terça-feira, 14 de novembro de 2017

Vidas Secas – Graciliano Ramos - Resenha

Por Eric Silva

Nota: todos os termos com números entre colchetes [1] possuem uma nota de rodapé sempre no final da postagem, logo após as mídias, prévias, banners ou postagens relacionadas.

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Falar de uma obra de quase 80 anos e que já foi exaustivamente estudada, analisada e comentada é um desafio assustador, principalmente para mim que sou muito rigoroso em relação ao conteúdo do que falo e escrevo quando se tratam dos clássicos da literatura nacional e universal. Terreno perigoso para divagar e emitir opinião.

Ainda assim, falar de Vidas Secas é para mim imperativo, porque esta obra tão singular trata de temas com os quais volta e meia estou envolvido. Então, não falar da obra-prima de Graciliano não era uma opção e, por isso, quando ficou decidido que, em 2017, homenagearíamos a literatura brasileira, pensei de imediato que este livro não podia ficar de fora do itinerário da campanha do #AnoDoBrasil. Este é meu retorno a uma obra que li pela primeira vez aos 19 anos na ocasião do vestibular da Uneb. Hoje, mais maduro e com outros objetivos, meu olhar é outro e pude perceber a profundidade de uma história que tem um valor social e histórico muito grande e que deveria ser lido por todos os brasileiros. Um retrato de um Nordeste que mesmo hoje ainda se encontra profundamente marcado por sérios problemas sociais.

Confira a resenha do décimo livro da campanha anual de literatura e que nesse ano homenageia a literatura do Brasil.

Sinopse

Importante livro da literatura modernista brasileira, Vidas Secas, livro de Graciliano Ramos narra a história de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cadela Baleia, uma família de retirantes famintos, que vagando pelo sertão seco encontram abrigo em uma fazenda abandonada e ali se instalam. Com o retorno das chuvas, o proprietário regressa à fazenda e acaba por empregar Fabiano como vaqueiro da propriedade, onde a família permanece o retorno do período de estiagem. Carregado de crítica social e expondo as feridas profundas de um Nordeste maltratado pela seca e pela desigualdade social e latifundiária, Vidas Secas é um dos mais impressionantes e emblemáticos romances da chamada geração de 30.

Resenha

Publicado pela primeira vez em 1938 pela editora José Olympio, Vidas Secas é a obra-prima do escritor alagoano Graciliano Ramos, um dos principais representantes da segunda fase modernista da nossa literatura. De caráter regionalista, o livro de Graciliano, bem como as de seus contemporâneos do regionalismo de 30, se difere enormemente do regionalismo da escola romântica do século XIX, pelo seu caráter realista e denunciativo, preocupado com as questões sociais e políticas da época no Brasil. Como afirmam Terra e Nicola (2005, p. 503):

As transformações vividas pelo país com a Revolução de 1930 e o consequente questionamento das tradicionais oligarquias, os efeitos da crise econômica mundial e os choques ideológicos que levaram a posições mais definidas e engajadas formavam um campo propício ao desenvolvimento de um romance caracterizado pela denúncia social – verdadeiro documento da realidade brasileira –, em que as relações “eu”/mundo atingiam um elevado grau de tensão.

Vítimas das secas de 1877/1878, no Ceará.
Imagem: Wikimedia Commons
Com Vidas Secas não seria diferente. Principal marco da prosa da geração de 30 o tema explorado pelo romance não se limita a denunciar um Nordeste que sofria com a seca, mas que era – e ainda o é – igualmente marcado pela exploração do trabalho imposta pelos grandes latifundiários, verdadeiros detentores da posse da terra.

Um romance de pequena extensão, mas que expõe como nenhum outro o analfabetismo, a pobreza e a estrutura social e fundiária excludente pouco visíveis ao restante do país que enxerga o Nordeste apenas como a Região das Secas. Indo além da seca que dá nome ao romance esta é uma obra que fala da Vida, vidas que secam e se perdem na poeira da estrada. É, pois, uma denúncia das condições degradantes de miséria a que são submetidos os trabalhadores do campo, forçados a migrarem em busca de trabalho e melhores condições de sobrevivência.

Enredo e personagens

O enredo de Vidas Secas é do mais simples, apesar de trazer em seu bojo uma reflexão profunda da vida do trabalhador sertanejo que com sua família se retiram fugidos dos efeitos da seca.

O romance é composto em grande parte por pequenos momentos cotidianos dos personagens distribuídos em pequenos capítulos marcados pela falta de linearidade[1] – o que permite a leitura de cada um possa ser feita quase que de forma independente.

Logo no primeiro deles somos apresentados a situação lastimável da família de Fabiano que famintos e exaustos da viagem interminável caminhavam sob o sol abrasador. Neste momento, Graciliano, com sua narrativa seca e objetiva, busca ressaltar o farrapo humano no qual os cinco “viventes” se encontravam reduzidos. Tudo ali, seja na descrição dos “infelizes”, no seu caminhar arrastado em busca de alguma sombra, ou na atitude violenta de Fabiano com o filho que já não aguentava prosseguir com a caminhada, intencionalmente, o autor busca frisar o cansaço, a desgraça e o embrutecimento ao qual aquelas pessoas estavam submetidas ao longo de uma viagem fatigante e cruel pela caatinga ressequida.

Mas é após a chegada da família na fazenda abandonada, onde se instalam, que a narrativa prossegue apresentando as perspectivas, anseios e conflitos internos de cada um dos seus personagens, revelando seus dramas e conflitos pessoais à jusante da realidade de miséria, ignorância e exploração vivida pelos mesmos. Desta forma, a cada novo capitulo vamos nos aprofundando na visão que estes tinham de si, dos outros e do mundo. É, pois, nessa descrição dos pensamentos, anseios e reflexões que se encontra o valor intrínseco da obra. Narrador e personagem se fundem em uma só voz, o que chamamos de discurso indireto livre, dando vazão às frustrações, sonhos e medos que acometem aquelas pessoas simplórias e submissas aos desmandos da natureza e dos homens.

Capítulo por capítulo somos apresentados aos personagens. Primeiro a Fabiano, o chefe da família, um homem oprimido pela sua pouca capacidade de expressão e pobreza de conhecimentos, que ciente de sua exploração não sabe como se defender e se submete. Embora em meio a caatinga Fabiano se sinta pleno e valente, é no trato com as pessoas de fora que ele se reconhece diminuído, questiona sua humanidade e se sente inferior ao patrão e às pessoas de conhecimento e fala segura como sinhá Terta e seu Tomás da bolandeira. É neste momentos que se sente quase igual aos animais com quem lidava, quase um bicho.

Sinhá Vitória, quase sempre ocupada com os afazeres da casa tinha como único sonho uma cama de lastro de couro que substituísse a cama de varas que lhe incomodava as costas. Na visão de Fabiano, Sinhá Vitória é uma mulher forte e inteligente, “tinha miolo”. Como ele era analfabeta, e as vezes o marido caçoava da forma desengonçada com que ela andava com os sapatos de verniz, mas com suas sementes sabia contar e “nas situações difíceis encontrava saída”.

Por sua vez, nenhum dos dois meninos recebeu de Graciliano um nome. São diferenciados na história apenas como o “menino mais novo” e o “menino mais velho”. Contudo, a despeito de terem nome ou não, ambos possuem, na narrativa, personalidades bem distintas e marcantes.

O mais novo admirava o pai em seu trabalho como vaqueiro da fazenda, tentava imitá-lo, e por ser seu herói pessoal via-o maior do que de fato era. Por sua vez, o menino mais velho possuía uma capacidade imaginativa maior e se via atraído pelo universo das palavras, pelo desconhecido que existia em seus significados e nos montes além das terras da fazenda, onde imaginava residir forças maléficas e também protetoras, bem como criaturas inumanas, incríveis e mágicas que procediam como pessoas e conviviam com a eterna luta do bem contra o mal. Dessa forma o menino mais velho se demonstra o mais poético dos personagens:

Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o pátio, o bebedouro — mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, caçando preás, veredas quase imperceptíveis na catinga, moitas e capões de mato, impenetráveis bancos de macambira — e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos viviam em paz, às vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas. E quando Fabiano amansava brabo, evidentemente uma entidade protetora segurava-o na sela, indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos.

É notável como Graciliano através dos dois meninos demostra o lado afetuoso, criativo e romântico das crianças, que enxergam, onde os adultos já não são capazes, a magia e a beleza, o fascínio e a inocência. Mas com certeza o personagem mais querido dos leitores do livro é a cadelinha Baleia, também a mais humana dos membros da família.

Sempre sensível aos anseios do filho mais velho, atenta às ações de todos, submissa e sempre disposta a relevar os maus-tratos dos adultos. Baleia é quase um membro da família [SPOILER em itálico] e seu final trágico é uma das cenas mais comoventes da história abalando sobretudo Fabiano, seu algoz.

Outro personagem que é importante destacar é o soldado amarelo, um tipo “fraco e ruim” que após perder um jogo provocara Fabiano até que este se exaltasse e tivesse um pretexto para espancá-lo e jogá-lo na cadeia, o que conseguiu fazer. Assim como o patrão que roubava nas contas e inventava juros e dívidas, o soldado amarelo cumpre na narrativa o papel de antagonista, a personificação da corrupção e da injustiça e que provoca em Fabiano o desejo de vingança. É também graças ao soldado amarelo que conhecemos a submissão de Fabiano frente ao Estado (governo), sua visão romântica do Estado como algo distante, perfeito, supra-humano e de autoridade indiscutível.

Murchar e florescer... palavras podem ser perigosas

Paisagem da Caatinga no período da seca,
 com o xique-xique em primeiro plano.
Imagem: Wikimedia Commons.
Como eu disse Vidas Secas é um livro de enredo simples, ainda que seja bastante profundo. Mas no bojo desta narrativa muitas outras coisas me chamam a atenção. A primeira delas é que ali a seca cumpre o papel do mais assustador dos algozes, a inimiga de vinda certa, sempre à espreita, aterrorizando sonhos, evocando a lembrança dos momentos ruins vividos, das perdas e fazendo lembrar de que a estada ali na fazenda é passageira, que não há raiz para Retirantes desprovidos de tudo, da terra, do saber, de dinheiro. É a certeza da chegada dela, da inevitável volta a estrada e, logo, da certeza da efemeridade de sua estadia ali, que mingua o sonho de se fixar, de criar raiz naquela terra que não lhe pertence, que nunca pertencerá.

Em contra partida, a esperança floresce no inverno. A chuva reintegra os sonhos, alimenta a esperança de mudança, como se tal fato fosse de todo a única coisa necessária para que a vida fosse outra, fosse melhor. Aproxima personagens que apesar de juntos se isolam e são isolados.

É válido ainda destacar o quanto a expressão (articulação) verbal entre os membros da família é pobre, estéril quase limitado a monossílabos e gestos confusos, como se não possuíssem o dom da fala. Os pais só falam com os filhos para repreendê-los e os diálogos, escassos, são bem mais gestuais. Palavras são escassas, e podem ser perigosas.

“Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.”

Sim, elas podem ser perigosas, e foram para Fabiano quando, por ter xingado a mãe do soldado provocador, foi parar na cadeia. Também para Graciliano que, pela sua posição crítica a sociedade de sua época, mas sobretudo pela sua posição política favorável ao comunismo, foi perseguido e até mesmo preso.

Mas a falta de diálogo entre os membros da família vai além da pouca verbalização, está também na incapacidade de expressão dos sentimentos, de responder as indagações das crianças, de atender suas necessidades, por isso os meninos são tratados com rudez.

“Uma das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repetição da pergunta. Não percebendo o que o filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que não era da conta dele, como iria acabar? Repeliu-o, vexado:

– Esses capetas têm ideias...”

Por fim, foi gritante para mim, principalmente no primeiro capítulo, que a secura de que fala o título não está só na vida ou no período da estiagem, como também nas pessoas embrutecidas pelo sofrimento. Nos tornamos secos quando submetidos a hostilidade de um mundo opressor e indiferente ao sofrimento alheio
.

Graciliano Ramos de Oliveira. Data desconhecida.
O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.

— Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.

A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.

— Anda, excomungado.

O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário — e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.

Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.

Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinha Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.

Enfim, Vidas Secas é uma obra excepcional. Gosto dela pela sua crítica social pertinente pelo seu gosto pela linguagem regional, pela cadelinha Baleia, pelo menino mais velho. Vivo no sertão, e me interesso profundamente pelo Semiárido Brasileiro, pela sua estrutura político-social e por sua história marcada pela injustiça. Pela luta de milhares de Fabianos que construíram a fortuna dos latifundiários, dos coronéis. Pessoas simples, mas dignas. Que conhecem a fome, a penúria e sabem valorizar o pouco, o mínimo. Que sonham com um sertão diferente, de fartura e liberdade.

A edição lida é da Editora Record, do ano de 2005 e possui 175 páginas. Abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Google Books.

Prévia do Google Books









[1] http://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/vidas-secas-analise-da-obra-de-graciliano-ramos/

Um comentário:

  1. Muito obrigado, Broba. fico felicíssimo que você tenha se reconhecido na minha experiência e que tenha gostado da resenha. Mais feliz ainda que você esteja redescobrindo a obra de Graciliano que é uma das que mais queridas pra mim. E você está certíssima, o problema não é a seca é a forma como o Estado e a sociedade lida com ela, mantendo uma estrutura social injusta e desigual e colocando na seca (que é um fenômeno natural, mas que é transformado em fenômeno socioeconômico) a razão de um problema que é social e estrutural.

    Muito obrigado pelo comentário.

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