Por Eric Silva
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Dramático sem ser ridiculamente sentimental, mas belo,
delicado e triste, o primeiro 7ª Arte
da III Campanha Anual de Literatura do Conhecer Tudo traz a resenha do filme
japonês Dare mo Shiranai (誰も知らない), no Brasil conhecido como Ninguém Pode Saber. Inspirado em um caso real, o filme do diretor,
produtor, roteirista e editor Hirokazu Kore-eda conta a história de quatro
crianças que tentam sobreviver ao longo de meses ao desamparo e a pobreza após
serem abandonadas pela mãe em um apartamento diminuto no subúrbio da cidade de
Tóquio.
Nobody Knows: um enredo
sobre abandono
Lançado em 2004, e
escrito, produzido, editado e dirigido pelo cineasta japonês Hirokazu Kore-eda
(是枝 裕和), Dare mo Shiranai, ou Nobody Knows, conta a história da
família de Keiko Fukushima (福島けい子), uma jovem mãe que
esconde e abandona seus quatro filhos para se casar.
O enredo começa
com a chegada de Keiko e seu filho mais velho, Akira (福島明 – 12 anos),
ao novo apartamento onde passariam a viver. Para esconder sua condição de mãe
solteira de quatro crianças e manter as aparências de uma mulher respeitável,
Keiko apresenta o menino aos locatários como seu único filho, explicando que
seu esposo se encontrava ausente em viagem de trabalho. Porém, o grande segredo
guardado por aquela mulher de aparência risonha e fala infantil chega ao
apartamento 203 escondido dentro de duas malas de viagem: o travesso Shigeru (福島茂) de idade não declarada, e o membro mais novo da
família, a doce Yuki (福島ゆき) de apenas 5 anos.
Só no fim do dia, quando a
escuridão da noite oferecia coberta para a chegada furtiva de um quinto morador,
é que Akira recebe permissão da mãe para ir à estação. Lá, sozinha, a irmã Kyōko
(福島京子), de 11 anos, esperava pela sua oportunidade de
entrar clandestinamente na nova casa. É
só aí que enfim a família Fukushima se encontra completamente reunida com seus
cinco membros, três deles destinados a viverem escondidos como fantasmas
silenciosos, moradores não declarados. Somente Akira teria permissão para sair
de casa, para comprar mantimentos e cumprir pequenas tarefas na rua.
Nas primeiras semanas,
Keiko se demonstra uma mãe carinhosa e divertida, mas, gradativamente, ela volta
a sua antiga rotina de namorados pela rua, saídas a noite e de chegar muito
tarde do trabalho, algumas vezes alcoolizada enquanto vai deixando para os dois
filhos mais velhos, sobretudo Akira, as tarefas domésticas e os cuidados com os
irmãos menores. Logo, Akira e Kyōko pressentem que a mãe havia encontrado um
novo namorado e não são pegos de surpresa quando ela some de casa deixando 90
mil ienes e um bilhete para Akira pedindo que cuide dos irmãos enquanto está
fora.
Acostumado aos
desaparecimentos repentinos da mãe, principalmente quando estava envolvida em
um novo relacionamento amoroso, Akira assume as responsabilidades da casa. Com
o escasso dinheiro deixado por ela, o menino passa a administrar as despesas da
casa, recorrendo a dois antigos namorados de Keiko quando o dinheiro começa a
acabar, porém esses se esquivam de ajudá-los de fato, dando ao menino alguns
poucos trocados.
Com o passar dos meses e
confinados naquele apartamento em estado cada vez mais precário, as condições
de vida dos quatro vão se deteriorando, deixando o estado de abandono e miséria
ainda mais explícito. Sem que ninguém perceba ou tome providências em relação
as crianças essas chegam ao ponto de sobreviverem de sobras doadas por um
funcionário de um mercado local, e a utilizarem a água de um parque próximo para
beber, lavar roupas e tomar banho.
Ao longo de todo o
restante da película, vamos acompanhando o lento resvalar das condições de vida
das quatro crianças, as mudanças de suas personalidades e a conscientização gradativa
de que a mãe nunca retornaria, até que o filme alcança seu ápice com um
desfecho em aberto.
Abandono: um drama silencioso
Dare mo Shiranai é o primeiro filme japonês não animado que
assisto. Uma experiência interessante e que vem incitando em mim a curiosidade
de conhecer outras obras cinematográficas nipônicas. O tema é forte, mas longe
de ser incomum, mas a forma crua como foi representado por Kore-eda é tocante sem ser piegas e capaz de reviver
nos olhos de seu expectador a perplexidade. Mesmo aqueles que já se acostumaram
a passar pelos invisíveis (as crianças miseráveis e indigentes que se
multiplicam pelas ruas das grandes cidades), não conseguem se manter
indiferentes ao drama das quatro crianças abandonadas por uma mãe inconstante,
infantil, egoísta e muito atípica.
O roteiro de Dare mo Shiranai é simples e pouco
extravagante, assim como os seus cenários que retratam o cotidiano de uma
grande cidade em contraste com o mundo diminuto habitado pelos personagens
principais. Porém, nesse mesmo roteiro sobram elementos repletos de
significados que considero chaves na trama: o significado de família, o mal
planejamento familiar, o costume tipicamente japonês de conter seus sentimentos
e, principalmente, os temas da infância perdida e do abandono.
Em muito, o enredo do filme me lembra bastante a
premissa da narrativa do livro O Jardim dos Esquecidos,
de autoria da escritora estadunidense Virgínia C. Andrews (veja a resenha).
Assim como os Fukushima de Dare mo Shiranai, as quatro crianças da família Dollanganger deveriam se
manter confinadas em um espaço não muito amplo, onde suas existências seriam
ignoradas pelo resto do mundo. Ali são obrigadas a amadurecerem e assumir
responsabilidades e papeis paternais como ocorre sobretudo com Akira, mas
também com Kyōko, e também padecem os
efeitos nocivos de um abandono prolongado e perverso, como se dá com a pequena
e abatida Yuki.
A mãe dos Dollanganger também é uma mulher amorosa e cheia de
vida, é adorada por seus filhos e cheia de sonhos, no entanto, é também
igualmente egoísta e capaz de mentir e enganar para alcançar os seus objetivos
e, por isso mesmo, os desfechos das duas obras possuem suas semelhanças na
essência: as crianças lutam por sua sobrevivência. Os enredos, porém, divergem
sobretudo no tom melodramático com que Andrews pinta sua narrativa, adaptada duas
vezes para o cinema, a primeira em 1987, com direção de Jeffrey Bloom, e a
segunda em 2014, por Deborah Chow.
A família Fukushima não é muito comum para os
padrões japoneses tipicamente formada por poucos membros. Além de solteira
Keiko é mãe de quatro crianças com menos de 13 anos, filhas de pais diferentes
e todas sem referências paternas. Se isso não bastasse, as crianças não
frequentam a escola e não possuem permissão para saírem de casa, devendo conter
todos os seus impulsos para serem ao máximo discretas e silenciosas, nunca
chamando a atenção para suas existências que deveriam se manter incógnitas.
Quando comecei a assistir a película, foram as peculiaridades
da família Fukushima o nó que me prendeu à tela e à história das quatro
crianças abandonadas. Kore-eda ganha a
atenção e curiosidade de seu expectador no exato momento em que as duas
crianças menores são retiradas de dentro de uma mala. Ali você é assaltado não
apenas pela perplexidade como por uma infinidade de questões relacionadas ao
desfecho de tudo aquilo. Qual seria o
intuito daquela mãe? O que a fez tomar uma atitude tão irresponsável e perigosa? Como essa
história vai se desenrolar? Qual será o destino daquelas crianças na mão dessa
pessoa?
Como disse a família Fukushima foge ao padrão
moderno que conheço do Japão e isso me atiçou a curiosidade. Dare mo
Shiranai me revelava diante da tela uma outra faceta que até então era
desconhecida por mim: a realidade das mães solteiras japonesas.
O tema central do filme é genuinamente universal.
Tudo em sua temática o é. Mas ao mesmo tempo há muito da cultura japonesa
impregnada no enredo e nas ações dos personagens.
O abandono de menores é uma realidade que se dá nos
quatro cantos do planeta, das mais diferentes formas e muitas delas bem mais
brutais e desumanas do que a representada por Kore-eda.
Mas o que faz com que uma história tão
naturalmente universal se torne genuinamente japonesa não é só o contexto, mas,
principalmente, a atitude das crianças frente a adversidade no qual foram
jogadas: uma atitude corajosa de comedimento em relação aos próprios sentimentos
e força para seguir em frente.
O personagem Akira,
brilhantemente interpretado por Yūya Yagira, é o principal destaque da trama.
Ao que tudo indica, o menino nunca pode viver sua infância por ter dentro da
família o papel de substituto da mãe. Sobretudo nas prolongadas e constantes
ausências de Keiko, o pequeno é o principal responsável pelo cuidado das outras
três crianças. Por isso, Akira é forçado a amadurecer antes do tempo
tornando-se perspicaz, buscando estratégias de sobrevivência, se ocupando da
economia e do provimento da casa e, instintivamente, assumindo completamente o
papel da mãe ausente. Ali Kore-eda
esmiunça o significado de família e a importância que se deve dar a ela. A importância que não é atribuída e
valorizada pelo adulto do grupo é decididamente o fator que faz Akira reunir
forças. Não apenas o instinto de sobrevivência, mas a importância que os
irmãos tinham para ele, além da certeza de que os quatros só possuíam uns aos
outros em um mundo selvagem e indiferente.
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Yuki segurando firme na roupa de Akira logo após um cobrador ter insistido batendo na porta do apartamento. |
É o desejo de se manterem
unidos que os levam a decidir não fazer uma denúncia para a assistência ao
menor, o que resultaria inevitavelmente na separação, e esse mesmo desejo dá a Kyōko,
Yuki e Shigeru a força necessária para suportarem o sofrimento vivido com
resignação e paciência durante a maior parte do tempo. Mesmo quando vacilam, os
três menores são puxados novamente para a realidade pelo mais velho e voltam a
recuperar a atitude anterior, esperando por ele e apoiando-o, mesmo quando se
sentiam entediados e melancólicos no confinamento do apartamento.
Contudo, o que mais impressiona
no personagem interpretado por Yagira é que, mesmo nas horas de desespero, de
dúvida e desalento, Akira é o mais lúcido e contido, jamais expressando dúvidas
ou aflição na frente dos irmãos e jamais se entregando ao choro, mesmo quando
tudo deveria levá-lo ao pranto. Ele é o primeiro a entender que a sobrevivência
de todos dependeria de suas ações e escolhas, por isso não podia se permitir
transparecer aos irmãos nem a menor de suas preocupações, mantendo-os o máximo
que fosse possível enredados na esperança de que a mãe retornaria até o momento
em que não restasse esperança alguma.
É completamente tocante a forma corajosa e determinada
com o qual o garoto enfrenta o abandono de sua mãe. Mesmo quando o imenso peso de suas responsabilidades dá
vasão ao seu lado infantil e ele vacila nos cuidados com os irmãos e com a casa,
ao perceber seu erro e as consequências terríveis deste, o menino não só é puxado
outra vez para a sua realidade amargurada, como rapidamente reassume o papel
que lhe fora imposto e prossegue denodadamente tentando manter a si e aos outros
vivos.
O conter as emoções é uma
marca muito comum aos japoneses e isso se reflete na forma como eles encaram a
vida e no que fazem dela. Quando aquelas crianças incorporam bravamente esse
posicionamento, eles dão ao tema que é bastante universal, um caráter muito
japonês.
No entanto, se Akira é o
personagem mais notável e interessante de Dare mo Shiranai, Keiko é, sem dúvidas, o mais intrigante para mim.
Ao longo de toda a película Keiko é representada como uma mulher de fala e
lógica muito infantil e que, por sua imaturidade, foi incapaz de planejar a sua
família, tendo muitos filhos, de pais diferentes e ausentes e sem nunca ter se casado.
Dada a beber na companhia de homens quando saia do trabalho, a chegar tarde e
alcoolizada e a deixar seus filhos expostos a condições que claramente
prejudicava os seus desenvolvimentos, a jovem mãe se revela ainda um personagem
contraditório ao mesmo tempo que curioso.
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Keiko em cena da chegada ao apartamento. Personagem interpretado por You (Yukiko Ehara). Nesse momento Akira olha preocupado para a mala onde um de seus irmãos está esperando escondido. |
Digo que o perfil do personagem Keiko é notadamente
contraditório, porque ela parece claramente amar seus filhos, mas, por outro
lado, não hesita em abandona-los para garantir o seu próprio futuro. E curioso,
porque muita coisa parece implícita, oculta em suas ações e escolhas.
A família Fukushima é nitidamente
desestruturada e o centro dessa falta de estrutura é a mãe das quatro crianças,
principal responsável pela desventura dos filhos. Mas seria só isso? A minha tese é que analisar a personagem
Keiko apenas por suas características psicológicas, desconsiderando o contexto
social no qual ela se encontra é se manter na superfície dos fatos,
principalmente quando se conhece a realidade difícil das mães solo (mães
solteiras) japonesas. Por isso, e pela complexidade da personagem, preferi
tratar dela em uma Postagem Especial sobre a situação da mãe solo no Japão. Nesse texto descrevo e analiso mais
profundamente a personagem e as possíveis razões que a levaram a abandonar seus
filhos em busca de um casamento.
Nobody Knows: o
caso real
Como mencionei
anteriormente Dare mo Shiranai é baseado em um
caso real acontecido na localidade de Sugamo, Toshima, entre os anos de 1987 e
1988, e que ficou conhecido como Sugamo
kodomo okizari jiken (巣鴨子供置き去り事件, em tradução
livre “o incidente do abandono das crianças de Sugamo”).
O caso envolveu uma mãe
que abandonou seus cinco filhos menores em um apartamento daquela localidade.
No caso os nomes das crianças nunca foram revelados. Aqui contarei os fatos
baseando-me exclusivamente no texto escrito na versão espanhola da Wikipédia[1] a
partir de uma tradução livre do mesmo.
Segundo a página, a mais
velha das crianças era um menino nascido em 1973, seguido de uma menina (1981),
um outro menino, morto logo depois de nascer (1984), e duas meninas menores
nascidas em 1985 e 1986, respectivamente.
Assim como no roteiro
criado por Kore-eda, todas as crianças eram fruto de diferentes relações com
homens de identidades até hoje desconhecidas. Além disso, com exceção do filho
mais velho, nenhuma das demais crianças chegaram a ser registradas, nem tão
pouco frequentavam a escola.
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As crianças de Dare mo Shiranai pegando água e lavando suas roupas em um parque infantil próximo ao apartamento. |
No outono de 1987, após
conhecer um novo amante, um possível noivo, a mãe deixa as crianças menores a
cargo do mais velho e desaparece durante meses, deixando-lhe apenas ¥ 50,000 (cinquenta
mil ienes, algo entorno de US$ 350) para os gastos.
Em abril de 1988, a menor
das crianças é assaltada por um dos amigos de seu irmão mais velho e morre em
decorrência ao ataque. Mesmo não tendo participado do crime, o menino mais
velho, com a ajuda de um segundo amigo, enterra o corpo da irmã em um bosque em
Chichibu[2], o que
meses depois lhe condenaria por abandono de corpo.
As crianças restantes só
seriam descobertas em 17 de julho do mesmo ano. Quando alertados pelo proprietário
do apartamento, os oficiais de Sugamo invadiram o apartamento e encontraram as
três crianças gravemente desnutridas. Elas tinham na época, respectivamente, 14, 7 e 3 anos de idade. No apartamento os oficiais também encontraram o corpo
da terceira criança, falecida ao nascer.
Por conta da intensa
cobertura jornalística do caso, a mãe se entregou pouco tempo depois, no dia 23
de julho. Seu testemunho revelou que as crianças ficaram entorno de 9 meses
sozinhas, mas até então ninguém sabia o paradeiro da menor das crianças. Só no
dia 25 o filho mais velho revelaria às autoridades o que havia ocorrido com sua
irmã menor, e por conta do crime seus dois amigos envolvidos no caso foram
enviados para um reformatório. O crime de ocultação de cadáver cometido pela
criança mais velha não teve cumprimento de pena devido as circunstâncias do
caso, e assim como suas irmãs, o menino foi mandado para uma escola para
crianças com deficiências físicas e mentais.
Em agosto de 1988, a mãe foi
acusada de abandono infantil e condenada a três anos de prisão, pena que só foi
cumprida quatro anos depois. Mesmo com a repercussão do caso, a mãe após
cumprir pena reouve a guarda das meninas, exceto do filho mais velho que já
havia alcançado a maioridade.
Em Dare mo Shiranai Kore-eda dá
identidade (fictícias) às crianças, reduzi-lhe o número e muda o gênero de uma
das meninas, dando assim origem ao pequeno Shigeru. Ele também modifica
em parte o destino da criança mais nova e dá ao enredo que mantém muitos dos
elementos do caso real em um tom mais leve e delicado, e logo bem menos brutal.
Além disso, o filme tem desfecho em aberto e logo não se inspira completamente no
caso de Sugamo.
Estética: sem melodramas ou
lágrimas
Quem me conhece um
pouquinho sabe que quando se trata de cinema o gênero dramático está entre os
meus preferidos, sendo superado só pelos grandes filmes históricos.
Grandes e pequenas
tragédias, roteiros baseados em fatos reais, e histórias cotidianas ou
compatíveis com as problemáticas e relações humanas que se dão na vida real
sempre me chamaram a atenção mais do que os épicos, as aventuras, as histórias
de heróis, de ação ou de suspense.
Já na adolescência obras
cinematográficas como Central do Brasil, A Vida é Bela e Billy Elliot prendiam
minha atenção tanto quanto filmes como A.I. – Inteligência Artificial,
Gladiador, Titanic e Os Outros. Hoje, depois de adulto, essa inclinação por
histórias menos ficcionais e mais sérias só se tornou mais forte e fez com que
eu me atraísse por histórias de filmes como As Horas, La Lengua de las Mariposas, Volver
e O Labirinto do Fauno. Na literatura o ficcional, o misterioso e o
fantástico são sem dúvidas as minhas preferências, mas, na tela do cinema,
ainda prefiro a vida como ela é.
Contudo, esse meu gosto
pelo drama não nasceu de uma inclinação por histórias cheias de
sentimentalismos e que arranque lágrimas do telespectador, mas de uma atração
por histórias tão incríveis quanto reais, de uma necessidade insaciável de
verossimilhança e essa semana encontrei isso, em essência, em Dare mo Shiranai. Um filme que se
encaixa perfeitamente nesse meu gosto pelo real, pelo comovente inspirado na
vida cotidiana e nas relações humanas, mas sem deixar de ser inteligente, incrível
e magnético.
Dare mo Shiranai é um filme triste sem ser
melodramático e traz a marca profunda do caráter contemplativo próprio da arte e
da filosofia japonesa. É um filme
que arranca lágrimas de seu expectador não pelo reflexo de ver alguém chorando
ou plenamente desesperado, mas pela consternação de ver diante de si um ato
desumano e, depois, a luta das crianças para continuarem vivas apesar de tudo. Não há cenas apelativas, nem sentimentalismos
extremados, e o misto de atuações contidas com a documentação sistemática da
rotina das quatro crianças vai ditando o tom do filme.
As cenas demoradas, os closes da câmera em pequenos detalhes, os silêncios prolongados e
os olhares perdidos caracterizam um filme que trata o trágico pelo seu víeis
mais cru e belo: quando faltam as lágrimas.
Por isso, é um filme que consegue fazer o dramático também ser belo e
cheio de sutilezas ao mesmo tempo que expõe o silêncio cruel da sociedade, que
fecha os olhos para o drama vivido por aquelas crianças.
A denúncia está em todos
os lugares e é evidente sobretudo nas condições degradantes no qual as crianças
vão sendo sujeitadas desde a viagem dentro da mala até o desfecho quando o
apartamento já está reduzido a penúria, carente do mais básico.
Mas a melancolia transcende
no filme quando se une a trilha sonora instrumental organizada por Gontiti ou
pela deprimida Houseki, de
Takako Tate (que também atua no filme como a caixa do minimercado local). Muito
parecida com uma cantiga infantil ou de ninar, a canção mais marcante do filme
é Yakusoku, composta por Gontiti. Ela chama a atenção por sua
atmosfera carregada de nostalgia e tristeza, que me fez lembrar de fins de
tardes quentes de um passado longínquo e inalcançável.
Além disso, o filme é também
cheio de cenas do cotidiano e pequenos detalhes que compõem o cenário do drama
e a indiferença da imensa cidade japonesa. Em muitas cenas a câmera filma Akira
em meio a dezenas de transeuntes que se desviam e ignoram sua existência, e em
outras, as ruas e parques desertos se harmonizam com a solidão desolada vivida
por ele e seus irmãos.
A trama se desenvolve
lentamente, num fio contínuo, estável e linear que pouco a pouco vai mostrando
o lento e progressivo resvalar das condições de vida das crianças. Nisso o
cenário e o figurino se revelam elementos fundamentais, verdadeiros marcos ou
indicadores de que as coisas só pioram. As roupas limpas e até confortáveis vão
dando lugar aos andrajos sujos que denunciam a condição de mendicância. Por sua
vez, o cenário do apartamento sem luz, água ou limpeza vai se torando a
representação espacial dessa degradação. No lento desenvolver da narrativa
Kore-eda consegue fazer com que essa passagem se torne natural e gradativa, e a
câmera é fundamental nisso. Cada close pelo ambiente, nas roupas, nas contas
atrasadas, e também cada cena mais demorada vai revelando ao espectador os
elementos necessários para que ele constate por si só essas transições.
Dare mo Shiranai é um filme delicado e tocante, não apenas por ser o drama de um
grupo de crianças, o que costuma apelar para o sentimentalismo do espectador,
sobretudo daqueles mais sensíveis ao sofrimento infantil. Ele é delicado e
tocante por ser realmente belo, cheio de pequenos detalhes, silêncios e cenas que
demonstram o lento escoar da vida de quatro pequenas almas entregues ao
abandono, mas que não desistiram de lutar pela sobrevivência e para se manterem
unidos como uma família.
A película é uma produção dos
estúdios Cinequanon e Bandai Visual e entrou em cartaz no ano de 2004. Tem
duração de 141 minutos. Abaixo você pode conferir o trailer do filme:
Trailer
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Cinema

[1] https://es.wikipedia.org/wiki/Caso_de_abandono_de_los_ni%C3%B1os_de_Sugamo
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Sugamo_child_abandonment_case