mães solteiras que conseguem encontrar e manter posições regulares recebem em média ¥2,7 milhões (R$ 80.730,00) anualmente”, em contraposição àquelas que trabalham no regime de trabalhos temporários, de meio período ou de pagamento por hora, e que acabam por receber entorno de ¥1,25 milhões (R$ 37.375,00) valor que se encontra abaixo da metade da média em relação a todas as famílias japonesas de classe média.

Chieko explica que a origem do problema de tantas mães solo viverem em condição de pobreza está enraizado na discriminação de gênero existente no país e que se combina com o aumento da pobreza e da desigualdade de renda. Segundo a especialista, a desigualdade salarial entre os gêneros no Japão está entre as maiores do mundo industrializado, com as mulheres ganhando salários que no geral são baixos. Ela afirma, inclusive, que a pobreza não é um caso isolado das mães solo, mas um problema que vem crescendo para as mulheres japonesas no geral.

No caso específico das mães que trabalham, afirma Chieko, estas recebem até 60% menos do que os pais que trabalham. Em suas palavras esta disparidade de renda é resultante de “um sistema social construído com base na concepção de que o marido é o chefe da família”. Ela ainda complementa:

O sistema formou suas raízes nas décadas de 1950 e 1960 para dar apoio à estrutura familiar padrão que consistia em um marido que trabalhava por longas horas fora de casa; uma esposa que ficava em casa para fazer os serviços domésticos, cuidar das crianças e dos idosos (suplementando a renda de seu marido através de trabalhos de meio período quando necessário); e seus filhos. O sistema dá tratamento preferencial para famílias com esposas dependentes através do pagamento de pensões para cônjuges dependentes, da isenção de imposto de renda para o cônjuge e subsídios para o cônjuge pagos por empregadores corporativos”.

Por conta desse sistema, mais da metade das mulheres japonesas param de trabalhar quando casam ou tem seu primeiro filho e passam a se dedicar a família por tempo integral, tornando-se dependente de seu cônjuge. Contudo, declara Chieko, “o peso econômico que o sistema impõe sobre aqueles que se afastam da norma cai desproporcionalmente em cima das mães solteiras, as quais encaram o desafio de conseguir dinheiro o suficiente para criar seus filhos em um mercado de trabalho que foi montado para oferecer nada mais do que ganhos suplementares às mulheres durante os anos de educação de seus filhos”.

O resultado é que as mulheres que chefiam famílias monoparentais encontram dificuldades muito grande para manter seus filhos em um país com elevado custo de vida. Quando não conseguem postos regulares de trabalho, suas famílias entram para a lista daqueles na linha de pobreza ou abaixo delas. Por isso, não é incomum que elas evitem compartilhar com amigos e familiares a realidade de seus relacionamentos, como declara a redação da revista Marie Claire em reportagem de 2017[4].

Paulo Sakamoto, do IPC Digital[5], menciona um caso de 2013, ocorrido no distrito de Kita, em Osaka, no qual uma mãe e seu filho foram encontrados mortos em um apartamento. Segundo ele não havia alimento algum no local e fora encontrado um bilhete com as seguintes palavras: “Eu só queria alimentar o meu filho o suficiente para satisfazê-lo.” Segundo Sakamoto, esse caso foi o motivador para o surgimento de uma ONG japonesa, o grupo “Ação Contra a Pobreza Infantil de Osaka”, que vem trabalhando com mães solteiras em condições de pobreza.

O nível de escolaridade é outro ponto que, conforme declara Chieko, se configura como fator impulsionador das dificuldades encontradas pelas mães solo do Japão. A especialista explica que, no país, possuir um diploma de conclusão do ensino médio é pré-requisito para licenças profissionais e também certificados. Segundo ela, aqueles que não completaram o ensino médio possuem opções de carreira muito limitadas e acabam ou desempregados ou em subempregos nos quais são muito mal pagos. Por conta disso, o nível de escolaridade da mulher é um fator importante no que diz respeito as condições de vida por ela enfrentadas quando se torna uma mãe solo.

Chieko afirma que no Japão existem medidas e programas adotados pelo Estado japonês para prestar auxílio social às mães solteiras ou divorciadas, mas ela adianta que essa assistência pública é inadequada e, por isso, pouco auxiliam para a melhoria da qualidade de vida das famílias monoparentais em situação de pobreza. Segundo a especialista as duas principais formas de assistência públicas disponíveis no país são: o subsídio de educação para as crianças (jidō fuyō teate), que é utilizado principalmente por pais divorciados, e o subsídio infantil (jidō teate), um benefício para famílias de baixa renda com filhos. Porém, ambos possuem pagamentos muito baixos e o governo não oferece ajuda quanto aos custos de seguro social, que, segundo Chieko, são “uniformemente elevados” e “que as famílias japonesas devem pagar aos sistemas de seguro de saúde e de pensões”.

Em suma, pode-se perceber que as condições de vida das mães solo (solteiras) no Japão, mesmo em tempos modernos, podem ser muito difíceis, marcadas por tabus e problemas econômicos, a depender da escolaridade, histórico trabalhista e círculo social da mulher. Isso me fez cogitar a ideia de que situações como estas podem levar muitas mães desesperadas ou que ambicionam para si uma condição de vida mais estável e favorável às atitudes extremadas e criminosas como as adotadas pela personagem de Kore-eda e pela mulher real que inspirou o filme. Todo esse contexto social parece estar nas entre linhas da história de Dare mo Shiranai, mas nem sempre é possível deduzi-lo ou cogitá-lo.

Depois de apresentar algumas estatísticas falarei mais sobre Keiko Fukushima.

Algumas estatísticas

De acordo com o Ministério da Saúde do Japão, 16% das crianças japonesas vivem abaixo da linha da pobreza, número esse que aumenta para 55% entre famílias monoparentais[6].

De acordo com o Ministério do Trabalho, no Japão, o número de famílias de mães solteiras aumentou cerca de 50% entre os anos de 1992 e 2016 (712.000 famílias)[7].

A taxa de pobreza infantil para famílias de mãe solteira que trabalha é de 56%, a mais alta entre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)[8].

Segundo relatório do Governo Metropolitano de Tóquio, dos 1.447 casos de maltrato infantil computados entre março de 2003 e 2004, 32% ocorreram em famílias monoparentais e 31% em domicílios com dificuldades econômicas[9].

A idade média das mães solteiras no Japão é de 40 anos. Destas, 80,8% são divorciadas, 7,8% não se casaram e 7,5% são viúvas[10].

Apenas cerca de 40% das mães solteiras são classificadas como empregadas regulares e mais de 50% são empregadas não-regulares. A proporção entre não-regulares e regulares vem crescendo anualmente[11].

A porcentagem de mães solteiras que possuem apenas o ensino fundamental é de 13,3%[12].

A renda média anual para mães solteiras que não concluíram o ensino médio é de ¥1,29 milhões (R$ 38.571,00)[13].



Keiko Fukushima


Keiko
Se no filme Dare mo Shiranai o menino Akira é o personagem mais notável e interessante, Keiko, sua mãe, é, sem dúvidas, o mais intrigante para mim.

Mais infantil que as próprias crianças, tudo na personagem da atriz You (江原由希子 Ehara Yukiko) mostra um posicionamento estranho, imaturo e irresponsável em relação a vida. Desconsiderar a importância dos estudos, deixar crianças cuidarem de si como se fossem adultos, escondê-las da sociedade, depender delas nas tarefas domésticas, trocar constantemente de parceiro e arriscar a vida de duas crianças pequenas só para omitir sua existência são apenas algumas das ações de Keiko que nos faz pensar que a personalidade da japonesa é das piores possíveis.

É obvio que a atitude de Keiko ao abandonar seus filhos à própria sorte demostra bastante desumanidade por sua parte, mas analisá-la apenas por suas características psicológicas, desconsiderando o contexto social que apresentei acima e no qual ela se encontra, é se manter na superfície dos fatos. Keiko não aparenta ser apenas o algoz, mas, ao mesmo tempo, parece ser também vítima de algo maior do que ela, maior do que aquele apartamento diminuto e com o qual a moça, por sua infantilidade explícita, por sua falta de maturidade contundente, não teve nem forças nem jeito para lidar. Numa sociedade na qual as mães solteiras muitas vezes se vem em condições muito difíceis, Keiko cedeu às soluções fáceis e muito pouco morais.

Primeiramente, é evidente que Keiko é imatura e irresponsável, isso não se discute, porque quem analisa com cuidado a trama criada por Kore-eda percebe que Keiko é pouco afeita a encarar a realidade de forma objetiva. Suas aventuras amorosas inconsequentes deram origem a quatro crianças não planejadas, em um país onde os cultos de vida e para criar um filho são elevadas, levando os casai japoneses a optarem por ter poucos filhos. Entretanto, nem tudo nessa mulher é verdadeiramente infantil, há ali também muito de malícia e isso é fácil de notar quando ela se demonstra empenhada a esconder literalmente a existência de seus filhos. E aqui chegamos ao ponto em que constatamos essa malícia: esconder da sociedade a existência dos filhos nada mais é do que uma estratégia para se alcançar um fim, um casamento que lhe dê estabilidade.

A vida de uma mãe solo (mãe solteira) no Japão está longe de ser uma das melhores. Como vimos, uma grande parcela delas vive com extrema dificuldade financeira estando na linha de pobreza e trabalham em diferentes empregos para conseguirem manterem seus lares. Keiko seria uma delas.

Pertencente ao grupo dos 7,8% das mães solteiras que não se casaram, a personagem do filme não parece ter vários empregos, mas trabalha até muito tarde, quando os seus atrasos não são decorrentes a farras e bebedeiras com conhecidos seus. Além disso, a pouca importância que ela dá a escolarização demonstra que mesmo ela deve ter um nível educacional muito baixo, o que limitariam ainda mais suas possibilidades de conseguir uma colocação profissional com salário maior do que seu trabalho em um departamento de venda de roupas. Ela muito provavelmente possuía uma renda tão baixa quanto as estatísticas japonesas apresentam e notadamente ela jamais conseguiria atingir uma ascensão social por outras vias que não fossem um casamento bem-arranjado.

Cartaz francês do filme.
Diante disso, Keiko prefere sonhar com um futuro melhor e estável que poderia ser garantido pelo casamento, aparentemente a forma mais fácil de ascensão social para a japonesa. Contudo, esse sonho esbarra no mecanismo pelo qual funciona uma sociedade que é ainda muito machista e até certo ponto tradicional: mães solteiras dificilmente se casam, porque dificilmente um homem deseja assumir os filhos de outro.

Keiko, no meu ponto de vista, abandona os filhos porque desejava a estabilidade de um casamento que ela jamais conseguiria sendo mãe de quatro crianças. Que homem se casaria com ela sabendo de sua prole numerosa quando nem os pais biológicos das crianças assumiram a paternidade? Silenciosamente ela tinha consciência disso e, por isso, era fundamental que o mínimo de pessoas soubesse da existência dos filhos.

Como mãe solteira e profissional de baixo nível de escolarização, ela tinha poucas perspectivas de ascender socialmente, ainda mais com quatro crianças para vestir e alimentar. Além disso faltava-lhe a maturidade e a força de vontade para enfrentar esse desafio enorme e cheio de privações.

Aparenta inicialmente ser uma boa mãe, zelosa, gentil e atenciosa, mas ao longo de toda a trama ela age de forma bastante egoísta. Para ela escondê-los estava acima de garantir o bem-estar e a integridade física e emocional das crianças. Transportar os filhos menos em malas de viagem e submetê-los a essa condição aponta para uma negligência velada pela máscara de mãe carinhosa. Além disso, ainda pode-se mencionar a forma como ela põe sobre as costas de Akira um peso desproporcional a sua idade: cuidar da família como se fosse um pequeno adulto. Se não bastasse, ainda questiona ao menino – quando este se queixa de seu novo relacionamento – se ela não podia ser feliz, e culpa o pai de Akira pelo seu infortúnio.

Em resumo, aquela família era produto da falta de maturidade e sentimento de dever e responsabilidade de Keiko e ao mesmo tempo era a amarra que a impedia de ascender à vida que desejava para si. Essa mesma falta de maturidade e responsabilidade condena ela e os filhos a uma vida cheia de mudanças e inconstâncias, onde tudo é provisório e irregular. Sempre que a vizinhança descobre a existência das crianças eles se mudam e, para manter sua condição oficial de solteira, os quatro são impedidos de frequentar uma escola, de sentirem a liberdade de espaços amplos e abertos e de viverem uma vida normal, como a de outra criança qualquer.

Mas porque ela esconde a existência de seus filhos? A resposta não seria tão simples, em boa parte já a respondemos, mas algumas evidências são passiveis de ponderação.

Em primeiro lugar, omitir a existência de quatro crianças reduzindo-as a uma, ajudava conseguir locatários que aceitassem alugar um imóvel para ela e seu filho. Escondê-las era também uma forma de mantê-las incógnitas da sociedade, tornando, inclusive, mais fácil abandoná-las depois.

Em segundo lugar, e bem mais óbvio que o primeiro motivo, não admitir a existência de seus filhos significava manter mais facilmente a imagem de uma mulher solteira e desimpedida, o que facilitava a busca por um parceiro, como já explicamos.

Em terceiro lugar, não matricular as crianças na escola representava uma economia, tendo em vista os gastos elevados com escolarização sem o devido apoio de programas sociais que poderiam ser oferecidos pelo Estado. Se isso não bastasse, a pouca escolarização dela própria poderia ser uma justificativa para a visão estreita e reducionista da mesma em relação a importância das crianças frequentarem a escola.

Em conclusão, sem estruturas psicológicas ou morais suficientes e vítima de um sistema social injusto, Keiko acaba por se tornar algoz de seus filhos. Com um nível de escolaridade baixo e menores perspectivas de crescimento social e profissional, além de uma renda muito baixa, sem ajuda governamental e com muitos filhos para sustentar sozinha, Keiko escolheu a solução mais fácil: abandonar suas crianças à própria sorte e recomeçar com um novo parceiro.

Diria eu que ela é produto de uma sociedade onde a mulher é desvalorizada profissionalmente, onde manter-se empregado é muito difícil, e que força, sobretudo os menos escolarizados, a se submeterem a formas de trabalho não-regulares. Um sistema no qual as mães solos são submetidas à grandes privações e desafios para garantir a alimentação e a escolarização mínima de seus filhos. Desse modo, de forma egoísta ela sacrifica o bem-estar de seus filhos – os únicos inocentes em toda essa trama – em nome de seu próprio conforto. Essa é a Keiko tal qual eu a vejo.






[1] Filhos de mães solteiras se tornam classe baixa no Japão. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2018/06/25/filhos-de-maes-solteiras-se-tornam-classe-baixa-no-japao.htm.
[2] Filhos de mães solteiras se tornam classe baixa no Japão. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2018/06/25/filhos-de-maes-solteiras-se-tornam-classe-baixa-no-japao.htm.
[3] A situação difícil enfrentada pelas "mães solteiras" japonesas. Disponível em: http://www.rukhnoteikoku.com/2016/11/traducao-situacao-dificil-enfrentada.html?m=1.
[4] Preconceito leva mães solo à pobreza, no Japão. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2017/05/preconceito-leva-maes-solo-pobreza-no-japao.html.
[5] ONG: Mães solteiras do Japão enfrentam pobreza, fome e abusos.  Disponível em: http://www.ipcdigital.com/nacional/ong-maes-solteiras-do-japao-enfrentam-pobreza-fome-e-abusos/.
[6] https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2017/05/preconceito-leva-maes-solo-pobreza-no-japao.html
[7] https://economia.uol.com.br/noticias/bloomberg/2018/06/25/filhos-de-maes-solteiras-se-tornam-classe-baixa-no-japao.htm
[8] Ibidem.
[9] Ibidem.
[10] http://www.rukhnoteikoku.com/2016/11/traducao-situacao-dificil-enfrentada.html?m=1
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] Ibidem.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

7ª Arte: Ninguém Pode Saber (Dare mo Shiranai) – Resenha


Por Eric Silva

Está sem tempo para ler? Ouça a nossa resenha, basta clicar no play.



Dramático sem ser ridiculamente sentimental, mas belo, delicado e triste, o primeiro 7ª Arte da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo traz a resenha do filme japonês Dare mo Shiranai (誰も知らない), no Brasil conhecido como Ninguém Pode Saber. Inspirado em um caso real, o filme do diretor, produtor, roteirista e editor Hirokazu Kore-eda conta a história de quatro crianças que tentam sobreviver ao longo de meses ao desamparo e a pobreza após serem abandonadas pela mãe em um apartamento diminuto no subúrbio da cidade de Tóquio.

Nobody Knows: um enredo sobre abandono

Lançado em 2004, e escrito, produzido, editado e dirigido pelo cineasta japonês Hirokazu Kore-eda (是枝 裕和), Dare mo Shiranai, ou Nobody Knows, conta a história da família de Keiko Fukushima (福島けい子), uma jovem mãe que esconde e abandona seus quatro filhos para se casar.

O enredo começa com a chegada de Keiko e seu filho mais velho, Akira (福島明 – 12 anos), ao novo apartamento onde passariam a viver. Para esconder sua condição de mãe solteira de quatro crianças e manter as aparências de uma mulher respeitável, Keiko apresenta o menino aos locatários como seu único filho, explicando que seu esposo se encontrava ausente em viagem de trabalho. Porém, o grande segredo guardado por aquela mulher de aparência risonha e fala infantil chega ao apartamento 203 escondido dentro de duas malas de viagem:  o travesso Shigeru (福島茂) de idade não declarada, e o membro mais novo da família, a doce Yuki (福島ゆき) de apenas 5 anos.

Só no fim do dia, quando a escuridão da noite oferecia coberta para a chegada furtiva de um quinto morador, é que Akira recebe permissão da mãe para ir à estação. Lá, sozinha, a irmã Kyōko (福島京子), de 11 anos, esperava pela sua oportunidade de entrar clandestinamente na nova casa.  É só aí que enfim a família Fukushima se encontra completamente reunida com seus cinco membros, três deles destinados a viverem escondidos como fantasmas silenciosos, moradores não declarados. Somente Akira teria permissão para sair de casa, para comprar mantimentos e cumprir pequenas tarefas na rua.

Nas primeiras semanas, Keiko se demonstra uma mãe carinhosa e divertida, mas, gradativamente, ela volta a sua antiga rotina de namorados pela rua, saídas a noite e de chegar muito tarde do trabalho, algumas vezes alcoolizada enquanto vai deixando para os dois filhos mais velhos, sobretudo Akira, as tarefas domésticas e os cuidados com os irmãos menores. Logo, Akira e Kyōko pressentem que a mãe havia encontrado um novo namorado e não são pegos de surpresa quando ela some de casa deixando 90 mil ienes e um bilhete para Akira pedindo que cuide dos irmãos enquanto está fora.

A família Fukushima reunida na primeira noite no apartamento novo.

Acostumado aos desaparecimentos repentinos da mãe, principalmente quando estava envolvida em um novo relacionamento amoroso, Akira assume as responsabilidades da casa. Com o escasso dinheiro deixado por ela, o menino passa a administrar as despesas da casa, recorrendo a dois antigos namorados de Keiko quando o dinheiro começa a acabar, porém esses se esquivam de ajudá-los de fato, dando ao menino alguns poucos trocados.

Com o passar dos meses e confinados naquele apartamento em estado cada vez mais precário, as condições de vida dos quatro vão se deteriorando, deixando o estado de abandono e miséria ainda mais explícito. Sem que ninguém perceba ou tome providências em relação as crianças essas chegam ao ponto de sobreviverem de sobras doadas por um funcionário de um mercado local, e a utilizarem a água de um parque próximo para beber, lavar roupas e tomar banho.

Ao longo de todo o restante da película, vamos acompanhando o lento resvalar das condições de vida das quatro crianças, as mudanças de suas personalidades e a conscientização gradativa de que a mãe nunca retornaria, até que o filme alcança seu ápice com um desfecho em aberto.

Abandono: um drama silencioso

Dare mo Shiranai é o primeiro filme japonês não animado que assisto. Uma experiência interessante e que vem incitando em mim a curiosidade de conhecer outras obras cinematográficas nipônicas. O tema é forte, mas longe de ser incomum, mas a forma crua como foi representado por Kore-eda é tocante sem ser piegas e capaz de reviver nos olhos de seu expectador a perplexidade. Mesmo aqueles que já se acostumaram a passar pelos invisíveis (as crianças miseráveis e indigentes que se multiplicam pelas ruas das grandes cidades), não conseguem se manter indiferentes ao drama das quatro crianças abandonadas por uma mãe inconstante, infantil, egoísta e muito atípica.

O roteiro de Dare mo Shiranai é simples e pouco extravagante, assim como os seus cenários que retratam o cotidiano de uma grande cidade em contraste com o mundo diminuto habitado pelos personagens principais. Porém, nesse mesmo roteiro sobram elementos repletos de significados que considero chaves na trama: o significado de família, o mal planejamento familiar, o costume tipicamente japonês de conter seus sentimentos e, principalmente, os temas da infância perdida e do abandono.

Em muito, o enredo do filme me lembra bastante a premissa da narrativa do livro O Jardim dos Esquecidos, de autoria da escritora estadunidense Virgínia C. Andrews (veja a resenha). Assim como os Fukushima de Dare mo Shiranai, as quatro crianças da família Dollanganger deveriam se manter confinadas em um espaço não muito amplo, onde suas existências seriam ignoradas pelo resto do mundo. Ali são obrigadas a amadurecerem e assumir responsabilidades e papeis paternais como ocorre sobretudo com Akira, mas também com Kyōko, e também padecem os efeitos nocivos de um abandono prolongado e perverso, como se dá com a pequena e abatida Yuki.

Kyoko, a segunda mais velha das crianças. Personagem interpretado por Ayu Kitaura.

A mãe dos Dollanganger também é uma mulher amorosa e cheia de vida, é adorada por seus filhos e cheia de sonhos, no entanto, é também igualmente egoísta e capaz de mentir e enganar para alcançar os seus objetivos e, por isso mesmo, os desfechos das duas obras possuem suas semelhanças na essência: as crianças lutam por sua sobrevivência. Os enredos, porém, divergem sobretudo no tom melodramático com que Andrews pinta sua narrativa, adaptada duas vezes para o cinema, a primeira em 1987, com direção de Jeffrey Bloom, e a segunda em 2014, por Deborah Chow.

A família Fukushima não é muito comum para os padrões japoneses tipicamente formada por poucos membros. Além de solteira Keiko é mãe de quatro crianças com menos de 13 anos, filhas de pais diferentes e todas sem referências paternas. Se isso não bastasse, as crianças não frequentam a escola e não possuem permissão para saírem de casa, devendo conter todos os seus impulsos para serem ao máximo discretas e silenciosas, nunca chamando a atenção para suas existências que deveriam se manter incógnitas.

Quando comecei a assistir a película, foram as peculiaridades da família Fukushima o nó que me prendeu à tela e à história das quatro crianças abandonadas. Kore-eda ganha a atenção e curiosidade de seu expectador no exato momento em que as duas crianças menores são retiradas de dentro de uma mala. Ali você é assaltado não apenas pela perplexidade como por uma infinidade de questões relacionadas ao desfecho de tudo aquilo. Qual seria o intuito daquela mãe? O que a fez tomar uma atitude tão irresponsável e perigosa? Como essa história vai se desenrolar? Qual será o destino daquelas crianças na mão dessa pessoa?

Como disse a família Fukushima foge ao padrão moderno que conheço do Japão e isso me atiçou a curiosidade. Dare mo Shiranai me revelava diante da tela uma outra faceta que até então era desconhecida por mim: a realidade das mães solteiras japonesas.

O tema central do filme é genuinamente universal. Tudo em sua temática o é. Mas ao mesmo tempo há muito da cultura japonesa impregnada no enredo e nas ações dos personagens.

O abandono de menores é uma realidade que se dá nos quatro cantos do planeta, das mais diferentes formas e muitas delas bem mais brutais e desumanas do que a representada por Kore-eda. Mas o que faz com que uma história tão naturalmente universal se torne genuinamente japonesa não é só o contexto, mas, principalmente, a atitude das crianças frente a adversidade no qual foram jogadas: uma atitude corajosa de comedimento em relação aos próprios sentimentos e força para seguir em frente.

Akira, personagem interpretado por Yuya Yagira.

O personagem Akira, brilhantemente interpretado por Yūya Yagira, é o principal destaque da trama. Ao que tudo indica, o menino nunca pode viver sua infância por ter dentro da família o papel de substituto da mãe. Sobretudo nas prolongadas e constantes ausências de Keiko, o pequeno é o principal responsável pelo cuidado das outras três crianças. Por isso, Akira é forçado a amadurecer antes do tempo tornando-se perspicaz, buscando estratégias de sobrevivência, se ocupando da economia e do provimento da casa e, instintivamente, assumindo completamente o papel da mãe ausente. Ali Kore-eda esmiunça o significado de família e a importância que se deve dar a ela.  A importância que não é atribuída e valorizada pelo adulto do grupo é decididamente o fator que faz Akira reunir forças. Não apenas o instinto de sobrevivência, mas a importância que os irmãos tinham para ele, além da certeza de que os quatros só possuíam uns aos outros em um mundo selvagem e indiferente.

Yuki segurando firme na roupa de Akira logo após um cobrador ter insistido batendo na porta do apartamento.

É o desejo de se manterem unidos que os levam a decidir não fazer uma denúncia para a assistência ao menor, o que resultaria inevitavelmente na separação, e esse mesmo desejo dá a Kyōko, Yuki e Shigeru a força necessária para suportarem o sofrimento vivido com resignação e paciência durante a maior parte do tempo. Mesmo quando vacilam, os três menores são puxados novamente para a realidade pelo mais velho e voltam a recuperar a atitude anterior, esperando por ele e apoiando-o, mesmo quando se sentiam entediados e melancólicos no confinamento do apartamento.

Contudo, o que mais impressiona no personagem interpretado por Yagira é que, mesmo nas horas de desespero, de dúvida e desalento, Akira é o mais lúcido e contido, jamais expressando dúvidas ou aflição na frente dos irmãos e jamais se entregando ao choro, mesmo quando tudo deveria levá-lo ao pranto. Ele é o primeiro a entender que a sobrevivência de todos dependeria de suas ações e escolhas, por isso não podia se permitir transparecer aos irmãos nem a menor de suas preocupações, mantendo-os o máximo que fosse possível enredados na esperança de que a mãe retornaria até o momento em que não restasse esperança alguma.

É completamente tocante a forma corajosa e determinada com o qual o garoto enfrenta o abandono de sua mãe. Mesmo quando o imenso peso de suas responsabilidades dá vasão ao seu lado infantil e ele vacila nos cuidados com os irmãos e com a casa, ao perceber seu erro e as consequências terríveis deste, o menino não só é puxado outra vez para a sua realidade amargurada, como rapidamente reassume o papel que lhe fora imposto e prossegue denodadamente tentando manter a si e aos outros vivos.

O conter as emoções é uma marca muito comum aos japoneses e isso se reflete na forma como eles encaram a vida e no que fazem dela. Quando aquelas crianças incorporam bravamente esse posicionamento, eles dão ao tema que é bastante universal, um caráter muito japonês.

No entanto, se Akira é o personagem mais notável e interessante de Dare mo Shiranai, Keiko é, sem dúvidas, o mais intrigante para mim. Ao longo de toda a película Keiko é representada como uma mulher de fala e lógica muito infantil e que, por sua imaturidade, foi incapaz de planejar a sua família, tendo muitos filhos, de pais diferentes e ausentes e sem nunca ter se casado. Dada a beber na companhia de homens quando saia do trabalho, a chegar tarde e alcoolizada e a deixar seus filhos expostos a condições que claramente prejudicava os seus desenvolvimentos, a jovem mãe se revela ainda um personagem contraditório ao mesmo tempo que curioso.

Keiko em cena da chegada ao apartamento. Personagem interpretado por You (Yukiko Ehara).
Nesse momento Akira olha preocupado para a mala onde um de seus irmãos está esperando escondido.

Digo que o perfil do personagem Keiko é notadamente contraditório, porque ela parece claramente amar seus filhos, mas, por outro lado, não hesita em abandona-los para garantir o seu próprio futuro. E curioso, porque muita coisa parece implícita, oculta em suas ações e escolhas.

A família Fukushima é nitidamente desestruturada e o centro dessa falta de estrutura é a mãe das quatro crianças, principal responsável pela desventura dos filhos. Mas seria só isso? A minha tese é que analisar a personagem Keiko apenas por suas características psicológicas, desconsiderando o contexto social no qual ela se encontra é se manter na superfície dos fatos, principalmente quando se conhece a realidade difícil das mães solo (mães solteiras) japonesas. Por isso, e pela complexidade da personagem, preferi tratar dela em uma Postagem Especial sobre a situação da mãe solo no Japão. Nesse texto descrevo e analiso mais profundamente a personagem e as possíveis razões que a levaram a abandonar seus filhos em busca de um casamento.

Nobody Knows: o caso real

Como mencionei anteriormente Dare mo Shiranai é baseado em um caso real acontecido na localidade de Sugamo, Toshima, entre os anos de 1987 e 1988, e que ficou conhecido como Sugamo kodomo okizari jiken (巣鴨子供置き去り事件, em tradução livre “o incidente do abandono das crianças de Sugamo”).

O caso envolveu uma mãe que abandonou seus cinco filhos menores em um apartamento daquela localidade. No caso os nomes das crianças nunca foram revelados. Aqui contarei os fatos baseando-me exclusivamente no texto escrito na versão espanhola da Wikipédia[1] a partir de uma tradução livre do mesmo.

Segundo a página, a mais velha das crianças era um menino nascido em 1973, seguido de uma menina (1981), um outro menino, morto logo depois de nascer (1984), e duas meninas menores nascidas em 1985 e 1986, respectivamente.

Assim como no roteiro criado por Kore-eda, todas as crianças eram fruto de diferentes relações com homens de identidades até hoje desconhecidas. Além disso, com exceção do filho mais velho, nenhuma das demais crianças chegaram a ser registradas, nem tão pouco frequentavam a escola.

As crianças de Dare mo Shiranai pegando água e lavando suas roupas em um parque infantil próximo ao apartamento.

No outono de 1987, após conhecer um novo amante, um possível noivo, a mãe deixa as crianças menores a cargo do mais velho e desaparece durante meses, deixando-lhe apenas ¥ 50,000 (cinquenta mil ienes, algo entorno de US$ 350) para os gastos.

Em abril de 1988, a menor das crianças é assaltada por um dos amigos de seu irmão mais velho e morre em decorrência ao ataque. Mesmo não tendo participado do crime, o menino mais velho, com a ajuda de um segundo amigo, enterra o corpo da irmã em um bosque em Chichibu[2], o que meses depois lhe condenaria por abandono de corpo.

As crianças restantes só seriam descobertas em 17 de julho do mesmo ano. Quando alertados pelo proprietário do apartamento, os oficiais de Sugamo invadiram o apartamento e encontraram as três crianças gravemente desnutridas. Elas tinham na época,  respectivamente, 14, 7 e 3 anos de idade. No apartamento os oficiais também encontraram o corpo da terceira criança, falecida ao nascer.

Por conta da intensa cobertura jornalística do caso, a mãe se entregou pouco tempo depois, no dia 23 de julho. Seu testemunho revelou que as crianças ficaram entorno de 9 meses sozinhas, mas até então ninguém sabia o paradeiro da menor das crianças. Só no dia 25 o filho mais velho revelaria às autoridades o que havia ocorrido com sua irmã menor, e por conta do crime seus dois amigos envolvidos no caso foram enviados para um reformatório. O crime de ocultação de cadáver cometido pela criança mais velha não teve cumprimento de pena devido as circunstâncias do caso, e assim como suas irmãs, o menino foi mandado para uma escola para crianças com deficiências físicas e mentais.

Em agosto de 1988, a mãe foi acusada de abandono infantil e condenada a três anos de prisão, pena que só foi cumprida quatro anos depois. Mesmo com a repercussão do caso, a mãe após cumprir pena reouve a guarda das meninas, exceto do filho mais velho que já havia alcançado a maioridade.

Em Dare mo Shiranai Kore-eda dá identidade (fictícias) às crianças, reduzi-lhe o número e muda o gênero de uma das meninas, dando assim origem ao pequeno Shigeru. Ele também modifica em parte o destino da criança mais nova e dá ao enredo que mantém muitos dos elementos do caso real em um tom mais leve e delicado, e logo bem menos brutal. Além disso, o filme tem desfecho em aberto e logo não se inspira completamente no caso de Sugamo.

Estética: sem melodramas ou lágrimas

Quem me conhece um pouquinho sabe que quando se trata de cinema o gênero dramático está entre os meus preferidos, sendo superado só pelos grandes filmes históricos.

Grandes e pequenas tragédias, roteiros baseados em fatos reais, e histórias cotidianas ou compatíveis com as problemáticas e relações humanas que se dão na vida real sempre me chamaram a atenção mais do que os épicos, as aventuras, as histórias de heróis, de ação ou de suspense.

Já na adolescência obras cinematográficas como Central do Brasil, A Vida é Bela e Billy Elliot prendiam minha atenção tanto quanto filmes como A.I. – Inteligência Artificial, Gladiador, Titanic e Os Outros. Hoje, depois de adulto, essa inclinação por histórias menos ficcionais e mais sérias só se tornou mais forte e fez com que eu me atraísse por histórias de filmes como As Horas, La Lengua de las Mariposas, Volver e O Labirinto do Fauno. Na literatura o ficcional, o misterioso e o fantástico são sem dúvidas as minhas preferências, mas, na tela do cinema, ainda prefiro a vida como ela é.

Contudo, esse meu gosto pelo drama não nasceu de uma inclinação por histórias cheias de sentimentalismos e que arranque lágrimas do telespectador, mas de uma atração por histórias tão incríveis quanto reais, de uma necessidade insaciável de verossimilhança e essa semana encontrei isso, em essência, em Dare mo Shiranai. Um filme que se encaixa perfeitamente nesse meu gosto pelo real, pelo comovente inspirado na vida cotidiana e nas relações humanas, mas sem deixar de ser inteligente, incrível e magnético.

Dare mo Shiranai é um filme triste sem ser melodramático e traz a marca profunda do caráter contemplativo próprio da arte e da filosofia japonesa. É um filme que arranca lágrimas de seu expectador não pelo reflexo de ver alguém chorando ou plenamente desesperado, mas pela consternação de ver diante de si um ato desumano e, depois, a luta das crianças para continuarem vivas apesar de tudo.  Não há cenas apelativas, nem sentimentalismos extremados, e o misto de atuações contidas com a documentação sistemática da rotina das quatro crianças vai ditando o tom do filme.

As cenas demoradas, os closes da câmera em pequenos detalhes, os silêncios prolongados e os olhares perdidos caracterizam um filme que trata o trágico pelo seu víeis mais cru e belo: quando faltam as lágrimas.  Por isso, é um filme que consegue fazer o dramático também ser belo e cheio de sutilezas ao mesmo tempo que expõe o silêncio cruel da sociedade, que fecha os olhos para o drama vivido por aquelas crianças.

A denúncia está em todos os lugares e é evidente sobretudo nas condições degradantes no qual as crianças vão sendo sujeitadas desde a viagem dentro da mala até o desfecho quando o apartamento já está reduzido a penúria, carente do mais básico.

Mas a melancolia transcende no filme quando se une a trilha sonora instrumental organizada por Gontiti ou pela deprimida Houseki, de Takako Tate (que também atua no filme como a caixa do minimercado local). Muito parecida com uma cantiga infantil ou de ninar, a canção mais marcante do filme é Yakusoku, composta por Gontiti. Ela chama a atenção por sua atmosfera carregada de nostalgia e tristeza, que me fez lembrar de fins de tardes quentes de um passado longínquo e inalcançável.

Além disso, o filme é também cheio de cenas do cotidiano e pequenos detalhes que compõem o cenário do drama e a indiferença da imensa cidade japonesa. Em muitas cenas a câmera filma Akira em meio a dezenas de transeuntes que se desviam e ignoram sua existência, e em outras, as ruas e parques desertos se harmonizam com a solidão desolada vivida por ele e seus irmãos.

Akira em meio aos transeuntes que seguem seus caminhos indiferentes.

A trama se desenvolve lentamente, num fio contínuo, estável e linear que pouco a pouco vai mostrando o lento e progressivo resvalar das condições de vida das crianças. Nisso o cenário e o figurino se revelam elementos fundamentais, verdadeiros marcos ou indicadores de que as coisas só pioram. As roupas limpas e até confortáveis vão dando lugar aos andrajos sujos que denunciam a condição de mendicância. Por sua vez, o cenário do apartamento sem luz, água ou limpeza vai se torando a representação espacial dessa degradação. No lento desenvolver da narrativa Kore-eda consegue fazer com que essa passagem se torne natural e gradativa, e a câmera é fundamental nisso. Cada close pelo ambiente, nas roupas, nas contas atrasadas, e também cada cena mais demorada vai revelando ao espectador os elementos necessários para que ele constate por si só essas transições.

Dare mo Shiranai é um filme delicado e tocante, não apenas por ser o drama de um grupo de crianças, o que costuma apelar para o sentimentalismo do espectador, sobretudo daqueles mais sensíveis ao sofrimento infantil. Ele é delicado e tocante por ser realmente belo, cheio de pequenos detalhes, silêncios e cenas que demonstram o lento escoar da vida de quatro pequenas almas entregues ao abandono, mas que não desistiram de lutar pela sobrevivência e para se manterem unidos como uma família.

A película é uma produção dos estúdios Cinequanon e Bandai Visual e entrou em cartaz no ano de 2004. Tem duração de 141 minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:


Trailer






[1] https://es.wikipedia.org/wiki/Caso_de_abandono_de_los_ni%C3%B1os_de_Sugamo
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Sugamo_child_abandonment_case


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