quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Naufrágios – Akira Yoshimura – Resenha


Por Eric Silva

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Em um estilo minimalista, Naufrágios, livro do escritor japonês Akira Yoshimura, é um testemunho de como a vida pode ser regida por dissabores que se repetem em ciclos como as estações do ano.

Ambientado no Japão medieval onde uma pequena comunidade pesqueira luta pela sobrevivência, esse livro fala de como abandonamos valores morais de valor a vida do outro, para garantir a sobrevivência de um grupo maior. Desejar o naufrágio de um navio e trucidar uma tripulação naufragada para saquear sua carga e, desse modo, aplacar a fome se torna valores e objeto de culto neste livro de pequena extensão, mas de significados amplos e profundos.

Naufrágios é o sétimo livro da III Campanha Anual de Literatura que neste ano homenageia a literatura japonesa.

Sinopse

Em algum período remoto da era medieval japonesa, uma pequena comunidade de pescadores luta para sobreviver da pesca de moluscos, peixes e conchas. Na pequena aldeia vive também chamado Isaku, um menino é um de nove anos que tenta garantir o sustento de sua família e como os demais aldeões, além de pescar, ajuda na destilação de sal para ser comercializado para os povoados vizinhos. É por meio da narração dos anseios e dificuldades enfrentadas pelo garoto que conhecemos a vida difícil e da comunidade que luta contra a fome e descobrimos que a manufatura do sal tem uma outra utilidade oculta: provocar naufrágios de embarcações carregadas de arroz que passam pela costa.

Resenha

Morte e vida: um enredo trágico

Publicado em 1982 sob o título de Hasen (破船), Naufrágios é um romance de época que retrata um pouco da realidade das comunidades pesqueiras pobres do Japão medieval. Um livro extremamente pequeno (192 páginas), mas que descreve com esmero o desespero e os dilemas de seus personagens para continuarem sobrevivendo.

Daimyo da era feudal japonesa.
Imagem: KCP International.
Em alguma ilha do Japão dos daimyos[1] (大名), uma pequena aldeia de pescadores buscava sobreviver a escassez de alimentos do lugar. Localizada numa costa desértica, cujo solo rochoso propiciava apenas colheitas escassas, a comunidade tinha na pesca de peixes, polvos e lulas o seu principal sustento.

A pequena produção de pescado era salgada e periodicamente levada a vila vizinha para ser trocada por grãos. Contudo, por mais que fossem grandes os esforços da comunidade, continuamente a fome era um desafio para a sobrevivência de todos e, por isso, algumas medidas mais extremas eram adotadas como não dar comida aos que estivessem severamente doentes e que certamente não sobreviveriam.

“Em uma aldeia que lutava contra a fome, um inválido era considerado morto.”

A escassez de tudo era tão extrema naquele lugar desolado, que era prática comum que algum membro de cada família acabasse por se vender como servo por três, cinco ou dez anos para garantir, por um tempo, o sustento dos demais. No entanto, o dinheiro obtido com esse tipo de negociação costumava ser muito pequeno e a quantidade de grãos comprada com ele quase insignificante.

Mas a resposta para momentos de maior abastança, contudo também vinha do mar: o o-fune-sama (お船さま). A pequena ilha, que não recebe um nome, tinha uma costa que no inverno se tornava perigosa para os navios cargueiros que passavam ao largo. As ondas furiosas quando somadas aos perigosos recifes de corais representavam um risco eminente para qualquer tripulação à deriva ou que fugindo de uma tempestade pensasse de aportar naquela costa. O naufrágio era certo.

Para aumentar as chances de que um navio mercante carregado de cereais naufragasse na costa e permitisse o saque da carga, os aldeões destilavam sal para os povoados vizinhos, em grandes caldeirões sobre fogueiras que ardiam durante as noites furiosas de tempestade ao longo de todo o inverno. O objetivo era que as chamas que brilhavam na escuridão confundissem os marinheiros em meio a tempestade e esses dirigissem o barco para a orla lançando-os sobre os recifes da ilha. Quando o esperado naufrágio ocorria, o navio era saqueado e os espólios distribuídos de forma justa entre todos os aldeões.

Essa incessante luta pela vida é contada através da história de Isaku, um garoto de apenas nove anos, mas que assume a responsabilidade de sustentar sua mãe e três irmãos pequenos enquanto o pai vai para servidão.

Yoshimura descreve o lento desenvolvimento do menino que urgentemente necessita se tornar um pescador experiente para garantir o alimento da família e não deixar que ninguém morra de fome, inclusive ele mesmo.  Transversalmente à passagem das estações, o narrador observa e descreve o dia a dia de Isaku ao longo de pouco mais de dois anos, atentando para seus pensamentos, desejos e apreensões que não eram muito diferentes de nenhum adulto ao seu redor e que revelavam a necessidade vital de amadurecer rápido.

Infância perdida: o protagonista Isaku

O-fune-sama.
Naufrágios é um livro de personagens maduros que criaram uma espécie de armadura para enfrentar a adversidade. Yoshimura não gasta muito tempo em caracterizar seus personagens, mas não há um só deles que se caracterize pelo bom humor ou por qualquer outra característica que não seja a taciturnidade de quem tem grandes deveres e todo um futuro incerto pela frente.

O personagem principal, Isaku, tem apenas dez anos mas a maturidade de suas ações e pensamentos, bem como o peso das responsabilidades impostas a ele, o fazem bem mais velho e maduro. Isso, em grande parte, se deve a pesada responsabilidade de sustentar a família na ausência do pai, mas também a rígida educação dada pela mãe que em pouquíssimos e raros momentos demonstra algum carinho pelo menino, preferindo o víeis da severidade e da cobrança.

Não há como sentir a criança que Isaku é, e a imagem que se tem é a de um rapaz perto de se tornar adulto. Ele manifesta desejos quase sexuais, seu senso de responsabilidade é bastante dilatado, há seriedade em quase todas as suas ações e o desejo de ser reconhecido como um adulto. Somado a todas essas coisas ele assume responsabilidades adultas, é bastante cobrado e seu principal medo é não poder cumpri-las. Ele é apaixonado por uma das garotas da aldeia, mas mesmo sua paixão difere bastante de algo inocente ou infantilizado, possuindo com traços de alguém mais velho e preocupado, inclusive, com o futuro.

Contudo a experiência como pescador e a força física para atividades essenciais para a sobrevivência são coisas que faltam a Isaku e isso, além de desesperá-lo, o faz a todo momento comparar-se aos meninos maiores e mais experientes. Saber pescar e fazer bias pescarias era o fator decisivo entre sobreviver ou morrer. Por isso, Isaku está sempre buscando extrair dos mais velhos o máximo de conhecimento e experiências, como forma de crescimento e evolução e, assim, garantir o alimento necessário à sua família.

Pela sua própria inexperiência o menino tarda a entender o significado das tradições da aldeia e do o-fune-sama. Também por inexperiência e por ter uma visão estreitada pelos horizontes restritos e limitados exclusiva e unicamente a sua própria realidade – e da aldeia –, ele não consegue compreender a brutalidade e o contrassenso daquele ritual que dependia da morte de uns para garantir a vida de outros. E como os demais moradores acaba ansiando pelo momento do naufrágio que garantiria alimentos suficientes a todos.

O foco do livro é muito centrado em Isaku, mas nota-se que os habitantes da aldeia não diferem muito dos traços psicológicos e de personalidade do menino. A única parte da narrativa onde os habitantes da miserável aldeia esboçam alegria e um maior relaxamento é quando o o-fune-sama finalmente acontece.  Inicialmente eles são tomados por uma alegria imensa, em seguida, por conta da fartura, ficam indolentes, e, por fim, são tomados pelo terror.

Outros personagens de maior destaque na trama são a mãe de Isaku e o chefe da aldeia.

A mãe de Isaku é retratada todo o tempo como uma pessoa de pouca sensibilidade, severa, de poucas palavras, sempre voltada ao trabalho e para o sustento da família, além de nem um pouco carinhosa. Na maior parte da narrativa ela exige do filho mais velho que ele trabalhe como os demais homens da ilha e assim cumpra com a responsabilidade deixada para ele pelo pai que tinha ido para a servidão.

Por sua vez, o chefe da aldeia é representado como um sábio por quem todos nutrem um profundo respeito e obediência. As vezes a trama o representa como quase um deus digno de reverências, em outros como uma pessoa temerosa e frágil frente a situações que podiam ameaçar seu povo. Trata-se de uma figura icônica que me faz recordar de figuras reais do passado de nosso país, a exemplo de Antônio Conselheiro.

Outros personagens compõem a trama, porém nenhum com muita relevância, e muitos possuem passagem muito breve pelo enredo.

Quando dois livros parecem se inspirar

Em alguns aspectos, esse é um livro cuja as condições peculiares dos habitantes da vila descrita se assemelham bastante a história contada em O Conto da Deusa, livro de Natsuo Kirino resenhado logo no começo deste ano.

Assim como na aldeia de Namima, protagonista de Kirino, a comunidade de pescadores onde Isaku nasceu vive o pesadelo da fome e tem no mar sua principal fonte de sustento.  Da mesma forma ali muitas tradições estranhas e cruéis se desenvolveram a partir do medo da fome e a incerteza de se conseguir o sustento. No livro de Natsuo, o fanatismo religioso leva ao exílio e a destruição da vida de alguns aldeões, no livro de Yoshimura a fabricação do sal se torna uma arma para provocar a tragédia dos naufrágios e permitir o saque da carga. Além disso, na história de Naufrágios os doentes terminais e inválidos costumeiramente eram deixados para morrer sem alimento ou voluntariamente deveriam parar de comer para poupar alimento para os seus familiares, aquele que não o fazia era visto como egoísta como denota claramente o trecho abaixo:

— Só isso? Vocês devem estar realmente economizando. Estamos no nosso quarto fardo, que está pela metade. É culpa do vovô. Ele pode morrer a qualquer momento, mas fica nos pedindo para lhe dar comida. As pernas estão inchadas e ele está se acabando, mas continua sendo egoísta — disse Sahei, franzindo o cenho.

De forma similar, em O Conto da Deusa a família de Namima devia comer menos ou até mesmo privar-se do alimento, se assim fosse necessário, para garantir o sustento da sacerdotisa, que no credo local era elemento fundamental para que a comunidade tivesse pescas proveitosas e para afastar a possibilidade da fome.
Comparando-as notei como estas duas histórias são muito semelhantes no que tangem às dificuldades das aldeias japonesas de pescadores durante a era pré-moderna (medieval) e por isso denotam a quão complicada era a sobrevivência nas ilhas mais isoladas do arquipélago japonês. Trata-se de uma realidade que nos tempos atuais mudou bastante, porém o Japão ainda é um país que necessita de importações de alimentos e que tem na pesca sua principal e fundamental fonte de alimentos. Do mar vinha tudo: o sustento escasso, os mortos que reencarnavam nas crianças que nasciam e o o-fune-sama. Esse livro deixa muito bem evidente, assim como Kirino o deixa em seu O Conto da Deusa, a relação íntima e fundamental dos japoneses com o mar e que vai do mítico ao prático (a subsistência).
Em ambos os livros os personagens se encontram firmemente presos a tradição e a terra de seus antepassados impedindo-os de migrar para lugares onde a sobrevivência fosse facilitada. Crenças religiosas se misturam a tradição e ao apego ao lugar de origem para criar um ciclo vicioso, suicida e perverso.

Características gerais e apreciação crítica

Naufrágios é um livro no qual o diálogo é um dos elementos narrativos menos explorado. A escrita de Yoshimura se concentra na narração e descrição contínua do cotidiano e das emoções dos personagens. A narração em terceira pessoa é metódica, sequenciada e linear, e o narrador, sem compadecer-se com seus personagens, segue o curso dos acontecimentos documentando cada uma das ações do cotidiano.

A forma como o autor escreve é limpa e até objetiva, mas o enredo em si é monótono e cíclico, marcado por um tempo cronológico demarcado pela transição das estações do ano e nos quais várias ações rotineiras e sazonais dos personagens são retomadas.

Para enfatizar que a vida naquela aldeia era sempre repetitiva e que as várias atividades empreendidas pelas pessoas eram sempre definidas pela passagem e chegada das estações, o autor não poupa seu leitor falando mais de uma vez sobre temas como a pesca do polvo, a extração do sal e a expectativa da chegada d’o-fune-sama. A novidade de cada ano é a evolução lenta, mas inexorável de Isaku e alguns acontecimentos que são decisivos para o desenlace da narrativa. Isso torna a narrativa um pouco entediante, repetitiva e arrastada em vários momentos, esse é o ponto fraco fundamental do livro, mas é inegável a qualidade da escrita de Yoshimura.

O tom geral da narrativa é bastante melancólico. O temor da fome que trazia consigo a morte é o sentimento que com mais intensidade se encontra presente em toda a peça.

A luta interminável pela sobrevivência, o medo da fome, a tristeza por aqueles que morriam de fome ou iam para a servidão e nunca voltavam, ou que dela retornavam envelhecidos e inválidos dão muito pouco espaço para momentos felizes na história de Naufrágios. O próprio título escolhido por Yoshimura já evidencia muito desse tom que domina a história, mas, ao mesmo tempo, é um jogo de ideias bastante metafórico.

O naufrágio de um navio nunca representa algo bom, mas o desespero e a certeza da morte. Trata-se de uma tragédia anunciada. No entanto, contraditoriamente, a chegada do o-fune-sama representava para aquelas pessoas a esperança de períodos de abastança e sobrevivência mais fácil, a certeza de que ninguém morreria de fome ou necessitaria vender-se como servo.

A morte dos náufragos (mesmo dos sobreviventes, sumariamente eliminados pelos pescadores para que não houvesse testemunhas do saque da carga) representava uma oportunidade de vida para a aldeia inteira. Assim podemos entender que antes mesmo dos barcos mercantes naufragarem na costa da ilha, a própria aldeia já era a metáfora de um navio prestes a “naufragar”. Seria o naufrágio real a possibilidade mais concreta de se adiar o “naufrágio” daquela população desvalida. Esse é um sutil jogo de ideias presente nessa narrativa na qual morte significa também sobrevivência. Ali as relações mais primitivas da lógica da natureza se destacam: é necessária a morte para que haja vida.

[ALERTA DE SPOILER]. Por fim, o desfecho é inesperado, mas não surpreende. Yoshimura deixa o fim da narrativa um tanto em aberto e o gosto de derrota dos personagens é evidente, quase palpável. Os últimos acontecimentos narrados não surpreendem o leitor porque tudo na aldeia parece sempre convergir para um mesmo resultado: o trágico. Contudo, muitos dos acontecimentos são inesperados porque a forma como a história encontra seu fim não podia ser interpretada nas entrelinhas, ou seja, um desfecho original e criativo.

A edição lida é da Editora Best Seller, do ano de 2003 e possui 192 páginas.

Sobre o autor

Escritor japonês premiado, Akira Yoshimura ( ) nasceu em Tóquio, no dia 1 de maio de 1927.

Foi presidente do sindicato dos escritores japoneses e um membro do PEN, clube internacional de escritores fundado em 5 de outubro de 1921 pela escritora inglesa Catherine Amy Dawson Scott.
Publicou mais de 20 romances, dos quais On Parole e Naufrágios são internacionalmente conhecidos e foram traduzidos para várias línguas. Seu livro A Enguia (Unagi) foi adaptado com sucesso para o cinema.

Naufrágios é seu primeiro romance lançado no Brasil.

Faleceu em 31 de julho de 2006.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.






[1] “Termo genérico que se refere a um poderoso senhor de terras no Japão pré-moderno, que governava a maior parte do país a partir de suas imensas propriedades de terra hereditárias” (Wikipédia).

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

[Coleção Vaga-lume] Zezinho, o Dono da Porquinha Preta – Jair Vitória – Resenha


Por Eric Silva para a Tag Coleção Vagalume

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A coleção vaga-lume é um conjunto de livro infantojuvenil que inegavelmente marcos a história de vida de muitos leitores brasileiros. São poucos os adultos leitores que nunca tenham lido pelo menos um dos livros dessa vasta coleção que reúne alguns dos maiores nomes da literatura infantojuvenil brasileira das décadas de 80 e 90.

Eu pessoalmente tenho muitas destas leituras na minha bagagem de adolescência: A Vida Secreta de Jonas e O Brinquedo Misterioso, ambos de Luiz Galdino, os livros de Marcos Rey como O Mistério do Cinco Estrelas, Na Rota do Perigo e Sozinha no Mundo, além de A Serra dos Dois Meninos de Aristides Fraga Lima.  Sozinha no Mundo e o livro de Aristides são os meus prediletos na coleção.

Meu amor por essa coleção é tão grande que lanço hoje uma nova tag exclusiva para ela. Entre os muitos que li e dos que possuo em casa começo resenhando um que só apareceu aqui no blog através do resumo de um antigo aluno meu, mas que, ainda assim, rendeu até o hoje mais de 1600 acessos: Zezinho, o Dono da Porquinha Preta.

Sinopse

Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma novela infantojuvenil do escritor mineiro Jair Vitória. Nesse livro Jair narra as aventuras de um menino do campo, Zezinho, na sua luta para impedir que seu pai, um homem rústico e turrão, venda sua porquinha de estimação para um dos lavradores vizinhos.

Resenha
Enredo

Zezinho é um menino do interior acostumado a uma educação rígida e sem muito sentimentalismo. Seu pai, Odilo, é um homem rústico endurecido pela difícil vida do campo e pouco acostumado a demonstrações de afeto e carinho. Sempre muito severo e rígido, os filhos o temem e basta uma palavra sua para que os meninos o atendam de pronto por temor de algum castigo ou represália. Mesmo a esposa tem pouca influência sobre Odilo que normalmente faz o oposto aos seus conselhos apenas para contrariá-la e demonstrar poder.

Na narrativa contada por Jair Vitória, Odilo resolveu vender, Maninha, a porquinha preta de estimação do filho criada sempre próximo a casa desde que era uma leitoa. Maninha é muito dócil e está preste a ter sua primeira ninhada de porquinhos. Zezinho tem muito afeto pelo animal e cuidou da porca desde que ela era pequena, acostumando-a a ficar próxima dos humanos, atender seus chamados e aceitar afagos seus.

Quando, Valtério, o filho do lavrador vizinho, conta a Zezinho que seu pai comprará Maninha de Odilo o menino se revolta com o amigo, acusando-o de invejoso e ladrão. Mas a principal revolta do menino é saber que seu pai jamais voltaria atrás com a sua decisão e venderia a porquinha desconsiderando os sentimentos do filho pelo animal.

Tentando impedir a venda da porquinha escondendo-a nas grotas[1] da região e convencendo os lavradores a não comprarem Maninha, Zezinho se envolve em diversas confusões que atiçam a ira do pai.

Personagens realistas: as vivências do autor

Jair Vitória é um escritor que cresceu e se criou na zona rural mineira. Suas narrativas dialogam com suas vivências na roça e, por isso, costumeiramente estão ligadas a questões da vida e do campo como Botina Velha, o Escritor da Classe que fala das crianças que abandonam a escola para ajudar no trabalho da lavoura e A Terra que Machucou que aborda a questão da luta pela terra.

Os personagens criados por Jair são inspirados na realidade brasileira e no cotidiano das populações rurais de sua época, o que torna o livro não só essencialmente brasileiro, como realista. Seus personagens são críveis e poderiam muito bem terem existidos na realidade ou terem sido inspirados em pessoas reais.

Filho de lavradores, assim como Zezinho, Jair tirou de suas próprias vivências o material que inspirou a história, por isso a sua narrativa mesmo voltada para crianças e jovens adolescentes é repleta de sensibilidade e delicadeza e todos os seus elementos (cenários, linguagem, costumes e temas) são realistas e apontam para o seu conhecimento da vida e da criação do povo mais antigo das áreas rurais. Zezinho poderia ser o alter ego da criança que Jair foi na infância: uma criança travessa, mas sensível e inocente, muito ligada aos animais e corajosa no sentido de defender as criaturas por quem tem estima. Isso torna Zezinho, o dono da Porquinha Preta um livro sensível e delicado e até mesmo profundo.

Zezinho teme o pai assim como os seus irmãos, mas é igualmente obstinado, e mesmo não fazendo frente ao pai diretamente usa de todos os recursos que lhe são possíveis para impedir a venda do animal. Jair dá ares de travesso a seu personagem principal, mas coração sensível e determinado. É um personagem difícil de ignorar e muito fácil de ser estimado pelo leitor. Jair acerta em sua fórmula para fazer uma história com personagens cativantes e cria um protagonista pelo qual você torce apesar de todas as brigas e traquinagens cometidas pelo menino ao longo da narrativa.

Por seu turno, Odilo, por seu caráter severo e turrão, acaba fazendo, dentro da narrativa, o papel de vilão que bate e briga à toa, do pai insensível e implicante. Trata-se da transposição para a literatura do imaginário adolescente que quando se vê contrariado pelos pais costuma pintá-los com ares de tirania e vilania.

A mãe é mais sensível e se entristece por ver a tristeza do filho, mas sabe que é impotente ante a teimosia do marido e, realista e pessimista, tenta apenas convencer o menino de desapegar-se do animal.

Os demais personagens, com exceção do menino Valtério, possuem participação muito secundária. Jair dedica um certo tempo na descrição psicológica de Odilo, mas não o faz em relação aos aspectos físicos. Os demais personagens ficam, em sua maioria, em segundo plano, enquanto personagens como o próprio Zezinho, seu irmão mais velho Orlando e o amigo Valtério são construídos ao longo da narrativa, sem uma preocupação de caracterizá-los profundamente. Seus detalhes vão sendo construídos ao longo da história.

Orlando é representado como o irmão mais velho que gosta de fazer troça do mais novo, em contraste com os caçulas da família que se demonstram sensíveis, prestativos e inocentes e buscam ao seu modo ajudar Zezinho ou pelo menos consolá-lo, mesmo que este não saiba reconhecer e aceitar o pequeno e inútil esforço dos irmãozinhos.

Valtério no imaginário de Zezinho é seu principal antagonista, porque seria ele o incitador da questão da venda da porquinha. Foi sua inveja e cobiça de ter uma porquinha mansa que incitou o pai, seo Martinho a querer comprar Maninha e, por sua vez, estimulou Odilo a vendê-la. Por isso, no imaginário simplista de criança injustiçada, primeiro pelo amigo que lhe traíra, e depois pelo pai que desconsiderava sua estima pelo animal, faz com que ele veja Valtério como inimigo invejoso que conta vantagem em poder, pela força do dinheiro, tomar-lhe a porquinha preta.

Um livro que fala de educação e de amor

Fotografia: Eric Silva, 2018.
O enredo do livro é simples, porém profundo. Zezinho, o dono da Porquinha Preta, é uma obra essencialmente pedagógica, a qual já utilizei muitas vezes em aulas de aperfeiçoamento da leitura.

Como educador formado em letras e que exerceu o magistério, Jair demonstra, em uma linguagem muito simples, que a melhor educação é aquela feita com diálogo e sem violência. Essas são as temáticas principais de seu livro: educação e amor.

Odilo é um homem rude que educa seus filhos com uma disciplina baseada no medo e na violência. A sensação transmitida pelo livro não é a de que seus filhos o respeitam porque o amam e admiram, mas porque o temem, porque temem um castigo do qual em algum momento já haviam sido submetidos.

“Zezinho saiu apressadamente. Ordem do pai era ORDEM de verdade. Não era brincadeira. Nem era pensar em contrariá-lo. Correu e foi ajudar o irmão no paiol”.

Ele não demonstra afeto pelos filhos e nem compreensão. Não age conforme um diálogo para entender as crianças e suas vontades para fazê-las compreender seus motivos e respeitarem a sua autoridade. Averso a qualquer conversa ele prefere demonstrar seu poder contrariando os desejos da esposa e dos filhos em vez de entrar em um consenso com os mesmos:

“Sabia que o pai sempre gostava de contrariar a mãe, mostrando que não aceitava opinião de ninguém em casa, mas talvez ela conseguisse alguma coisa”.

Em sua compreensão as vontades e desejos das crianças não deveriam ser ouvidas, muito menos atendidas, devem ser descartadas imperando apenas a palavra dele:

“Menino não tem querer. Menino não tem nada aqui em casa. Só tem a roupa que veste e a comida que come”.

Trata-se de uma educação rígida, inflexível e violenta – simbólica e fisicamente falando – e que resulta, invariavelmente, em problemas futuros. Quase sempre este autoritarismo gera desobediência, o que de certa forma acontece com Zezinho.

Como educador e quase pai, acredito que o diálogo e a liberdade de expressão são caminhos mais promissores ainda que não perfeitos – não há educação perfeita –. Isso não significa que não haja autoridade. Autoridade é conquistada com respeito e admiração. O diálogo serve para esclarecer o posicionamento de ambos e o adulto tomando a sua concepção acerca do problema e o posicionamento da criança deve ponderar e saber quando dizer não e quando ser flexível, sempre tentando fazer a criança compreender as razões de suas decisões e a legitimidade das mesmas.

O que falta na relação de Odilo e sua família é essa flexibilidade e diálogo. Pelo contrário, ele prefere punir o erro com a violência em lugar do diálogo, dos combinados e das proibições e suas respectivas consequências quando são quebrados os acordos e imposições (punição não violenta). Essas são práticas que ensinam e impõem limites. Centrado em uma educação arcaica, Odilo prefere a agressão física:

E já foi tirando o cinturão. Quando via o pai puxando o correião daquele jeito, tremendo de raiva, a surra não era brincadeira. Ia ser fogo. O pai não perdoava. Fugir era uma coisa que não devia nem pensar. Só se fosse para nunca mais voltar em casa.

– Não, paizinho, vou capinar agora.

– Aqui o seu capinar, Zezinho.

A primeira lambada estalou nas pernas. Zezinho pulou e acudiu com as mãos. A segunda guascada atingiu as mãos dele e ara aliviar a dor, levou as mãos à boca. Mas o pai não cava tempo de ele acudir a dor. As lambadas eram rápidas e terríveis. A dor andava das costas às pernas.

O propósito de Jair Vitória é tecer uma crítica a esse modelo arcaico de disciplinamento, e no final mostra que seu resultado nem sempre é bom ou tem um resultado conforme o desejado. O que fica é a revolta:

Sentia o corpinho dolorido, macetado. Não estava gostando do mundo naquele momento. Toda vez que apanhava, passava a estar contra tudo.

“Mas a Maninha ele não vende. Se ele vender, eu mato ela. Dou veneno pra ela. Vou pegar aquele Valtério e dar um murro no nariz dele pra tirar sangue.”

Por isso, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é uma leitura que também recomendaria aos pais como uma reflexão sobre educação.

Por outro lado, outro aspecto explorado pela narrativa é o amor. O amor do pai que falta aos filhos e o amor de Zezinho pelo animal de estimação. Isso de certa forma está também ligado ao tema de educação. Porque não existe educação verdadeira que deixe de lado o amor. É preciso amor para educar, porque se trata de uma tarefa árdua.  Do amor nasce a compreensão e a empatia em relação ao sofrimento do outro, mas é também do amor que nasce o desejo de lutar. O amor por Maninha fortalece Zezinho para que ele desafie os desejos do pai de vendê-la, mesmo com todo o medo que ele sente por aquele homem de figura imponente e ameaçadora.

Últimos comentários: narração, escrita e desfecho

Narrado em terceira pessoa e seguindo um tempo cronológico, Zezinho, o dono da Porquinha Preta é um livro de linguagem simples e escrita limpa, sem muitas metáforas ou recursos estilísticos que viessem a complicar a compreensão de seu principal público-alvo: crianças e jovens adolescentes.

Os diálogos e mesmo a narração aproveitam da linguagem simples do interior explorando muitos vocábulos regionais de uma linguagem popular que é mais próxima da realidade daquelas pessoas. Isso garante o realismo e a verossimilhança da narrativa. Contudo, é nos diálogos que essa particularidade fica mais visível. Imitando a forma regional de falar ou autor usa o coloquialismo para construir falas como: “Mas ele é mais grande que você, Zezinho” ou “É capaz que eu vou também”.

O narrador explorar alguns termos regionais, mas, por seu lado, garante todas as convenções da norma-padrão da língua, sem, no entanto, utilizar-se de um tom erudito ou rebuscado.

Em sua escrita, Jair mistura os pensamentos de Zezinho às falas do narrador ao ponto de narração, comentários e pensamentos narrados em discurso indireto virarem uma coisa só, numa forma de narração confortável e gostosa que flui tranquilamente e instiga a leitura.

Ilustração de Cirto Gerano que encerra o sexto capítulo.
As ilustrações de Cirto Genaro são bonitas e delicadas feitas com técnicas na ponta de lápis com delicadeza e realismo.

O desfecho é tocante e não desagrada, mas é um pouco abrupto e apressado. Mas independentemente de ter sido apressado e não desenvolver plenamente uma das cenas mais tocantes da história, ele entrega a narrativa deixando um questionamento sobre crescimento, amadurecimento e determinação, ressaltando até mesmo em suas últimas linhas o caráter pedagógico do livro.

A história de Zezinho não é minha preferida dentro da Coleção Vaga-lume, mas está entre os livros que mais admiro por ser muito bem escrito e trabalhado com carinho pelo seu escritor. É perceptível pela escrita de Jair o carinho e docilidade com o qual ele compôs sua narrativa e personagens, transformando uma historinha simples e até banal em um livro bonito e delicado, que busca ensinar seus leitores através de personagens cativantes e sem perder o realismo ou tornar-se por demasia infantil.

A edição lida é da Editora Ática, do ano de 1996 e possui 127 páginas.

Sobre o autor

Jair Vitória nasceu numa fazenda no município do Prata, Triângulo Mineiro, em 1943. Viveu seus primeiros sete anos na zona rural e só conheceu a cidade quando já era rapazinho.  Era filho de lavradores e estudou a maior parte do tempo na escola da zona rural. Parou de estudar três vezes para ajudar os pais na roça. Entretanto, o pai desejava ao filho um destino diferente do dele que não possuía nem o primário. Jair volta a estudar na roça até quando chegou à universidade. Trabalhou de datilógrafo e estudou à noite. Dedicou-se ao magistério e à literatura e formou-se em Letras, pela Universidade de São Paulo.

Seu primeiro livro publicado foi o livro de contos "Cuma-João".

Aposentado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, retornou ao Triângulo Mineiro, e, atualmente, vive na pequena cidade de Tupaciguara, onde escreve seus livros.





[1] Cavidade, na encosta de serra ou de morro, provocada por águas das chuvas, ou, em ribanceira de rio, por águas de enchentes (Houaiss, 2001)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Histórias da Outra Margem – Nagai Kafu – Resenha


Por Eric Silva

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Tadasu Oe é um escritor nostálgico que encontra em seu relacionamento mal resolvido com uma prostituta a inspiração necessária para seus livros.  Considerada a obra-prima de Nagai Kafu ( 荷風), Histórias da Outra Margem (濹東綺譚, Bokutō Kidan) é o sexto livro da III Campanha Anual de Literatura que homenageia a literatura do Japão. Um romance curto, nostálgico e pintado sob as cores das estações do ano em terras japonesas.

Sinopse

Tóquio, década de 1930. Tadasu Oe é um escritor sexagenário, conhecido e saudosista que ocupa parte de seu tempo em idas e vindas pela capital japonesa em busca de inspiração para seu último livro. É durante um de seus passeios, no fim de uma tarde chuvosa, que Oe conhece Oyuki, uma moça pobre que abandonou sua vida como gueixa para prostituir-se na zona do bairro de Tamanoi. Logo os dois começam um caso prolongado e, enquanto escreve seu livro, Oe tira daquela relação o alento para sua solidão e a inspiração para sua literatura.

Dividido em dez pequenos capítulos, Histórias da Outra Margem é, ao mesmo tempo, o breve relato das incursões de Oe ao bairro que ficava ao leste do rio Sumida, durante o seu romance mal resolvido com Oyuki, e também a descrição do processo de composição e escrita de um romance.

Resenha

Foto: Eric Silva, 2018.
Publicado em 1937, Histórias da Outra Margem é um clássico contemporâneo japonês curto e que se caracteriza pela pouca variação nas ações de seus personagens. Ele é antes de mais nada uma longa conversa do narrador com o leitor.

Nessa longa conversa que compõe, contraditoriamente, um breve romance (quase uma novela), Tadasu Oe nos fala sobre diversos temas desde cineteatros à moda e literatura da época. Mas os assuntos preferidos do narrador são, no entanto outros: as mudanças na cidade de Tóquio, reconstruída após o terremoto de 1923; seu livro até certo ponto estagnado; o nem sempre tranquilo ofício de escritor e sua relação mal resolvida com Oyuki. A destruição e reconstrução da capital, porém tem dentro na narrativa um peso maior como se fossem símbolos da transformação e profunda ocidentalização do Japão nas primeiras décadas do século XX.

O livro é o retrato da vida boêmia toquiota na década de 30, sobretudo a vida das meretrizes das zonas semiperiféricas de bairros como a Tamanoi da época. Por conta desse fato, para quem não conhece Tóquio, a meu exemplo, e muito pior a Tóquio de 1930, esse livro é uma excursão por lugares totalmente desconhecidos, mas extremamente familiares para seu narrador. Muitos desses lugares já estão há muito perdidos, engolidos pelo tempo, e, no final, exigem do leitor um maior esforço de imaginação.

Mas algo muito curioso nesse livro é a sua intertextualidade acentuada. Uma intertextualidade que se constrói sobretudo com a obra do autor e com sua vida pessoal. Nele são citados livros anteriores de Nagai Kafu, amigos seus de infância como Aa Inoue e Soyo Kojiro, dos quais fala com saudade. O romance fictício desenvolvido pelo personagem e intitulado O Desaparecimento também possui citações transcrita no texto principal de Histórias da Outra Margem e até um capítulo inteiro é transcrito. Além disso, fragmentos de textos de outros escritores e poetas como Gakkai Yoda e Matsuo Bashô são citados, completando a intertextualidade do livro.

Pelos elementos pessoais presentes na obra e outros, marcantes nos hábitos e na personalidade boemia de Tadasu Oe, muitos especialistas em literatura japonesa consideram o personagem principal desse livro o alter ego de seu escritor. Assim como Oe, Kafu era assíduo frequentador de bordéis e casas de prazer, assim como a descrita na sua narrativa. Ademais, Histórias da Outra Margem, como descrito na orelha do livro, parece uma mistura de diário, ficção, poesia, crônica e memórias.

A narração é linear e não explora o uso de flashbacks, ainda que o narrador pareça nostálgico em relação ao passado.

Apesar de cronológico, o tempo decorrido durante a narrativa não é preciso e nem definido. Ao que me pareceu apenas a passagem das estações do ano permitem precisar o tempo em que as ações ocorrem e por isso as mudanças no tempo são essenciais na narrativa.

Já observei, na maioria dos livros japoneses que já li, que as estações do ano é um elemento muito explorado pelos escritores nipônicos. Em Naufrágios de Akira Yoshimura esse destaque para as estações e seu uso como demarcador do tempo é icônico e entorno delas é construída toda a trama. Mesmo em animes e mangás essa é uma característica japonesa proeminente e curiosa, como se o “calendário natural” convivesse harmoniosamente ou até mesmo subordinasse o calendário convencional.

No livro de Kafu, a passagem das estações é também elemento importante e que se concilia com o aparecimento dos mosquitos que infestavam Tamanoi no verão escaldante de Tóquio. Datas são pouco usadas com exceção de alguns anos que demarcam acontecimentos anteriores à trama. Também no final do livro, que é encerrado com a provável data de fechamento de sua escrita: “Tóquio, 30 de outubro de 1936, ano do cavalo”.

Um elenco pequeno: narrador e personagem

Com um profundo tom intimista e olhos centrado na vida cotidiana e literária de seu narrador, Histórias da Outra Margem é um livro que parece alheio ao momento histórico de totalitarismo político, ultranacionalismo e imperialismo militar que dominou o cenário político japonês e que culminou na invasão japonesa da China em 1937, ano de publicação do livro. Contudo, não é uma obra que se encontra alheia as mudanças provocadas pelo tempo que muda não só as pessoas como os lugares, marcando na retina daqueles que viveram bastante a saudade de coisas que se perderam no passado. Essa nostalgia é a principal marca da narrativa desse livro, o que fica nítido sobretudo no saudosismo de Oe que descortina as mudanças profundas e pouco sutis sofridas pela cidade de Tóquio após o grande sismo de Kantō, terremoto ocorrido no ano de 1923, cujos efeitos – somados a um tsunami subsequente e inúmeros incêndios – foi responsável pela morte de 110 mil japoneses.
Em muitas passagens o narrador é irônico e opina sobre a polícia metropolitana, o trabalho dos cafetões e as transformações ocorridas na cidade que muito lhe desagradam:

“Eu queria mostrar como a beleza da Tóquio antiga, de seus bairros famosos, se perdeu depois da reconstrução que se seguiu ao Terremoto de 1923. Por isso, queria que a história de Taneda e passassem em um desses lugares da capital, cujo charme de outrora se fora para sempre: Honjo, Fukagawa, os arredores de Asakusa; [...]”.

Ao longo de toda a narrativa, Oe recorda os lugares que já não existem na “nova” Tóquio, as mudanças provocadas não só pela destruição do terremoto (principal marco temporal usado pelo narrador para separar a nova da antiga capital), como também aquelas provocadas pelo crescimento da cidade em direção aos seus subúrbios; o surgimento de novas áreas periféricas e a transformação de bairros boêmios ou antigas zonas de prostituição forçadas a se deslocarem em decorrência do avanço da cidade.

Por conta disso, o tom principal desta narrativa é marcado pela nostalgia de um personagem que viveu uma outra Tóquio, diferente, e que viu ruir e transmutar após as chamas e destruições provocadas pelo sismo. Mas mais do que uma Tóquio que foi consumida pelo fogo ele sente saudades de uma era que deixou de existir após a restauração da era Meiji e que foi responsável pela modernização do país.

Podemos dizer inclusive que é a forma ainda muito tradicional com a qual Oyuki se veste um dos principais atrativos que atraem o protagonista de Kafu. A monotonia da casa onde ela atendia complementaria o interesse do escritor que foge do barulho dos rádios e megafones das casas vizinhas a sua.

Porém, a nostalgia não é a único traço do desenho psicológico do narrador e personagem principal. Ele é um homem de hábitos simples, mas possui uma seriedade difícil de enquadrar, porque não é grave como a de alguns homens moralistas e inflexíveis (o que ele não é nem um pouco) e nem se dilui em risos ou brincadeiras.

Ele é também tranquilo, contemplativo e perspicaz, mas deixa transparece uma personalidade um pouco relapsa. Alguns críticos e resenhistas o classificam com um outsider, alguém “apreciador de uma outra época[1]. Sua forma de se expressar e conviver, porém demonstra não apenas toda a natureza tranquila e até fria típica de alguns estereótipos orientais mais comuns, mas também a distinção de alguém muito instruído, o que de certa forma contrasta com os ambientes degradados e moralmente indecorosos frequentados por eles.

Oe, além de escritor reconhecido e que inclusive viveu parte de sua vida no exterior, é um assíduo frequentador das casas de prazer toquiotas e profundo conhecedor do mundo dos bordéis, cafetões e prostitutas. Por conta disso não é de se surpreender que esse seja um dos principais temas de seus diálogos com o leitor. Contudo, a forma de falar de Oe se mantém polida durante a maior parte do texto. Só notamos alguma diferença quando Oyuki, confundindo-o com um marchand[2] de desenhos “secretos” (pornográficos), passa a falar com ele de uma forma mais coloquial e faz menos “cerimônia” em sua presença.

Não obstante, o narrador tem consciência de que os ambientes frequentados por ele lhe renderiam má fama em seu meio e, por isso, tomava cuidado para não ser visto por nenhum jornalista. Também para evitar ser visto de uma forma diferente naquele mundo, omite sua condição e profissão, inclusive de Oyuki.

Por sua vez, Oyuki é uma mulher de comportamento muito típico para a sua profissão, o que, em parte, alimenta estereótipos. Ela não é excessivamente vulgar, mas não deixa de ser. Trata-se de uma moça pobre, de origem camponesa, ainda um pouco ingênua e, até certo ponto, afável e jovial. Todavia, em muitos momentos Oyuki revela a tristeza profunda e o cansaço de quem vive uma vida difícil e sem recompensas. É um personagem profundo, mas que não consegui captar completamente, por isso, não tenho muito o que falar de Oyuki, ainda mais que tudo sobre ela é filtrado pelo olhar do narrador que a olha com curiosidade e certa compunção[3].

O elenco do livro é composto por muito poucos personagens, a maioria deles tem participação muito secundária e que se resume a um único capítulo ou apenas parte dele. Também não há uma preocupação excessiva com descrever os personagens, apenas a Oyuki, mas isso é feito de forma espaçada no ritmo de desenvolvimento da trama. Porém, a descrição de Oyuki, em contraponto com os demais personagens, é justificável, uma vez que ela é a “musa” do narrador e sua inspiração.

Apreciação crítica

Foto: Eric Silva, 2018.
Apesar de puxar mais para a descrição e divagações do narrador, Kafu buscou nesse livro um equilíbrio entre narração e diálogo. A escrita é bem estruturada, mas a narrativa não é instigante. Não há sobressaltos nem grandes acontecimentos, apenas uma monotonia de dias quentes cheios de mosquitos, ou tardes bonitas que terminam em chuvas repentinas. O livro como um todo é um monólito de granito formado por muitos grãos (poesias, narrativa, intertextualidade, cartas, memórias), mas sem a beleza de uma trama complexa ou dinâmica.

Histórias da Outra Margem é, em suma, bastante cotidiano, semelhante ao livro Beleza e Tristeza de Yasunari Kawabata que é igualmente monótono, o que faz de ambas as obras impopulares entre as gerações mais atuais. Ainda assim, é uma leitura fluída e não travei em nenhum momento ou abandonei a leitura se não fosse por um motivo apropriado.

A obra é antiga já tendo completado mais de 80 anos de publicado, o que contrasta bastante com a idade da edição lida por mim que tem apenas oito anos de publicação, uma diferença de mais de sete décadas. Isso demonstra o quanto o mercado editorial brasileiro continua fechado às obras estrangeiras que não pertencem a literatura euro-estadunidense.

A literatura japonesa ainda chega até nós com maior frequência, a exemplo das obras de Haruki Murakami e Yasunari Kawabata, mas quando se trata de outros países asiáticos e principalmente africanos e da Oceania há uma vasta lacuna de milhares de livros que nunca foram traduzidos e que provavelmente não serão, com exceção, é claro, dos antigos e futuros ganhadores do Nobel de Literatura. Por isso, o trabalho da editora Estação Liberdade é importantíssimo para que essa leitura oriental chegue ao público brasileiro.

Mas, a despeito da longevidade da obra, a tradução impecável de Andrei Cunha facilita a leitura que não possui uma linguagem demasiadamente erudita. Além disso, as notas de rodapé escritas pelo tradutor foram imprescindíveis para o entendimento da obra que faz muitas referências aos costumes, à cultura e à moda japonesa da época. Cunha também traduziu, para a mesma casa editorial, o livro Guerra das Gueixas, outra obra icônica de Kafu.

A diagramação é também caprichada e o livro foi feito com papel de excelente qualidade, se não bastasse, os desenhos de Shohachi Kimura, que marcam a divisão dos capítulos, foram retirados da edição original e tornam ainda mais atraente a edição brasileira.

Em conclusão, o desfecho de Histórias da Outra Margem não surpreende, porque o narrador vai dando diversas pistas ao longo dos últimos capítulos. Contudo, é um final original, porque, apropriando-me das palavras do próprio Oe, não se preocupa em ser “satisfatório”. Oe, ao contrário, nos convida a pensarmos uma outra forma de concluir o seu romance.
Breve, sutil e um pouco monótono, mas de uma qualidade literária indiscutível. Este é Histórias da Outra Margem de Nagai Kafu.

A edição lida é da Editora Estação Liberdade, do ano de 2013 e possui 128 páginas.

Sobre o autor

Nagai Kafu (永井 荷風) é o pseudônimo de Nagai Sokichi. Kafu nasceu em Tóquio no ano de 1879 e é autor de romances, contos e peças de teatro.

Desde a adolescência interessou-se por literatura e cultura tradicional japonesa e chinesa.

Aos 19 anos escreveu seus primeiros contos, publicados a partir de 1900. Rebelde quando jovem, Kafu não conseguiu terminar seus estudos universitários. Na primeira década do século XX viveu no exterior, primeiramente em Nova York, onde trabalhou em um banco japonês. Em 1906, muda-se para Lyon, na França, onde teve um contato mais intenso com a cena literária, especialmente com a escola do simbolismo. Esse período inspirou o livro Amerika Monogatari [Histórias americanas], de 1908.

Ao retornar ao Japão, em 1908, já era um homem de letras maduro e cosmopolita e torna-se estudante e tradutor de literatura francesa. Por alguns anos após seu retorno, Kafū foi professor na Universidade de Keiō, em Tóquio, e líder do mundo literário.

Manteve intensa produção até sua morte, em 1959.

Confira quem são os outros autores participantes da Campanha deste ano no link: http://bit.ly/2n5OK6U.

Conheça os pontos do nosso itinerário no mapa do link: http://bit.ly/2G9Mkwx.

No link abaixo você pode conferir uma prévia do livro disponível no Issuu.

Preview do Issuu








[1]Marilia Kubota. Nagai Kafu Retoma O Mundo Flutuante. Disponível em: https://revistamemai.wordpress.com/2013/02/26/19-literatura-nagai-kafu-retoma-o-mundo-flutuante-em-historias-de-outra-margem/.
[2] Palavra francesa (em português, "mercador" ou "comerciante") que, em alguns países não francófonos, designa o profissional que negocia obras de arte.
[3] Sentimento de pesar, de arrependimento por haver cometido má ação.

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